O direito à desconexão

AutorSandro Nahmias Melo - Karen Rosendo de Almeida Leite Rodrigues
Páginas52-94

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Conectividade e jogo de espelhos

Jogo de espelhos. É um jogo com crescimento avassalador decorrente da conectividade — na web mundial — atualmente vivenciada por todos os que habitam em grandes centros urbanos. As pessoas têm duas ou mais imagens de suas vidas: uma real e, potencialmente, várias outras no virtual. É a versão moderna do truque de circo “monga”. Neste monta-se uma caixa preta em forma de L com um espelho no meio. Com uma luz em cada lado. Num lado ica a mulher e no outro ica o macaco (pessoa fantasiada e, portanto, irreal). Quando se apaga a luz da mulher, deixa-se acesa a do macaco, aparecendo no espelho o relexo só do macaco e vice-versa.

A preferência pela vida virtual é evidenciada na pesquisa “2015 Brazil Digital Future in Focus”22. Segundo os dados coletados, os brasileiros gastam, em média, 650 horas por mês em redes sociais. E qual é a imagem reletida nas redes sociais? nesta verdadeira “vida virtual”? Ora, a que melhor convier ao usuário.

Nesse sentido, o psicanalista, doutor em Psicologia Social e consultor de treinamento e desenvolvimento organizacional Antônio Carlos de Barros Júnior escreveu sua tese de doutorado, defendida no Instituto de Psicologia da USP, “Quem vê peril não vê coração: a ferida narcísica de desempregados e a construção de imagens de si no Facebook e no LinkedIn”23. No trabalho, o pesquisador airma que, tanto no mundo real quanto no mundo virtual, vivemos uma “sociedade do espetáculo narcísico”, porque nos esforçamos para tentar atrair e cativar o público, quase que numa tentativa de nos vender como produtos indispensáveis e da mais alta tecnologia. Mas na internet a exposição parece ser ainda mais explícita, porque, segundo ele, as redes sociais agem como uma espécie de vitrine na qual as pessoas tentam se manter “‘vendáveis’ o tempo todo”.

A preferência pela vida virtual tem relexo direto no aumento da conectividade. O controle total do ambiente virtual pelo usuário é a razão da predileção. No mundo virtual vive-se em um “Black Mirror”, onde um homem frustrado com sua vida real, no virtual, pode se tornar o capitão de uma nave estelar, tal qual na série Jornada das Estrelas24.

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Muitos já têm, literalmente, uma “segunda vida” no ambiente virtual, com avatares no “Second Life”, mundo virtual criado em 1999 e mantido pela empresa Liden Lab25.

Como relação às pressões sociais, ligadas ao mundo do trabalho, observa BARROS JUNIOR que:

É nesse contexto que as redes sociais da internet em geral inserem-se, o LinkedIn e o Facebook, em particular. Inserem-se como uma vitrine de compra e venda de “mercadorias”; inserem-se como um palco onde milhões de sujeitos tentam chamar a atenção para si, seja pela viagem que realizaram (vejam as fotos de felicidade!), seja pelo currículo invejável que têm (ou parecem ter), seja pelas recomendações que receberam de colegas de trabalho, de subordinados, de chefes; seja pelo número impressionante de contatos que têm, seja lá por que aspecto de imagem própria que querem construir para o outro e serem reconhecidos por ela. (BARROS JUNIOR, 2014, p. 28)

Nesse contexto, a conectividade excessiva, voluntariamente estabelecida ou imposta por exigência de trabalho, tem resultado em problemas de saúde, os mais variados, implicando, por vezes, em atitudes que remetem a ideia de vício.

Smartphones e Nomofobia

As novas tecnologias estão revolucionando o mundo do trabalho, mas poucas, em tão pouco tempo, tem gerado mudanças culturais e comportamentais tão relevantes quanto os chamados smartphones. Segundo a União Internacional de Telecomunicações (UIT) já são mais de 7 bilhões de aparelhos celulares em uso no mundo, sendo esta a maneira mais usada para acessar a internet 26. No Brasil, o número de smartphones em uso já ultrapassou o número de 168 milhões, segundo estudo realizado pela Fundação Getúlio Vargas de São Paulo (FGV-SP). Ainda segundo a pesquisa, a projeção é de que, no ano de 2018, o número de smartphones no Brasil chegue a 236 milhões, ou seja, mais de 1 aparelho por habitante27.

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Cumpre destacar que cada vez mais cedo inicia-se o uso dos smartphones e tablets, com milhões de crianças e adolescentes com acesso livre, total e irrestrito ao conteúdo da internet. A possibilidade de criação de dependência é uma realidade, com consequências físicas e psicológicas no longo prazo. Em termos comportamentais mais amplos, têm sido observado nestes jovens uma falta de habilidade nos relacionamentos interpessoais, com dificuldades no estabelecimento de vínculos de amizade e/ou afetivos plenos e duradouros.

