Direito à concepção: uma análise da limitação de idade imposta pelo Conselho Federal de Medicina

AutorBeatriz Schettini
Páginas71-86

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1. Introdução

Por meio do presente artigo, faz-se uma investigação sobre o impacto dos avanços biotecnológicos em conceitos até então considerados imutáveis do Direito de Família. Busca-se especialmente analisar a possibilidade de utilização das técnicas de reprodução humana assistida com o objetivo de atender ao legítimo interesse humano de procriar, com a consequente concretização do projeto parental.

Justifica-se a importância do trabalho em virtude do Conselho Federal de Medicina proibir, pela primeira vez, por meio da Resolução 2013/2013, o uso dessas técnicas reprodutivas por mulheres com mais de cinquenta anos, ainda que essas mulheres não apresentem nenhum problema de saúde que possa prejudicar a gravidez, a sua saúde ou a do futuro filho.

Cerca de dois anos depois, referida norma deontológica fora inteiramente revogada pela Resolução 2121/2015 do Conselho Federal de Medicina, que manteve no item dois a imposição da limitação da idade de cinquenta anos para reprodução. A nova Resolução acrescentou a possibilidade de exceção à regra, desde que o médico justifique com fundamento técnico e científico a possibilidade de participação de candidata com mais de cinquenta anos ao procedimento médico, e que a paciente esteja devidamente esclarecida quanto aos riscos envolvidos. Nos mesmos termos da norma deontológica de 2015, a vigente Resolução do Conselho médico sobre reprodução humana mantém referida limitação ao direito de procriação, o que consta no item três da Resolução 2167/2017.

Nesse contexto, a busca pela investigação tem por objetivo analisar a possibilidade jurídica de uma norma ética médica (Resolução criada para orientar os médicos) restringir ou limitar o exercício de direitos expressos no texto constitucional. E, ainda, se os particulares que não são profissionais da medicina estão obrigados a cumprir referida Resolução, acatando suas proibições, já que no Brasil não há legislação específica sobre reprodução humana assistida.

Para tanto, tem-se que o fundamento democrático do ordenamento jurídico brasileiro, bem como do direito privado, é a possibilidade de concretização da autonomia privada das pessoas, por meio da garantia da liberdade para efetivação dos seus direitos fundamentais, especialmente no direito de constituir uma família, seja essa oriunda da adoção, da concepção por meio do ato sexual ou concebida com a ajuda dos avanços das ciências da vida.

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2. Os avanços da biotecnologia e sua contribuição para a mudança no conceito de família

O cenário de possibilidades apresentado ao mundo por meio das descobertas e avanços realizados pela evolução biotecnológica colocou a sociedade diante de uma nova realidade: manipulação genética, mapeamento do genoma humano, exame de DNA, clonagem, cirurgia de mudança de sexo, pesquisas com células-tronco, seleção de sexo de embriões, etc., realidade essa que levantou e ainda levanta muitas indagações e poucas respostas.

As reflexões, dúvidas e interrogações surgem de todas as áreas do conhecimento. Médicos, sociólogos, juristas, geneticistas, biólogos e filósofos buscam, cada um dentro da sua especialidade, estabelecer certos limites éticos e jurídicos para o emprego e utilização dessas técnicas médicas, principalmente quando é o ser humano o alvo central da biotecnologia.

No momento em que veio ao mundo, na década de setenta, o primeiro bebê de proveta, Louise J. Brown, nascida na Inglaterra por meio da utilização das técnicas de reprodução humana assistida, o Direito de Família também se viu diante de novo cenário, apresentado pelas possibilidades abertas pelas ciências, qual seja, a possibilidade de procriação fora do ato sexual. Sendo que, em 1984, nasceu na região metropolitana de Curitiba o primeiro bebê de proveta do Brasil, Ana Paula B. Caldeira.

Assim, o Direito de Família tem se encontrado diante de situações até pouco tempo desconhecidas e inesperadas, por exemplo, a revolução causada na família diante do surgimento da prova pericial, por meio do DNA, bem como a possibilidade de concepção de um filho fora da relação sexual ou a chamada gestação de substituição (técnica vulgarmente conhecida como barriga de aluguel). Esses avanços têm demonstrado a necessidade de repensar conceitos antes preestabelecidos e considerados incontestáveis pelas codificações oitocentistas.

