O direito do trabalho da mulher enquanto 'teto de vidro' no mercado de trabalho brasileiro

AutorMaria Cecília Máximo Teodoro/Márcio Túlio Viana/Cleber Lúcio De Almeida/Sabrina Colares Nogueira
Páginas65-72

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1. Da ideologia e dos estereótipos da realidade

A Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, reconhece explicitamente que os direitos nela estabelecidos aplicam-se a todos os seres humanos, sem distinção de qualquer espécie, incluindo gênero.

No entanto, em 1979, a mesma Assembleia da ONU sentiu a necessidade de propor aos Estados uma “Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra as Mulheres”. Contudo, de maneira persistente, as mulheres ainda vivenciam discriminações, preterições e violência no mercado de trabalho.

Em 1995 foi celebrada a Declaração e criada a Plataforma de Ação de Beijing, pela qual se comprometeram os governos e os povos de todo o mundo a lograr a igualdade de gênero e o empoderamento das mulheres. Em 2015, a ONU Mulheres, preparando-se para a celebração de Beijing + 20, lançou a campanha de compromisso político e público entitulada “Empoderando as mulheres, empoderando a Humanidade. Imagine!”1, em razão da necessidade de inúmeros avanços neste campo temático serem ainda urgentes.

Tal necessidade compõe a realidade de todas as partes do mundo, seja em países ricos ou pobres, estejam eles em paz ou em guerra. Afinal, tudo isso é o resultado de uma cultura antiga, que traz consigo ideologias e estereótipos baseados em tradições que se perpetuam e que só um novo modelo cultural é capaz de modificar.

Assim, a existência de um sistema de normas de proteção ao trabalho da mulher é cotidianamente justificada pelas diferenças tanto biológicas quanto sociais entre homens e mulheres. De fato, este estatuto das mulheres formado pelas normas constitucionais e infraconstitucionais na seara trabalhista refletem uma visão de mundo acerca do papel da mulher na sociedade.

Sob o prisma do mercado de trabalho, Calil explica que as mulheres sofrem discriminação pelo fator biológico, em razão da maternidade, enquanto a distinção fundada no fator social dataria da industrialização, desde quando mulheres são discriminadas pelo simples fato de serem mulheres2.

A própria igreja católica exerce forte influência na difusão da questão do “gênero”, que surge quando a comunidade cristã começa a se organizar e a Igreja, ao se institucionalizar, estabelece os papéis e cria hierarquias. Neste ponto começa a implementar a exclusão das mulheres de papéis de liderança e das tarefas de condução da Igreja. Carmelina Chiara Canta3, a propósito da pesquisa de gênero junto à igreja, indaga quantas mulheres santas são conhecidas. O Martirológio romano, que registra o número de “santos oficiais, incluindo os “abençoados”, os “servos de Deus” e do “venerável”, mostra em torno de um mil e quinhentos santos femininos em comparação com cerca de nove mil e quinhentos santos masculinos: uma minoria que é a consequência lógica da exclusão anterior de mulheres de papéis de controle importantes.

Pela difusão de ideologia de base patriarcal, machista e até mesmo religiosa, pode-se também “negar à mulher, tanto seu papel histórico no desenvolvimento sócio-cultural e humano, quanto em seu próprio desenvolvimento pleno”. Parece claro que o “oprimido não deseje e não colabore para a sua opressão, exploração ou discriminação “. Isto porque

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a opressão por vezes é sutil, utiliza ardis, ideologias e não raro se esconde atrás do nobre fim da norma que se diz protetiva e promocional.4

Ademais, os estereótipos do que mulheres e homens são e devem fazer são disseminados ainda pelo senso-comum, pela mídia, reproduzidos pela sociedade e também pelas próprias mulheres, ainda que involuntariamente. “Na fronteira entre sexo e gênero, os limites e as origens dessas diferenças são pouco questionados”5, perpetuando-se a ideia de que os papeis são distintos porque devem ser, mas que se complementam. E assim, homens e mulheres, cada um com suas “funções” seguem reproduzindo esta binariedade social.

Ellen Hazan conclama as mulheres contra os estereótipos:

Por mais que nos neguem um papel relevante na história humana e na atual sociedade; por mais que queiram nos colocar como mão de obra barata ou como um exército de reserva quando o sistema capitalista quer reduzir o preço que paga pelo trabalho; por mais que queiram que acreditemos que o ser humano masculino é o nosso inimigo natural; por mais que queiram que acreditemos que somos pessoas invejosas que disputamos entre nós, os ho-mens, o sucesso, a carreira, a roupa mais bonita, somos mulheres o suficiente para sabermos que todo esse discurso é mentiroso, que somos seres humanos e que nosso papel, na história da humanidade, não vai ser apagado como querem algumas instituições6.

