O direito

AutorPonzilacqua, Marcio Henrique Pereira

1 Introdução

As mudanças introduzidas pelas tecnologias de informação e comunicação na prestação do serviço pelo trabalhador trazem novas questões referentes à limitação da jornada de trabalho, direito conquistado após diversos embates sociais por dizer o Direito. A utilização de equipamentos de comunicação e informação facilita sobremaneira a prestação do serviço, mas também insere na relação juslaboral a problemática da disponibilidade do trabalhador em períodos fora do horário fixado pela empresa para a realização do labor, possibilitando que o funcionário esteja à disposição do empregador em momentos destinados ao descanso daquele, especialmente no que se refere ao trabalho intelectual. Tal situação fática torna tênue a fronteira entre vida profissional e vida pessoal, visto que dificulta o controle do tempo de trabalho, fazendo surgir nos sistemas jurídicos a necessidade do reconhecimento de um direito à desconexão.

A partir disso, o presente artigo busca fornecer uma análise da introdução e aplicação do instituto jurídico francês relativo ao direito à desconexão no sistema de direito brasileiro, sob perspectiva sociojurídica, buscando evidenciar as limitações práticas do instituto nas relações de trabalho na França e os fatores que dificultam a aplicação do direito, tanto no país de origem quanto no Brasil.

Para a adequada compreensão do instituto, sugere-se expor as modificações nas relações de trabalho advindas com a Era da Informação e como isso afeta os direitos trabalhistas. Após, expor-se-á como o conceito de direito à desconexão é compreendido pela doutrina e pelo Judiciário, tendo por enfoque o âmbito das relações de emprego, tipo de relação de trabalho em que está presente a subordinação jurídica, ou seja, o controle das atividades exercidas pelo trabalhador por quem adquire sua força laborativa, e é marcada pela desigualdade de poder entre as partes. Por fim, o estudo propõe-se a analisar a possibilidade e adequação da positivação do direito à desconexão, nos moldes da legislação francesa, no sistema jurídico brasileiro.

2 O labor na era digital

A inserção da tecnologia nos processos produtivos modifica a forma de estruturação e organização do trabalho, fazendo surgir padrões flexíveis de trabalho (CASTELLS, 2002) e tornando mais tênue a fronteira entre trabalho e vida pessoal, especialmente em se tratando de trabalho intelectual.

As tecnologias de informação e comunicação têm o potencial de gerar sobre as condições de trabalho o aumento do ritmo e da intensidade de trabalho, do controle patronal e do excesso de informação, além da confusão das fronteiras espaciais e temporais entre trabalho e esfera não profissional, conduzindo a uma flexibilidade espacial e temporal. A interação do trabalhador com o meio técnico modifica a forma de organização laboral, alterando o grau de autonomia e de independência do empregado e a quantidade de informações que o indivíduo recebe e tem que processar. Há, nesse sentido, o desenvolvimento de uma forma de controle do trabalhador mais eficiente e, ao mesmo tempo, sutil.

Os dispositivos tecnológicos de comunicação possuem a capacidade de libertação e de opressão, sendo necessária a constante modificação e adaptação dos instrumentos de resistência para lidar com essa nova forma de organização do trabalho (BRAGA, 2015).

O direito à desconexão do trabalho está inserido nesse momento de modificação da visão clássica do trabalho pela técnica, em que a fronteira entre vida pessoal e profissional era assegurada pela referência do tempo e do local de trabalho (LOKIEC, 2015). A hiperconectividade laboral gera "o aumento do tempo de trabalho habitual e o acréscimo da situação de disponibilidade do trabalhador" (FERNANDES, 2018), sendo o fenômeno da conexão ao trabalho caracterizado pela fragmentariedade da prestação de serviços, possibilitado pelo acesso ao ambiente virtual de trabalho por dispositivos tecnológicos em momentos de descanso. O elemento técnico constitui, por conseguinte, óbice à limitação do tempo de trabalho.

Os meios de comunicação tecnológicos também têm o potencial de acentuar as dificuldades de se limitar o âmbito dos poderes do empregador (BIDET; PORTA, 2016). A questão do uso das tecnologias de informação e comunicação destinadas ao trabalho envolve também repensar os limites do exercício dos poderes diretivo e hierárquico do empregador sobre seus empregados, em conjunto com a fixação de fronteiras à extensão das atividades profissionais.

Essas mudanças na estrutura do trabalho, decorrentes da implementação de novas tecnologias, fazem surgir a necessidade de repensar o Direito do Trabalho, com inserção de novos institutos que proporcionem a adequada fruição dos direitos trabalhistas frente aos novos modelos de labor e da reorganização do meio ambiente de trabalho.

3 As normas protetivas de duração do trabalho

As modificações da estrutura do trabalho na Era Digital, decorrentes da inserção de equipamentos tecnológicos, produzem consequências na efetividade das normas relativas ao controle de jornada, em razão da dinamicidade e fragmentariedade dos períodos de prestação do serviço e da interrupção dos momentos de descanso.

