O direito contratual e os princípios da eticidade e da socialidade: autonomia privada, boa-fé objetiva e função social do contrato

AutorLuiz Fernando Amaral
Páginas43-80
CAPÍTULO 3
O DIREITO CONTRATUAL E OS PRINCÍPIOS DA ETICIDADE
E DA SOCIALIDADE: AUTONOMIA PRIVADA, BOA- OBJETIVA
E FUNÇÃO SOCIAL DO CONTRATO
A ideologia liberal, ainda que disseminada pelas codificações que se seguiram
ao Código Civil Napoleônico de 1804, acabou por sofrer atenuações ao longo do
tempo. A compreensão de mundo baseada essencialmente na liberdade individual
demonstra um certo esgotamento a partir do desmedido exercício dessa liberdade.
Ademais, a propalada igualdade oriunda dos princípios da Revolução Francesa se
restringe à perspectiva formal – igualdade perante a lei – e acaba por criar clara
desigualdade entre os diversos setores sociais1, situação agravada pelos conflitos
bélicos mundiais.
O esgotamento do modelo liberal puro é atribuído ao exacerbado individualismo
do período e às crises que a ele também são tributadas. O afastamento do Estado e a
concepção do Estado mínimo começam a ser reavaliados. O constitucionalismo não se
contém em sua dimensão garantista2 e consolida o intento de readequar o modelo de
Estado, atribuindo a este um papel menos absenteísta. Nesse contexto, os princípios
basilares do direito contratual, quais sejam, autonomia da vontade e pacta sunt servan-
da, passam por uma reformulação que ameniza a importância que eles desempenham
nessa matéria.
A perspectiva estrutural do contrato no direito moderno dará espaço a uma outra.
Não se falará mais no contrato como elemento que visa simplesmente a consubstanciar
a liberdade individual por meio da autonomia da vontade e pela obrigatoriedade dos
contratos. Doravante, o contrato será compreendido numa lógica que supera a estrutura
e se afirma na função que os institutos jurídicos3 desenvolvem em prol da sociedade.
Nasce, portanto, a concepção da sociedade como um grande organismo em face do qual
todos devem desempenhar funções.
A ética nas relações contratuais passará a ser efetivada por meio da avaliação do
conteúdo dos contratos. Os contratos revelarão um programa4 – em geral essencialmente
econômico – que deve ser considerado no seu conjunto. Esse fato implicará restrição à
autonomia da vontade e sujeitará as obrigações contratuais a valores sociais. Se ao tempo
1. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Direitos humanos fundamentais. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.p. 43) afirma: “(...) a
marginalização da classe operária, como que excluída dos benefícios da sociedade, vivendo em condições subumanas e
sem dignidade, provocou, em reação, o surgimento de uma hostilidade dessa classe contra os ‘ricos’, contra os ‘poderosos’,
que favorece o recrutamento de ativistas revolucionários, inclusive terroristas. E na fórmula marxista a luta de classes.
Tal situação era uma ameaça gravíssima à estabilidade das instituições liberais, portanto, à continuidade do processo de
desenvolvimento econômica. Urgia superá-la e isto suscitou uma batalha intelectual e política”.
2. NUSDEO, Fábio. Curso de economia..., cit., p. 204-205.
3. BOBBIO, Norberto. Da estrutura à função: novos estudos de teoria do direito. Barueri: Manole, 2007, p. 79.
4. ROPPO, Enzo. O contrato..., cit., p. 223.
O CONTRATO E A TEORIA DO ADIMPLEMENTO SUBSTANCIAL • LUIZ FERNANDO DE C. P. DO AMARAL
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do contrato moderno a ética contratual se conformava com a certeza e o cumprimento
dos contratos, a partir da concepção social do direito ela se concretizará por meio de uma
avaliação que leve em conta o equilíbrio contratual5.