Segundo Nabuco de Abreu e Young, na obra “Dependência de Internet” (2011, p 170):

É muito natural que as pessoas aumentem o uso (e daí o abuso) de internet devido à sua natureza prazerosa e estrutura de reforço; (...). O neurotransmissor que parece estar mais associado à experiência de prazer é a dopamina; sabemos, depois de anos de pesquisa, que drogas, álcool, jogos de azar, sexo, comida e até mesmo o exercício físico envolvem mudanças nesse neurotransmissor (Hartwell, Tolliver e Brady, 2009). Em essência, nos tornamos dependentes do intermitente e imprevisível luxo de dopamina que passa a ser classicamente associado à substância ou comportamento que utilizamos. É aqui que a internet se encaixa. No caso do abuso ou dependência de substâncias ou álcool estão presentes outros fatores, incluindo intoxicação isiológica, tolerância e abstinência.(...)

A internet compartilha algumas dessas características, mas não todas, e apresenta alguns aspectos novos e exclusivos. No caso da dependência de internet podemos ver aspectos de tolerância e abstinência com concomitante desconforto físico (principalmente na forma de sintomas semelhantes aos de ansiedade ou irritabili-dade elevada) quando os pacientes interrompem ou alteram seus padrões de uso. Muitos pacientes relatam esses sintomas de abstinência quando descontinuam ou diminuem o uso de internet e de outras tecnologias de mídia digital; frequentemente, esses sintomas e reações são conirmados por membros próximos da família e amigos.

Isto acontece quando as pessoas não conseguem administrar o tempo de uso dos dispositivos eletrônicos, sem estabelecimento de limites, deixando de viver as possibilidades de uma vida real para mergulhar em uma ilusão ou irrealidade. A vida virtual torna-se cada vez mais atrativa que a real.

Aguiar (2018, p 15) ressalta que:

(...) no que diz respeito aos smartphones, não há dúvidas de que eles são verdadeiros transformadores culturais do século XXI. Mais do que simples aparelhos de comunicação (veja-se que a função telefone é a que menos tem importância atualmente) eles ‘transformam as vontades’ das pessoas; mudam os modelos de comunicação e a própria maneira comportamental de envolvimento entre elas (quem não presenciou uma mesa em que cada qual com o seu celular interage com terceiros, e não com aqueles que estão ao seu lado — a não ser que os integrantes façam parte do mesmo grupo de Whatsapp; ou, ainda, que queiram ‘falar’ reservadamente entre eles, apenas); dão luz à expressão de ideias e opiniões (o acesso às redes sociais não deixa dúvidas quanto a isso); criam um espaço de exposição midiática de imagem (a indústria dos chamados selies, que instantaneamente

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registram situações, pessoas e lugares, são mais do que bons exemplos: uma realidade); dão transparência às mais diversas situações, por meio de gravações de vídeo e áudio: de tudo e de todos, que se prestam (ou não; isso pouco importa) a pôr à mostra fatos, gente e condições que outrora eram preservadas (escondidas mesmo) pelas sombras que as protegiam. Por isso mesmo, o nível de tolerância a abusos diminuiu muito. As medidas explicativas, protetivas e punitivas também.

Nesse sentido, o uso abusivo de smartphones, segundo pesquisas, tem variado conforme a diversidade dos critérios diagnósticos utilizados e da variabilidade dos indivíduos estudados. As taxas estimadas de dependência de celular podem chegar até a 60% nos seus usuários. Um estudo brasileiro realizado pela pesquisadora Anna Lúcia King, da UFRJ, verificou que 34% dos entrevistados airmaram ter alto grau de ansiedade sem o telefone por perto28.

O termo nomofobia (uma abreviação, do inglês, para no-mobile-phone phobia) foi criado no Reino Unido para descrever o pavor de estar sem o telefone celular disponível. Na realidade, este neologismo atualmente tem sido muito utilizado para descrever a dependência do smartphone e seus respectivos aplicativos29.

Segundo notícia publicada no sítio da Associação Brasileira de Psiquiatria, a nomofobia pode ser caracterizada pelos seguintes sintomas30:

  1. Incapacidade de desligar o telefone;

  2. Verificar de maneira obsessiva chamadas, e-mails e mensagens de aplicativos;

  3. Ficar continuadamente preocupado com a duração da bateria;

  4. Ficar incomodado quando a rede não funciona direito

    Sintomas da dependência da internet:

  5. Preocupação excessiva com a internet;

  6. Passar cada vez mais tempo on-line;

  7. Tentativas fracassadas de reduzir o tempo na rede;

  8. Irritabilidade, depressão ou instabilidade de humor quando o uso da internet está limitado;

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  9. Ficar on-line mais tempo do que o previsto;

  10. Colocar relacionamento ou trabalho em risco;

  11. Mentir para os outros sobre tempo gasto na rede;

  12. Usar a internet para escapar...

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