O direito da criança ao esporte no Brasil

AutorPaulo Sérgio Feuz e José Tadeu Rodrigues Penteado
Páginas105-127

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1. Introdução

Nas palavras do Prof. Álvaro de Melo Filho, o desporto pode influenciar processos de mudança social, formação educacional e consolidação da identidade cultural1, justificando sua elevação à categoria constitucional, como um direito do cidadão e um dever do Estado.

O Constituinte de 1988 influenciado pelo processo histórico sociológico, situou a Educação, Cultura e o Desporto, topograficamente no Capítulo III, do Título II da Ordem Social. A educação na Seção I, art. 205, como “direito de todos e dever do Estado”, cabendo a este ainda o dever de “fomentar práticas desportivas formais e não formais, como direito de cada um”, na dicção do art. 217 da Seção II, indicando o entrelaçamento entre esses e os direitos culturais, sendo, no mínimo, prudente a indagação de suas condições de autênticos direitos fundamentais.

De meados do século XIX, período aproximado da introdução do esporte no país, até o Estado Novo, o Esporte desconheceu a interferência do poder governamental. Neste período toda organização, estruturação e funcionamento provinham das entidades organizadas pela sociedade civil, que propagavam o Esporte através de práticas esportivas e de lazer, organizadas como uma atividade social e não como atividade de interesse de governos2.

A história institucional do esporte no Brasil tem início em 1937 quando, por intermédio da Lei n. 378, de 13.03.1937, foi criada a Divisão de Educação Física do Ministério da Educação e Cultura.

No âmbito de organização do Estado, a educação que ganhara status ministerial em 1930, no primeiro período Vargas, quando foi criado o Ministério dos Negócios da Educação e Saúde Pública, ganhando autonomia como Ministério da Educação e Cultura no segundo período de Vargas, em 1953, para após a promulgação da Constituição de 1988, seguindo a diretriz topológica constitucional, ser transformada no Ministério da Educação e do Desporto através da Lei n. 8.490, de
19.11.1992, ainda que por apenas seis anos3.

O Desporto na diretriz histórica da organização estatal4 sempre esteve ligado à educação, primeiramente como uma Divisão de Educação Física do Ministério da Educação e Cultura em 19375, nessa pasta se

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transformando em Departamento de Educação Física e Desportos no ano de 19706, ganhando status de Secretaria de Educação Física e Desporto em 19787, ainda ligada ao então Ministério da Educação, e brevemente dele separado durante o governo Collor de Melo para ser Secretaria de Desportos da Presidência da República, por cinco anos, de ano de 19908 a 19959, quando junto com a Educação foi alçado à condição de Ministério.

A separação definitiva do esporte da estrutura da educação no Estado ocorreu quando formou um Mistério conjunto com o Turismo no ano de 199810, tornando-se uma pasta específica apenas em 200311, no governo Lula.

Essa vinculação do desporto a educação na organização estatal brasileira se se justifica quando observamos que, da mesma forma como na vida a escola é a base de tudo, também para o desporto a escola é o primeiro contato sistematizado da criança com diferentes elementos constitutivos das modalidades esportivas, seus fundamentos, princípios, características, regras, estratégia e tática do jogo, entre outros. A escola possibilita a apresentação do esporte de maneira lúdica, simples e em nível de exigência adequado às habilidades e capacidades físicas, motoras, cognitivas, emocionais e sociais da criança e do adolescente.

Em “A origem esportiva do Estado”, José Ortega y Gasset12 discorrendo sobre as origens da civilização, aponta que todos os grandes e principais impulsos para a construção da civilização teriam sido originados de atividades lúdicas, que inicialmente não tinham nenhum objetivo utilitário, pois a divisão das tarefas de subsistência possibilitou mais tempo livre e ócio para o ser humano desenvolver ações como a dança, a arte, os ritos religiosos desporto, cuja evolução em conjunto com o aprimoramento e exercício das capacidades vitais, apontam para o surgimento das atividades esportivas, os chamados juegos del puerto13-14, para ele, ações primárias e criadoras mais importantes e elevadas.

O esporte, derivado do jogo e da evolução natural da prática recreativa, exsurge para o ser humano, conforme explicita Eduardo Viana, das atividades lúdicas, necessárias que são à sua existência como meio de contrabalançar a luta pela vida. Essas influências surgiram, inicialmente, sob a forma de jogos naturais que, posterior-mente, num estágio superior de civilização, alcançaram o estágio de jogos desportivos, sempre ultrapassando o imediatamente utilitário, pois não renunciaram jamais à condição de fontes de prazer.15

Noutro aspecto, esporte e jogo, apesar de possuírem, em princípio, o mesmo sentido, se analisados mais profundamente possuem significados próprios, e a doutrina clássica conclui que esporte, na forma como o conhecemos atualmente, advém da combinação das atividades físicas e do jogo, enquanto manifestação lúdica inata, anterior aos métodos e sistemas de regras que lhes conferem utilidade.