A presunção de que a mãe de um bebê é aquela que dá a luz (mater semper certa est) ou a presunção de que o pai da criança é o marido da mãe (pater is est) já não representa uma verdade imutável e incontestável. A utilização das técnicas de reprodução humana medicamente assistidas trouxeram novidades para o cenário jurídico, uma vez que permitiram a abertura e o questionamento de conceitos codificados e até pouco tempo considerados absolutos e imutáveis.

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O modelo da família traçada pelo Código Civil de 1916 (patriarcal, matrimonializada, hierarquizada e calcada em inúmeras formas de estabelecimentos de presunções de filiação) desvanece diante das novas perspectivas abertas pela ciência. Essas inovações médicas permitem que mulheres e homens sozinhos realizem o projeto parental, ou ainda que casais homoafetivos tenham filhos, concretizando, assim, o direito ao livre planejamento familiar garantido na Constituição da República. Nesse sentido, aponta Renata Barbosa de Almeida:

Quando a ciência se deu conta da reprodução, entretanto, várias dessas referências foram perdendo sustentáculo. A partir do momento em que a relação sexual tornou-se objeto do conhecimento científico, ela ganha relevo e a prole, por sua vez, é encarada como mero resultado de um procedimento bem realizado. Ainda que tênue, a alteração da análise é determinante. O refletor que era destinado ao fim como fatalidade, em detrimento do meio, altera o destaque: o fenômeno reprodutivo passa a ser objeto de apreensão científica. Superado o cunho “natural” que até então impregnava a reprodução, a suposição de sua “incontrolabilidade” é rebatida. Muito diferente disso, o resultado reprodutivo começa a ser encarado como objeto de escolha, fruto da racionalidade e não mais da divindade.2Nesse contexto, o presente texto pretende investigar se é legítimo e acima de tudo constitucional, em face do ordenamento jurídico pátrio, limitar o direito de uma mulher a ter filhos por meio da utilização das técnicas de reprodução humana assistida em razão unicamente de sua idade.

Questiona-se a limitação ao exercício do direito reprodutivo, garantido pelo art. 226, §7º, da Constituição da República, imposta não por uma lei, mas sim por Resolução do Conselho Federal de Medicina, norma ética administrativa que assim dispõe em seus princípios gerais:

  1. As técnicas de RA podem ser utilizadas desde que exista probabilidade de sucesso e não se incorra em risco grave de saúde para o (a) paciente ou o possível descendente.
    § 1º A idade máxima das candidatas à gestação por técnicas de RA é de 50 anos. § 2º As exceções a esse limite serão aceitas baseadas em critérios técnicos e

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científicos fundamentadas pelo médico responsável quanto à ausência de comorbidades e após esclarecimento ao(s) candidato(s) quanto aos riscos envolvidos para a paciente e para os descendentes eventualmente gerados a partir da intervenção, respeitando-se a autonomia da paciente.3A limitação de idade faz parte do texto da Resolução 2168/2017 do Conselho Federal de Medicina, norma direcionada aos médicos quando da realização dos procedimentos de reprodução humana assistida. As Resoluções médicas, ao suprirem o vazio legislativo sobre o tema no Brasil, acabaram regulamentando o assunto desde a década de noventa, quando fora publicada em 1992 a primeira Resolução do CFM sobre a utilização das técnicas de reprodução assistida. Nesse sentido, esclarecem Rettore e Sá:

No Brasil, a reprodução humana assistida – incluindo-se a gestação de substituição (também denominada cessão temporária de útero) – é regulada pelo Conselho Federal de Medicina desde 1992, por meio de norma administrativa autoproclamada um “dispositivo deontológico a ser seguido pelos médicos brasileiros” (CONSELHO FEDERAL DE MEDICINA, 1992), inexistindo regulação expressa do tema por meio de Lei Federal. Essa norma sofreu consecutivas alterações em 2010, 2013 e 2015, ampliando a possibilidade de acesso à técnica para uma gama maior de pessoas, bem como incorporando tanto atualizações que dizem respeito a necessidades biomédicas e de saúde, como inovações identificadas no próprio ordenamento jurídico nacional4.

Projetos de Leis sobre reprodução humana assistida tramitam no Congresso Nacional desde a década de 90. São quinze os Projetos sobre o tema, todos apensados ao Projeto n. 1184/035. Todavia, até o momento, nenhum Projeto de Lei obteve êxito, o que faz com que normas deontológicas assumam o papel da legislação, que ainda não chegou.

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Não obstante, referidas Resoluções assumirem em face da lacuna...

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