O direito ao esquecimento na internet e a proteção dos consumidores

AutorGuilherme Magalhães Martins
CargoPromotor de Justiça no Estado do Rio de Janeiro
Páginas61-100

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EXCERTOS

"A sociedade da informação muda e dita comportamentos, regendo as formas de comunicação, os relacionamentos interpessoais, o consumo e a própria vida em sociedade"

"O direito ao esquecimento impõe-se como um novo direito fundamental, lado a lado com o direito à proteção de dados pessoais e o direito à portabilidade de dados"

"A tutela do direito ao esquecimento decorre da cláusula geral de tutela da pessoa humana, cuja dignidade é reconhecida como princípio fundamental da República"

"Numa época marcada pela velocidade, ubiquidade e liberdade próprias da globalização, as novas tecnologias tornam necessária uma proteção efetiva dos consumidores"

"O direito ao esquecimento seria o direito de impedir que dados de outrora sejam revividos na atualidade, de modo descontextualizado, sendo conferido à pessoa revelar-se tal qual ela é atualmente, em sua realidade existencial, de modo que nem todos os rastros que deixamos em nossa vida devem nos seguir implacavelmente em cada momento da existência"

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"Tudo que se passa no onde vivemos é em nós que se passa. Tudo que cessa no que vemos é em nós que cessa."

(Fernando Pessoa)

1. A sociedade da informação e a proteção dos direitos fundamentais

Nos últimos anos, o conceito de sociedade da informação adquiriu importância em escala mundial, fundamentado na crença de que sua consolidação favorece a integração global nos diferentes aspectos da vida humana: na economia, no conhecimento, na cultura, no comportamento humano e nos valores.

A expressão sociedade da informação2 surgiu na Europa, na conferência internacional de 1980, onde a comunidade Econômica Europeia reuniu estudiosos para avaliar o futuro de uma nova sociedade assim denominada, tendo em vista a regulamentação da liberdade de circulação de serviços e medidas para a implementação de acesso aos bens e serviços por parte dos Estados-membros. Foi então utilizada pela primeira vez a expressão tic - tecnologias da informação e comunicação.

Manuel castells destaca os aspectos centrais do paradigma da sociedade da informação, que representam sua base material:

A primeira característica do novo paradigma é que a informação é sua matéria-prima: são tecnologias para agir sobre a informação, não apenas informação para agir sobre a tecnologia [...]

O segundo aspecto refere-se à penetrabilidade dos efeitos das novas tecnologias. como a informação é uma parte integral de toda atividade humana, todos os processos de nossa existência individual e coletiva são diretamente moldados (embora, com certeza, não determinados) pelo novo meio tecnológico.

A terceira característica refere-se à lógica de redes em qualquer sistema ou conjunto de relações, usando essas novas tecnologias da informação. A morfologia da rede parece estar bem adaptada à crescente complexidade da interação e aos modelos imprevisíveis do desenvolvimento derivado do poder criativo dessa interação [...]

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Em quarto lugar, referente ao sistema de redes, mas sendo um aspecto claramente distinto, o paradigma da tecnologia da informação é baseado na flexibilidade. não apenas os processos são reversíveis, mas organizações e instituições podem ser modificadas, e até mesmo fundamentalmente alteradas, pela reorganização de seus componentes [...] torna-se possível inverter as regras sem destruir a organização, porque a base material da organização pode ser reprogramada e realterada [...]

Então, uma quinta característica dessa revolução tecnológica é a crescente convergência de tecnologias específicas para um sistema altamente integrado, no qual trajetórias tecnológicas antigas ficam literalmente impossíveis de se distinguir em separado. Assim, a microeletrônica, as telecomunicações, a optoeletrônica e os computadores são todos integrados nos sistemas de informação.3a sociedade da informação, portanto, muda e dita comportamentos, regendo as formas de comunicação, os relacionamentos interpessoais, o consumo e a própria vida em sociedade.

Trata-se de uma nova fase na especificação dos direitos humanos fundamentais4, uma nova orientação internacional em busca do direito ao desenvolvimento através da interação da comunicação da telemática e das informações em tempo real, com transmissão global e assimilação simultânea.