Johan Huizinga apresenta o jogo como um fenômeno fundamental da cultura, que se encontra presente na linguagem, no direito, na guerra, na ciência, na poesia, na filosofia e nas artes. O jogo como atividade

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lúdica seria para ele algo que se manifesta muito antes da cultura, ou seja, é no jogo e pelo jogo que a civilização surge e se desenvolve, fazendo dele um fator distinto e fundamental, presente em tudo que acontece no mundo, como o próprio autor ressalta no prefácio da obra Homo Ludens16, na qual apresenta o papel do jogo como elemento lúdico na cultura:

A verdadeira civilização não pode existir sem um elemento lúdico, porque a civilização implica a limitação e o domínio de si próprio, a capacidade de não tomar suas próprias tendências pelo fim último da humanidade, compreendendo que se está encerrado dentro de certos limites livremente aceitos. De certo modo, civilização sempre será um jogo governado por certas regras, e a verdadeira civilização sempre exigirá o espírito esportivo, a capacidade de fair play. O fair play é simplesmente a boa-fé expressa em termos lúdicos. Para ser uma vigorosa força criadora de cultura, é necessário que este elemento lúdico seja puro, que ele não consista na confusão ou no esquecimento das normas prescritas pela razão, pela humanidade e pela fé.17

Sabemos, portanto, conforme ensina João Lyra Filho, que o jogo é anterior à cultura, ao contrário do des-porto, e que a cultura é fator condicionado à existência da sociedade humana18, na evolução da sociedade o jogo se torna esporte, seus valores se transmutam em regras e também evoluem. Apesar de muitos autores tomarem o jogo, o esporte e o desporto como sinônimos, há quem aponte esporte como o jogo ou a modalidade e desporto como modalidade organizada e praticada a partir de organizações específicas (federações).

O desporto educacional assim pensado, e daí porque imprescindível a sua organização, no mínimo, em parceria com o Ministério da Educação, deve mediar o plano unicamente recreativo e a busca de resultados imediatos, propiciando não só o surgimento de novos talentos, mas oferecendo acesso aos benefícios decorrentes do desenvolvimento físico, intelectual e social, dos valores sociais às regras que passaram a organizar o desporto, tal como na sua evolução sintetizada por Rui Cesar Publio B Correa:

(...) os valores de glória, sacrifício e morte passaram a ser contestados no período da Idade Média, uma vez que, por intervenção do Cristianismo, inspirados pela doutrina do respeito ao próximo, não permitiam tais referências para o esporte.

Mas foi por intermédio dos estudantes ingleses, na Idade Moderna, que o desporto deu um grande passo, para o seu reaparecimento. Novos esportes, novas regras, materiais, e legislação foram surgindo. As regras foram fixadas, dando uniformidade ao desporte, que passou a ser praticado de maneira criteriosa, de acordo com as normas e parâmetros a partir daí estabelecidos. Isto facilitou o seu campo de atuação, de maneira generalizada e universal, de forma que, cada vez mais, tivesse sua difusão ocorrida em larga expansão.19

Foi a condição lúdica dos juegos del puerto que, todavia, acabam por dificultar a separação entre o esporte e o lazer, e muito mais quanto ao desporto educacional, pois nem sempre o esporte é lazer, da mesma forma que o lazer não se resume ao esporte. Mas são categorias que apresentam áreas em comum, o que dificulta a sua conceituação. Quanto mais vaga a definição do que seja o esporte e o lazer, maior a probabilidade de sobreposição dos conceitos.

A origem da categorização do esporte, que perdura na maior parte do mundo, inclusive no Brasil desde sua institucionalização pelo regime militar, decorre da divulgação em 1964 do documento “Manifesto Mundial do Esporte” pelo Conseil Internationale d’Education Physique Et Sport – CIEPS, vinculado à UNESCO, “assinado pelo Prêmio Nobel da Paz Noel Baker, no qual, pela primeira vez, foi defendido que o esporte não era somente rendimento, mas que existia um esporte na escola e um esporte do homem comum”20.

O “Manifesto Mundial do Esporte” categorizou e dividiu o esporte em três grandes áreas: a) esporte na escola, esporte escolar, esporte educacional ou

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esporte-educação; b) esporte participação, esporte de lazer ou esporte de tempo livre; c) esporte de alto rendimento (EAR), esporte de alta competição ou esporte-performance.

O espectro do fenômeno esportivo que até então compreendia apenas a terceira categoria, do rendimento, da alta competição e da performance, faz uma distinção entre o esporte na escola, o esporte educacional e o esporte do tempo...

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