A busca por tal equilíbrio está baseada na ideia de igualdade material – essencial ao
modelo de Estado Social de Direito – segundo a qual as partes em um contrato não devem
ser tidas como iguais simplesmente perante a lei, mas sobretudo a partir da análise de suas
condições pessoais e no que tange à real disposição acerca das cláusulas contratuais. A
preocupação estará mais atrelada à realidade do contrato e não à autonomia da vontade
como condição objetiva de todo e qualquer indivíduo. A boa-fé objetiva também ingres-
sará de maneira significativa na disciplina contratual e servirá de baliza à apreciação da
eticidade nas relações privadas.
Conforme veremos, são esses os pilares que farão do contrato um instituto jurí-
dico sujeito à socialidade – aliás, conforme todo o direito privado –, de tal modo que
não caberá ao Estado apenas garantir a execução dos contratos por meio de decisões
judiciais que a imponham ou que sancionem o inadimplemento. Ao contrário, o Estado
terá papel muito mais ativo6 nesse momento em que passa a ser delineado o dirigismo
contratual7. De alguma maneira, o contrato prosseguirá sendo lei entre as partes, mas
haverá um componente de justiça e equilíbrio nas relações contratuais que será avaliado
em hipóteses nas quais uma das partes seja prejudicada inclusive pela anterior amplitude
da autonomia da vontade.
3.1. O ADVENTO DO ESTADO SOCIAL E DEMOCRÁTICO DE DIREITO
O sistema capitalista de produção, sobretudo quando associado à ampla
garantia dos direitos de liberdade e à igualdade meramente formal, propicia o
surgimento de setores marginalizados nas sociedades liberais – especialmente nos
países atingidos pelas grandes guerras. A liberdade individual confere ao indivíduo
a possibilidade de apropriar-se de outros que passam a servi-lo. Essa realidade
acaba por demonstrar a necessidade de direitos fundamentais que não se baseiem
5. Rubén Stiglitz (Autonomía de la voluntad y revisión del contrato..., cit., p. 55) comenta a equivalência das prestações com
essencial aos contratos bilaterais, afirmando: “Los contratos bilaterales o sinalagmáticos son aquellos que presuponen un
intercambio; es la reciprocidad de las obligaciones lo que caracteriza a dicha categoria contractual. Esta correspectividad
de deberes es la que hace efectiva (potencia) el intercambio de bienes o de servicios, que es lo que constituye la función
económica essencial del contrato. La bilateralidad, el principio commutativo, el sinalagma, presupone la relación de
equivalencia”.
6. Arnaldo Rizzardo (Contrato. 11. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2010.p. 33) comenta o dirigismo contratual: “Há
necessidade do Estado em intervir nas disposições dos negócios e reduzir a liberdade contratual, impedindo a
celebração de determinadas obrigações, adscrevendo cláusulas diretórias, negando valor a objetivos leoninos,
exigindo certas contraprestações e disciplinando as preferências. Esta função é, também, denominada regula-
mentação legal do contrato, e dirige-se a controlar o individualismo contratual. Não equivale ao princípio da
supremacia da ordem pública, mais amplo e abstrato, mas procura circunscrever a atuação do Estado em setores
particularizados”.
7. DINIZ, Maria Helena. Curso de direito civil brasileiro. V. 3..., cit., p. 26.
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CAPÍTULO 3 • O DIREITO CONTRATUAL E OS PRINCÍPIOS DA ETICIDADE E DA SOCIALIDADE
apenas na liberdade, mas também em valores que promovam a igualdade8 do ponto
de vista material9.
Não se deve negar os avanços em matéria de direitos fundamentais promovidos pelo
liberalismo, sobretudo se tomarmos por base o regime absolutista que simplesmente
ignorava os direitos de liberdade. Contudo, o exercício dessa liberdade passa a exigir
balizas que são atribuídas ao Estado. Este sai de sua posição absenteísta e passa à condição
de promotor de direitos que buscarão a realização da igualdade material10.
O liberalismo trabalha com a ideia de igualdade formal e busca conferir a liberdade
como um direito. Todavia, a realidade social demonstra que para o exercício da liberda-
de é preciso, antes, a realização de um poder11. Essa ideia de poder está ligada ao papel
que o Estado terá na equalização das desigualdades sociais12. São as políticas públicas
que farão com que os indivíduos possam exercer a liberdade. Observamos, também, a
preocupação com a injustiça social decorrente do exercício absoluto da liberdade e da
mera igualdade perante a lei.