O direito ao esquecimento5impõe-se como um novo direito fundamental, lado a lado com o direito à proteção de dados pessoais e o direito à portabilidade de dados. Segundo stefano rodotà, em artigo publicado no periódico La Repubblica, trata-se do direito de governar a própria memória, para devolver a cada um a possibilidade de se reinventar, de construir personalidade e identidade, libertando-se da tirania das jaulas em que uma memória onipresente e total pretende aprisionar tudo (...) a internet deve aprender a esquecer, através do caminho de uma memória social seletiva, ligada ao respeito aos direitos fundamentais da pessoa (tradução livre).6

O debate reaparece ciclicamente: é justo permitir que os usuários apaguem para sempre seus rastros espalhados na rede? a internet, em outras palavras, deve esquecer7

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na teoria, o direito ao esquecimento se direciona a um problema urgente na era digital: é muito difícil escapar do seu passado na internet, pois cada foto, atualização de status e tweet vive para sempre na nuvem.8 o grande dilema consiste no fato de os registros do passado - capazes de serem armazenados eternamente - poderem gerar consequências posteriormente à data em que o evento foi esquecido pela mente humana.9tal fato é agravado pela circunstância de que os usuários da internet, cujos passos são sempre reconstruídos pelas técnicas de rastreamento, são frequentemente privados da escolha quanto à técnica de obtenção de dados e quanto às informações que serão colhidas a seu respeito.10isso decorre da ideia de uma internet cada vez mais personalizada, ou, numa linguagem mais enfática, mais vigiada pelas principais empresas que operam no setor, que disso extraem seus lucros bilionários.11a discussão quanto à reexibição de dados passados da vida dos indivíduos já foi alvo de tradicionais debates que marcaram época, como no caso Melvin vs. Reid, enfrentado pelo tribunal de apelação da califórnia, em 1931, reconhecendo, então, o que hoje se concebe como direito ao esquecimento, sem o uso daquela nomenclatura.12a pior situação já vivenciada por um profissional em início de carreira pode ser vinculada com a primeira e mais importante informação a seu respeito, como ocorreu no caso da professora stacy synder, cuja carreira foi arruinada pela postagem, na rede social My space, de uma foto sua em uma festa, tirada há muito tempo, segurando uma bebida e utilizando chapéu de pirata, com a legenda "pirata bêbado".13

É MUITO DIFÍCIL ESCAPAR DO SEU PASSADO NA INTERNET, POIS CADA FOTO, ATUALIZAÇÃO DE STATUS E TWEET VIVE PARA SEMPRE NA NUVEM

Hipótese semelhante foi a de um psicoterapeuta canadense com então 66 anos que tentava entrar no país quando o funcionário da alfândega encontrou na internet um artigo de sua autoria, redigido trinta anos antes, no qual descrevia sua experiência utilizando LSD, uma das mais importantes substâncias alucinógenas.14

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É frequentemente lembrada a decisão do tribunal constitucional Federal da alemanha no caso lebach, que entrou para a história dos grandes crimes, despertando o clamor da opinião pública, e foi tema de um documentário produzido pela rede alemã ZDF (Zweites Deutsches Fernsehen), cuja exibição foi impedida por aquela corte.15no dia 13 de maio de 2014, em decisão inédita, a Grande seção do tribunal de Justiça da União Europeia reconheceu, em face da Google, o direito ao esquecimento na internet, determinando a remoção de dados sensíveis dos seus resultados de busca. O caso teve como origem um litígio entre a Google e um cidadão espanhol, Mario costeja González. Ele pretendia excluir seus dados pessoais da ferramenta de busca, especialmente com relação ao fato de que seu imóvel, nos anos 1990, fora levado a leilão para pagamento de dívidas com a previdência social da Espanha, sendo que o débito chegou a ser quitado de modo a evitar a venda judicial. Foi rejeitado o argumento da Google de que somente exibe conteúdos indexáveis (que estão online e são passíveis de serem encontrados) e não teria responsabilidade sobre o seu conteúdo. Neste importante "leading case", o tribunal europeu reconheceu a responsabilidade das ferramentas de busca pelo processamento de dados pessoais exibidos nos resultados, devendo o direito ao esquecimento, na hipótese concreta, prevalecer sobre o direito do público de conhecer e ter fácil acesso à informação. A informação a ser excluída deve ser interpretada segundo o seu contexto, tendo sido considerada, no caso, ultrapassada e irrelevante, diante do que não seria necessária a sua preservação.

Os casos mais emblemáticos julgados pelo Judiciário brasileiro acerca do direito ao esquecimento envolveram a apresentadora infantil Xuxa e o programa televisivo "linha Direta Justiça", sendo ainda relacionado ao tema um episódio ligado a uma suposta fraude em um concurso público para a magistratura.16o direito ao esquecimento se insere em um delicado conflito de interesses. De um lado, o interesse público aponta no sentido de que fatos passados sejam relembrados, considerando ainda a liberdade de imprensa e de expressão, bem como o direito da coletividade à informação; do outro, há o direito de não ser perseguido por toda a vida por acontecimento pretérito.17

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A tutela do direito ao esquecimento decorre da cláusula geral de tutela da pessoa humana, cuja dignidade é reconhecida como princípio fundamental da república no art....

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