O poder desta ideologia é nefasto à emancipação das mulheres, à medida que conceitos machistas e opressores são assimilados e disseminados pelas próprias mulheres. Lya Luft nos explica que “a realidade objetiva — se existe — importa menos: o mundo chega a mim filtrado por minha visão pessoal”7.

Muitas destas ideologias fundam-se, portanto, em estereótipos, em argumentos ignaros advindos da divisão sexual do trabalho, que consistia em reservar aos homens o trabalho produtivo e às mulheres o trabalho doméstico, considerado improdutivo, não gerador de lucro e, portanto, não remunerado8.

Essa divisão sexual do trabalho acaba por propiciar uma grave dicotomia, em que se apresenta de um lado a esfera da produção — um espaço público, simbolizado pela fábrica e considerado campo masculino —, e a esfera da reprodução — espaço privado, representado pela casa, território feminino9.

A ausência de uma divisão harmônica dos afazeres domésticos e dos cuidados com os filhos persiste como obstáculo à emancipação das mulheres e à conquista e à permanência plena do mercado de trabalho, pois a sobrecarga a que se submete a mulher em razão das tarefas domésticas e do cuidado com a prole se traduzem em verdadeira segunda jornada de trabalho, minando sua disponibilidade e capacidade psíquica e física de manutenção do emprego10.

Estas representações sociais estereotipadas contribuem para a “reprodução da noção da mulher como força e trabalho secundária”, fomentando as desigualdades entre homens e mulheres no mercado de trabalho11.

Por uma questão de fato, a humanidade sempre foi afetada por misoginia. Assim, o movimento de emancipação feminina, no último século, busca uma igualdade formal e fundamentada entre homens e mulheres, que segundo Anita Amato12, pode ser o ponto de viragem no desenvolvimento da nossa cultura, que poderia oferecer um grande ajuda para se repensar o direito, a política e a religião.

Como visto, a divisão sexual do trabalho permeia o imaginário social e produtivo, apresenta-se como argumento persistente na constituição da ações no mercado de trabalho e influi nas próprias políticas públicas do Estado, notadamente na produção de normas, cujo mote é a proteção da mulher no mercado de trabalho, mas que geram impactos adversos.

Nesse sentido, o Direito do Trabalho da mulher, ao fundamentar-se em pressupostos fáticos equivocados e que retratam a reprodução de ideologias e estereótipos, acaba por perder sua efetividade, tornando-se o próprio algoz da mulher em sua luta por igualdade jurídica no mercado de trabalho em relação aos homens. O conjunto de normas de proteção ao trabalho da mulher, notadamente em razão do fato de engravidarem, ao não estender tais proteções aos homens, acirram exclusão feminina do mercado ou subsidiam a sua permanência precária.

A reprodução desta conformação social, empresarial e pública, resiste aos dados objetivos extraídos da participação das mulheres no mercado laboral, num contexto em que o crescimento da população feminina no mercado de

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trabalho brasileiro foi uma das mais marcantes transformações sociais ocorridas no país nas últimas décadas.

A divisão sexual do trabalho apresenta-se, assim, inadequada para fundamentar a edição de normas trabalhistas voltadas apenas para as mulheres, na medida em que não representa as distintas realidades da presença feminina no mercado de trabalho, tornando-se “um dos elementos sobre os quais se estruturam e se reproduzem as hierarquias entre homens e mulheres e os padrões de discriminação e subordinação de gênero”13.

Hoffmann e Troncoso utilizando-se de dados da PNAD (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) e analisando a evolução da participação da mulher no mercado de trabalho afirmam que, nos anos de 1990, a continuidade da ampliação das taxas de participação feminina, sobretudo entre mulheres não muito jovens, foi o único fator responsável pelo crescimento da PEA (população economicamente ativa)14. E as mulheres ainda continuam representando a maioria na PEA, na proporção de 43,6%, além de representarem 42,6% da população ocupada15.

Entre 1981 e 2002 houve um acréscimo de 13,7 pontos percentuais na taxa de atividade feminina, que passou de 32,9 para 46,6%, enquanto a dos homens neste mesmo intervalo de 21 anos caiu de 74,6 para 71,4%, conforme se observa do Gráfico 1.

Ademais, o Censo da Educação Superior, do INEP (Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira) demonstrou que o nível de instrução das mulheres é superior ao dos homens. Elas possuem um número médio de anos de estudo (7,5) superior ao deles (7) e 58,1% do contingente de brasileiros que têm mais de 15 anos de estudo. Em 2013, também foram maioria entre os matriculados (55,5%) e os concluintes (59,2%) do ensino superior.

Entretanto, segundo a PME (Pesquisa Mensal de Emprego) de 2010, realizada pelo IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), a remuneração média das mulheres continua sendo inferior a dos homens, sendo que em média recebem em torno de 72,3% do rendimento recebido pelos homens. Em 2003, esse percentual era 70,8%. O mais curioso é notar que, mesmo em diversos grupamentos de atividade econômica, a graduação superior não aproxima os...

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