O modelo de Estado advindo dessa constatação do esgotamento das bases puramente
liberais deixará de conter a ação do ente estatal, levando-o a um certo protagonismo na
ordem econômica e a um determinado dirigismo no âmbito das relações privadas. O
absenteísmo do Estado liberal é substituído pelo protagonismo do Estado social. André
Ramos Tavares13 lembra que o advento do Estado social se verifica de maneira mais
evidente após a I Guerra Mundial e pondera as razões para sua existência a partir da
marginalização de boa parte dos indivíduos que viviam nos países que serviram de palco
ao conflito bélico. Surge a ideia de um patamar social mínimo.
8. Dalmo de Abreu Dallari (Elementos de teoria geral do Estado. 20. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 278) sustenta: “O Estado
liberal, com um mínimo de interferência na vida social, trouxe, de início, alguns inegáveis benefícios: houve um progresso
econômico acentuado, criando0se as condições para a revolução industrial; o indivíduo foi valorizado, despertando-se
a consciência para a importância da liberdade humana; desenvolveram-se as técnicas de poder, surgindo e impondo-se
a ideia do poder legal em lugar do poder pessoal. Mas, em sentido contrário, o Estado liberal criou as condições para
sua própria superação. Em primeiro lugar, a valorização do indivíduo chegou ao ultraindividualismo, que ignorou a
natureza associativa do homem e deu margem a um comportamento egoísta, altamente vantajoso para os mais hábeis,
mais audaciosos ou menos escrupulosos. Ao lado disso, a concepção individualista da liberdade, impedindo o Estado de
proteger os menos afortunados, foi a causa de uma crescente injustiça social, pois, concedendo-se a todos o direito de ser
livre, não se assegurava a ninguém o poder de ser livre. Na verdade, sob pretexto de valorização do indivíduo e proteção
da liberdade, o que se assegurou foi uma situação de privilégio para os que eram economicamente fortes”.
9. Jorge Miranda (Manual de direito constitucional. T. IV. 3. ed. Coimbra: Coimbra, 2010.p. 31) sustenta: “A passagem para o
Estado social de Direitos irá reduzir ou mesmo eliminar o cunho classista que, por razões diferentes, ostentavam antes os
direitos de liberdade e os direitos sociais. A transição do governo representativo clássico para a democracia representativa
irá reforçar ou introduzir nova componente democrática que tenderá a fazer da liberdade tanto uma liberdade – autonomia
como liberdade – participação (fechando-se, assim, o ciclo correspondente à contraposição de Constant)’.
10. Manoel Gonçalves Ferreira Filho (Direitos humanos fundamentais. 10. ed. São Paulo: Saraiva, 2008.p. 50) ensina: “O
objeto do direito social é, tipicamente, uma contraprestação sob a forma da prestação de um serviço. O serviço escolar,
quanto ao direito à educação, o serviço médico-sanitário-hospitalar, quanto ao direito à saúde, os serviços desportivos,
para o lazer etc. Ou, na impossibilidade de satisfazer o direito por uma prestação direta, uma contrapartida em dinheiro.
É o seguro-desemprego para o direito do trabalho. Deve-se, todavia, registrar que na França de 1848 se criaram os ateliers
nationaux, bem como procedeu-se a obras públicas para dar trabalho aos que não o encontravam no mercado”.
11. Essa ideia se liga à já citada passagem da obra de Tércio Sampaio Ferraz Junior (Estudos de filosofia do direito..., cit., p. 107)
na qual o autor afirma que sob o sistema capitalista de produção, fundado na liberdade moderna, a liberdade não estará
apenas ligada ao ser, mas será em grande medida uma decorrência do ter. Sendo assim, aqueles que não têm passam a não
ser livres e os que gozam a liberdade tornam-se, em determinadas circunstâncias, donos daqueles que padecem.
12. MIRANDA, Jorge. Manual de direito constitucional..., cit., p. 31.
13. TAVARES, André Ramos. Direito constitucional econômico. 2. ed. rev. atual. São Paulo: Método, 2006, p. 58.

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