Direito ao trabalho decente e proteção internacional dos direitos sociais

AutorFlávia Piovesan
Páginas169-185

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1. Introdução

Como compreender os direitos sociais sob a perspectiva da concepção contemporânea de direitos humanos? Qual é a principiologia aplicável aos direitos sociais? Qual é o alcance da proteção dos direitos sociais e do direito ao trabalho decente no âmbito global e regional interamericano? Como fortalecer a projeção e a incorporação de parâmetros protetivos globais e regionais no âmbito sul-americano? Como intensificar o diálogo vertical e horizontal de jurisdições visando à pavimentação de um ius commune em direitos sociais na região sul-americana?

São estas as questões centrais a inspirar o presente estudo, que tem por objetivo maior enfocar a proteção dos direitos sociais, com destaque ao direito ao trabalho decente, sob o prisma internacional e regional interamericano, com ênfase aos desafios da implementação dos direitos sociais no contexto sul-americano visando à pavimentação de um constitucionalismo regional amparado em um ius commune social.

2. A afirmação histórica dos direitos humanos e os direitos sociais

Os direitos humanos refletem um construído axiológico, a partir de um espaço simbólico de luta e ação social.

No dizer de Joaquin Herrera Flores1, os direitos humanos traduzem processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Invocam uma plataforma emancipatória voltada à proteção da dignidade e à prevenção do sofrimento humano. No mesmo sentido, Celso Lafer2, lembrando Danièle Lochak, realça que os direitos humanos não apresentam uma história linear, não compõem a história de uma marcha triunfal, nem a história de uma causa perdida de antemão, mas a história de um combate.

Enquanto reivindicações morais, os direitos humanos nascem quando devem e podem nascer. Como realça Norberto Bobbio, os direitos humanos não nascem todos de uma vez e nem de uma vez por todas3. Para Hannah Arendt, os direitos humanos não são um dado, mas um construído, uma invenção humana, em constante processo de construção e reconstrução4. Simbolizam os direitos humanos, para parafrasear Luigi Ferrajoli5, a lei do mais fraco contra a lei do mais forte, na expressão de um contrapoder em face dos absolutismos, advenham do Estado, do setor privado ou mesmo da esfera doméstica.

Considerando a historicidade dos direitos humanos, destaca-se a chamada concepção contemporânea de direitos

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humanos, que veio a ser introduzida pela Declaração Universal de 1948 e reiterada pela Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993.

Esta concepção é fruto do movimento de internacionalização dos direitos humanos, que surge, no pós-guerra, como resposta às atrocidades e aos horrores cometidos durante o nazismo. É neste cenário que se vislumbra o esforço de reconstrução dos direitos humanos, como paradigma e referencial ético a orientar a ordem internacional. A barbárie do totalitarismo significou a ruptura do paradigma dos direitos humanos, por meio da negação do valor da pessoa humana como valor fonte do Direito. Se a Segunda Guerra significou a ruptura com os direitos humanos, o pós-guerra deveria significar a sua reconstrução. Nas palavras de Thomas Buergenthal: "O moderno Direito Internacional dos Direitos Humanos é um fenômeno do pós-guerra. Seu desenvolvimento pode ser atribuído às monstruosas vio lações de direitos humanos da era Hitler e à crença de que parte destas violações poderiam ser prevenidas se um efetivo sistema de proteção inter nacional de direitos humanos existisse."6

Fortalece-se a ideia de que a proteção dos direitos humanos não deve se reduzir ao domínio reservado do Estado, porque revela tema de legítimo interesse internacional. Prenuncia-se, deste modo, o fim da era em que a forma pela qual o Estado tratava seus nacionais era concebida como um problema de jurisdição doméstica, decorrência de sua soberania. Para Andrew Hurrell: "O aumento significativo das ambições normativas da sociedade internacional é particularmente visível no campo dos direitos humanos e da democracia, com base na idéia de que as relações entre governantes e governados, Estados e cidadãos, passam a ser suscetíveis de legítima preocupação da comunidade internacional; de que os maus-tratos a cidadãos e a inexistência de regimes democráticos devem demandar ação internacional; e que a legitimidade internacional de um Estado passa crescentemente a depender do modo pelo qual as sociedades domésticas são politicamente ordenadas."7

Neste contexto, a Declaração de 1948 vem inovar a gramática dos direitos humanos, ao introduzir a chamada concepção contemporânea de direitos humanos, marcada pela universalidade e indivisibilidade destes direitos.

Universalidade porque clama pela extensão universal dos direitos humanos, sob a crença de que a condição de pessoa é o requisito único para a titularidade de direitos, considerando o ser humano como um ser essencialmente moral, dotado de unicidade existencial e dignidade, esta como valor intrínseco à condição humana. Indivisibilidade porque a garantia dos direitos civis e políticos é condição para a observância dos direitos sociais, econômicos e culturais e vice-versa. Quando um deles é violado, os demais também o são. Os direitos humanos compõem, assim, uma unidade indivisível, interdependente e inter-relacionada, capaz de conjugar o catálogo de direitos civis e políticos com o catálogo de direitos sociais, econômicos e culturais. Sob esta perspectiva integral, identificam-se dois impactos: a) a inter-relação e interdependência das diversas categorias de direitos humanos; e b) a paridade em grau de relevância de direitos sociais, econômicos e culturais e de direitos civis e políticos.

Para Asbjorn Eide: "The term "social rights", sometimes called "socio-economic rights", refers to rights whose function is to protect and to advance the enjoyment of basic human needs and to ensure the material conditions for a life in dignity. The foundations of these rights in human rights law is found in the Universal Declaration of Human Rights, Article 22: "Everyone, as a member of society, has the right to social security and is entitled to realisation, through national effort and international cooperation and in accordance with the organisation and resources of each state, of the economic, social and cultural rights indispensable for his dignity and the free development of his personality."8

Ao examinar a indivisibilidade e a interdependência dos direitos humanos, leciona Hector Gros Espiell: "Só o reconhecimento integral de todos estes direitos pode assegurar a existência real de cada um deles, já que sem a efetividade de gozo dos direitos econômicos, sociais e culturais, os direitos civis e políticos se reduzem a meras categorias formais. Inversamente, sem a realidade dos direitos civis e políticos, sem a efetividade da liberdade entendida em seu mais amplo sentido, os direitos econômicos, sociais e culturais carecem, por sua vez, de verdadeira significação. Esta idéia da necessária integralidade, interdependência e indivisibilidade quanto ao conceito e à realidade do conteúdo dos direitos humanos, que de certa forma está implícita na Carta das Nações Unidas,

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se compila, se amplia e se sistematiza em 1948, na Declaração Universal de Direitos Humanos, e se reafirma definitivamente nos Pactos Universais de Direitos Humanos, aprovados pela Assembléia Geral em 1966, e em vigência desde 1976, na Proclamação de Teerã de 1968 e na Resolução da Assembléia Geral, adotada em 16 de dezembro de 1977, sobre os critérios e meios para melhorar o gozo efetivo dos direitos e das liberdades fundamentais (Resolução n. 32/130)."9

A partir da Declaração de 1948, começa a se desenvolver o Direito Internacional dos Direitos Humanos, mediante a adoção de diversos instrumentos internacionais de proteção. A Declaração de 1948 confere lastro axiológico e unidade valorativa a este campo do Direito, com ênfase na universalidade, na indivisibilidade e na interdependência dos direitos humanos.

O processo de universalização dos direitos humanos permitiu a formação de um sistema internacional de proteção destes direitos. Este sistema é integrado por tratados internacionais de proteção que refletem, sobretudo, a consciência ética contemporânea compartilhada pelos Estados, na medida em que invocam o consenso internacional acerca de temas centrais aos direitos humanos, na busca da salvaguarda de parâmetros protetivos mínimos - do "mínimo ético irredutível". Neste sentido, cabe destacar que, até 2014, o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos contava com 167 Estados-partes; o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos, Sociais e Culturais contava com 161 Estados-partes; a Convenção contra a Tortura contava com 154 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação Racial contava com 176 Estados-partes; a Convenção sobre a Eliminação da Discriminação contra a Mulher contava com 187 Estados-partes; e a Convenção sobre os Direitos da Criança apresentava a mais ampla adesão, com 193 Estados-partes10.

Ao lado do sistema normativo global, surgem os sistemas regionais de proteção, que buscam internacionalizar os direitos humanos nos planos regionais, particularmente na Europa, América e África. Adicionalmente, há um incipiente sistema árabe e a proposta de criação de um sistema regional asiático. Consolida-se, assim, a convivência do sistema global da ONU com instrumentos do sistema regional, por sua vez, integrado pelo sistema americano, europeu e africano de proteção aos direitos humanos.

Os sistemas global e regional não são dicotômicos, mas complementares. Inspirados pelos...

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