O Direito Civil brasileiro e a perpectiva comparativa na obra de Véra Fradera

AutorLeonardo Brandelli
Páginas247-255

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Ver Nota1

O debate sobre a pertinência e adequação dos códigos civis, elaborados nos séculos dezenove e vinte, com base em modelos europeus e vigentes nas antigas colônias da América do Sul, requereu e ainda requer uma análise comparatista específica do Direito Civil e o esforço criativo dos civilistas. É nessa perspectiva comparatista criativa que se inscreve a obra da jurista Véra Maria Jacob Fradera, no Brasil.

Nesses países, ainda marcados pelas diversas formas de escravidão e pela permanência de traços de uma organização social colonial profundamente hierarquizada, a racionalidade, os institutos, conceitos e normas dos códigos civis se mesclaram com os direitos dos reinos e com cultura jurídica colonial, sofrendo adaptações.

Clóvis do Couto e Silva, ao examinar o processo de codificação, aponta, também, a inocorrência de movimentos revolucionários e culturais nitidamente burgueses, na América do Sul, como um dos elementos de diferenciação na constituicão do Direito Civil brasileiro:

A razão pode residir de não havermos tido no século XIX uma revolução como ocorreu na Itália com o Risorgimento, que favoreceu, decerto, a adoção de idéias do Código Civil francês no Código de 1865. Os juristas anteriores à independência do Brasil eram todos praxistas, preocupados

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com a aplicação no foro dos princípios das Ordenações e suas leis complementares ou extravagantes.2

Essa peculiaridade da formação social sul-americana também impediu, desde o início da independência política desses países, a ampliação e afirmação da cidadania liberal baseada na liberdade e igualdade formais, solo sobre qual são plantados os institutos centrais do Direito Civil: o contrato, a propriedade e o casamento civil.

Todos esses traços das sociedades coloniais emancipadas politicamente resultaram em dificuldades e demora na aprovação de códigos civis, especialmente no Brasil, no emblemático e penoso processo de elaboração Código Civil de 1916.

Coube, portanto, aos civilistas a tarefa de aproximar distâncias, traduzir conceitos culturalmente enraizados, preencher lacunas, tudo isso para dar coerência e inteligibilidade aos institutos e instrumentos constantes dos códigos civis, como assinala Véra Fradera:

Aliás, é notório que nos países onde não existe uma longa tradição jurídica paralela à cultura nacional, a própria codificação depende da contribuição recebida da doutrina jurídica. Assim, no caso do Brasil e de outros sistemas mais recentes de codificação mista, o papel desempenhado pela doutrina é fundamental.3

Por outro lado, se verificam alguns exageros e distorções nesse processo de aproximação entre o direito e teorias estrangeiras e o direito e as necessidades da sociedade nacional. Sobre esse aspecto da atividade dos juristas, Véra Fradera identifica um dos muitos problemas que afetou e afeta os estudos de Direito Civil, no Brasil:

Com efeito, as codificações tão decantadas pelos juristas do passado e ainda hoje por muitos em nosso país, produziram alguns males, como, por exemplo, o positivismo, moléstia ainda não totalmente erradicada entre nós, não que a existência de um vínculo entre positivismo e codificação

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seja obrigatória, mas sim porque todo código tem tendência a desenvolver certo exagero no apego à lei.4Se, por um lado, a recepção dos códigos novecentistas, nos países sul-americanos, enfrentou essa série de dificuldades, por outro lado, as sucessivas crises da economia liberal e de suas formas de regulação jurídica da sociedade produziram abalos na estrutura política e jurídica das democracias modernas que resultaram, inclusive, em dois grandes conflitos armados na Europa no século vinte.

Ao final da Segunda Guerra, foram refundadas as bases políticas dos Estados e das democracias europeias, estabelecendo-se textos constitucionais que tentam corrigir os rumos, reconhecendo os erros pretéritos e reafirmando algumas propostas liberais, que permaneceram latentes na primeira fase do liberalismo. Segundo Véra Fradera:

Nos dias atuais, ocorre uma nova reflexão a respeito dos direitos fundamentais provocada pela ocorrência, na segunda metade do século XX de regimes contrários ao reconhecimento dos direitos fundamentais gerando, desta sorte, uma releitura das declarações de direitos.5Dessa refundação da arquitetura político-constitucional, que reafirma os direitos clássicos do liberalismo, como a liberdade e a igualdade formal, emergem novos direitos, deveres e limites, que condicionam o exercício do poder estatal e a atividade privada dos cidadãos, ambas orientadas por compromissos éticos de manutenção do bem estar comum e da vedação da violência privada ou estatal, contra qualquer membro da sociedade.

Apesar disso, grande parte das relações sociais de cunho pessoal e patrimonial entre os cidadãos permaneceu regida pelos cânones civilistas anteriormente codificados, como ocorreu na Alemanha e na Itália, cujos códigos civis datam de 1900 e 1942, respectivamente, e convivem com...

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