A limitação de jornada, os intervalos intra e interjornadas e o descanso semanal remunerado inserem-se no âmbito das normas de ordem pública, cuja proteção é conferida pela Constituição Federal (BRASIL, 1988), sob o título de direitos sociais do trabalhador (art. 7), e pela Consolidação das Leis do Trabalho (BRASIL, 1943). A respeito, o art. 7, incisos XIII e XXII da CRFB/88, estabelece como direitos sociais que visem à melhoria da condição social dos trabalhadores urbanos e rurais:

XIII - duração do trabalho normal não superior a oito horas diárias e quarenta e quatro semanais, facultada a compensação de horários e a redução da jornada, mediante acordo ou convenção coletiva de trabalho; XXII - redução dos riscos inerentes ao trabalho, por meio de normas de saúde, higiene e segurança; A CLT (BRASIL, 1943) regulamenta as disposições relativas à jornada de trabalho, tratando de direitos que têm por fim a garantia do direito ao não trabalho. Nesse aspecto, ressalta-se que a necessidade de preservação plena dos períodos de descanso é sustentada em três principais fundamentos:

  1. de natureza biológica, pois que visa combater os problemas psicofisiológicos oriundos da fadiga e da excessiva racionalização do serviço; b) de caráter social, pois que possibilita ao trabalhador viver, como ser humano, na coletividade à qual pertence, gozando dos prazeres materiais e espirituais criados pela civilização, entregando-se à prática de atividades recreativas, culturais ou físicas, aprimorando seus conhecimentos e convivendo, enfim, com sua família; c) de índole econômica, pois que restringe o desemprego e acarreta, pelo combate à fadiga, um rendimento superior na execução do trabalho. (SÜSSEKIND, 1996) Todas essas normas de duração do trabalho têm por objetivo "garantir ao trabalhador o momento de descanso para repor suas energias físicas e mentais, e poder gozar dos meios de sociabilidades afetas a cada indivíduo" (CARDOSO, 2015), além de possibilitar o exercício do direito fundamental à conciliação da vida pessoal, familiar e laboral (SILVA, 2013). Desse modo, a CLT (BRASIL, 1943) regulamenta os direitos sociais trabalhistas ao dispor sobre a jornada de trabalho, vedando jornadas exaustivas e que exponham os trabalhadores a riscos psicossociais.

    A fixação de limites à livre pactuação da jornada é pautada também pelos princípios orientadores do Direito do Trabalho, como o princípio da proteção, que visa o amparo preferencial ao trabalhador na relação juslaboral, a fim de proporcionar uma igualdade substancial entre as partes (PLÁ RODRIGUEZ, 2000).

    O estabelecimento de limites ao tempo de labor encontra fundamento tanto na Carta constitucional (CFRB/1988) quanto nos princípios do Direito do Trabalho, sendo que a regulação dos direitos concernentes à duração do labor pode e deve ser adaptada ao contexto em que são aplicados, tendo em vista as modificações das relações laborais, visando a efetividade dessas normas protetivas.

    O direito à desconexão do trabalho está inserido nesse contexto de adaptação das regras jurídicas de controle da jornada de trabalho à Era da Informação, com a finalidade de conferir máxima efetividade a essas garantias fundamentais. Com positivação inicial no ordenamento jurídico francês, a análise do instituto nos moldes fixados pela Lei francesa é essencial para a compreensão das possibilidades de incidência da regra e das limitações sociojurídicas à efetividade plena do direito.

    4 O direito à desconexão do trabalho

    4.1 O direito à desconexão no Direito francês

    O Code du Travail francês, em seu art. L. 3121-1, estabelece que o tempo efetivo de serviço é aquele "durante o qual o trabalhador está à disposição do empregador e cumpre as suas diretivas sem poder participar livremente de suas ocupações pessoais" (1). No entanto, a definição tornou-se insuficiente para enquadrar juridicamente as situações de interrupção dos momentos de descanso do empregado por força de comunicações dinâmicas e fragmentadas realizadas por meio de equipamentos tecnológicos. Foi necessário o reconhecimento da existência de uma nova situação de ingerência na vida privada do empregado, até então não regulada, para então se pensar na forma mais adequada de conferir tratamento jurídico ao tema.

    A lei francesa no. 2016-1088, de 8 de agosto de 2016, regulou uma série de modificações relativas à legislação trabalhista no país, dentre as quais se encontra a inserção expressa de um dispositivo que garante o direito à desconexão do trabalho, previsto no artigo 55. O dispositivo modifica o art. 2242-17, que, no parágrafo 7, passa a dispor acerca de algumas condutas que devem ser adotadas pelas empresas com mais de cinquenta empregados para proporcionar o pleno exercício do direito de se desconectar pelo trabalhador.

    A positivação do referido...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT