Direito do trabalho em revista: trabalho e crítica da ideologia na teoria marxista

AutorSayonara Grillo Coutinho Leona da Silva
Ocupação do AutorOrganizadora
Páginas88-100

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1. Introdução

Não se pode conceber o estudo da disciplina jurídica do Direito do Trabalho sem uma reflexão mais detida em seu primeiro e permanente objeto: o trabalho humano. Neste sentido, resgata-se da obra marxiana a atualidade do modo (método) peculiar de abordagem de seu grande problema teórico: a sociedade capitalista.

Para marx, a teoria sempre expressa algo que lhe é anterior e que está em constante movimento. Não é a descrição estática de um objeto, mas a reprodução do movimento do real. Tampouco se detém aos processos tal como empiricamente apresentam-se nas situações concretas. Essa aparência fenomênica é fundamental (enquanto ponto de partida inarredável) para o conhecimento de um objeto, mas não esgota a estrutura do que é apenas um sinal1, devendo os processos ser tomados pelos seus fundamentos, a partir de suas categorias e determinações mais fundamentais.

Ainda que se admita que o programa utilizado na obra marxiana tenha se atido à realidade do século xIx2, subsiste a validez de sua análise teórica, de modo geral, nas sociedades regidas pelo comando do capital.

Esta obra teórica de marx certamente é insuficiente para dar conta da atual sociedade burguesa, porém isso apenas significa que este objeto se atualizou e se enriqueceu com novas determinações que devem ter o seu conhecimento aprofundado, substituindo velhas categorias por novas3. A riqueza do arsenal categorial marxiano decorre da riqueza de seu objeto de investigação: a sociedade sob o império do capital. Essa teoria é sempre inacabada (porque suas deter-minações acompanham a dinamicidade constante do objeto) e inacabável (porque o objeto continua em movimento, ao menos até que seja definitivamente superado).

Daí a presente análise reconstituir em uma apertada síntese algumas categorias fundamentais para a compreensão do objeto do Direito do Trabalho, passando a inserir o próprio Direito do Trabalho em uma trama de artefatos ideológicos, a partir dos quais se problematizam alguns dos seus principais limites. Em seguida, de forma panorâmica, apresentamos algumas transformações pelas quais passam o trabalho no mundo contemporâneo, lançando alguns questionamentos e problematizações acerca da realidade atual e as formas de pensá-la.

Por fim, identificamos algumas das principais mistificações apresentadas pelo Direito na sociedade burguesa para, então, selecionarmos em análise muito breve algumas categorias do Direito do Trabalho – notadamente a subordinação jurídica e o salário – que revelam o caráter multifacetário da ideologia, a partir do qual busca-se contribuir com uma crítica que supere seu caráter fetichista.

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2. A categoria trabalho

A análise da categoria trabalho não pode ser feita de forma idealista, na qual as categorias possuem “vida autônoma”, separadas e anteriores à sua própria manifestação na realidade. As categorias, e, em especial a categoria trabalho, decorrem da sua manifestação histórica nas relações sociais concretas, como formas de ser dessas sociedades.

A atividade humana de modo amplamente considerável pode ser compreendida em termos históricos a partir da sua forma mais elementar e primordial que é o trabalho. Por meio dele o homem se relaciona com a natureza, transformando-a e transformando a si próprio. Por meio do trabalho o homem interage com outros indivíduos, para atender às suas necessidades, produzindo coisas úteis.

Antes de tudo, o trabalho é um processo entre o homem e a Natureza, um processo em que o homem, por sua própria ação, medeia, regula e controla seu metabolismo com a Natureza. (...) Ele põe em movimento as forças naturais pertencentes à sua corporeidade, braços e pernas, cabeça e mão, a fim de apropriar-se da matéria natural como forma útil para a sua própria vida. Ao atuar por meio desse movimento, sobre a Natureza externa a ele e ao modifica-la, ele modifica ao mesmo tempo a sua própria natureza (mARx, 2011a, v. 1, p. 142).

Essa atividade prática é fundamental para compreender toda e qualquer sociedade inserida na história, pois no trabalho encontram-se os fundamentos materiais da sociedade.

A sociabilidade humana inaugura-se, nos primórdios do paleolítico, com o trabalho, expressão da relação do homem com a natureza para produzir coisas que satisfaçam suas necessidades vitais.

(...) para viver, é necessário, antes de mais nada, beber, comer, ter um teto onde se abrigar, vestir-se, etc. O primeiro fato histórico é, pois, a produção dos meios que permitem satisfazer essas necessidades, a produção da própria vida material (mARx; ENGELS, 2007, p. 33).

Assim, todos os seres vivos interagem com a natureza e entre si de modo a garantir sua existência. Contudo, o homem não produz apenas para suprir sua necessidade física imediata, mas produz, inclusive e mais propriamente, quando liberado dessa necessidade de sobreviver. Diferente dos demais animais, o homem produz conscientemente (atividade autogovernada) e antecipando um fim (teleologicamente).

Pressupomos o trabalho numa forma em que pertence exclusivamente ao homem. Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão e a abelha envergonha mais de um arquiteto humano com a construção dos favos de sua colmeia. mas o que distingue, de antemão, o pior arquiteto da melhor abelha é que ele constitui o favo em sua cabeça, antes de construí-lo em cera. No fim do processo de trabalho obtém-se um resultado que já no início deste existiu na imaginação do trabalhador, e, portanto, idealmente. Ele não apenas efetua uma transformação na forma da matéria natural; realiza, ao mesmo tempo, na matéria natural seu objetivo, que ele sabe que determina, como lei, a espécie e o modo de atividade e ao qual tem subordinada sua vontade (mARx, 2011a, p. 149-150).

É o trabalho que distingue o homem dos demais animais, fazendo-o humanizar a si e a natureza. Portanto, além de ser a forma modelo que serve de chave heurística para a compreensão das demais atividades humanas, o trabalho primordialmente justifica a agregação social. mas, além disso, é o modo como o trabalho é constituído que concede ao homem seu elemento mais característico como espécie: a liberdade consciente.

A atividade teleológica do trabalho exprime a liberdade humana que transforma a natureza, inovando a realidade e criando o mundo onde efetivamente vive.

Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que se queira. mas eles mesmos começaram a se distinguir dos animais tão logo começam a ‘produzir’ seus meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal. Ao produzir os seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida material (mARx; ENGELS, 2007, p. 41).

Por outro lado, tal vontade, livre e teleológica, encontra limites na própria natureza e suas leis causais. Para que se concretize aquilo que foi idealizado é necessário que o conhecimento da natureza tenha atingido um nível apropriado,
v.g. como o sonho de voar, de Ícaro a Leonardo da Vinci, somente veio a ser alcançado muito tempo depois, por Alberto Santos Dumont, quando as condições materiais permitiram alcançar um determinado nível de domínio tecnológico.

Para produzir, os homens organizam-se socialmente e estabelecem relações sociais, que irão, elas mesmas, gerar novas necessidades e novos modos de satisfazer tais necessidades. O trabalho passa, então, a ser a cooperação entre pessoas, orientada (teleologicamente) para a produção de coisas úteis suprindo as necessidades sociais.

Os homens, ao longo da história das sociedades, ao implementarem utensílios (coisas úteis para a satisfação de necessidades do “estômago e da fantasia”4), se implementam a si mesmos na sua relação com a natureza, e se valem do trabalho como meio de atenderem a necessidade de reprodução da vida individual e genérica.

O trabalho, assim, é uma forma de práxis social que constitui a própria realidade, relacionando os aspectos subjetivos (vontade e teleologia) com os aspectos objetivos (causali-dade, necessidade e natureza) da atividade humana social, e, transformando, permanentemente, o próprio sujeito e o próprio objeto.

Eis o caráter ontológico do trabalho na constituição do ser humano e da sociedade. Assim como o ser humano não pensa porque quer, mas por uma condição racional que lhe é inerente, o trabalho também se dá por uma exigência indeclinável de seu ser social que é um ser voltado para a relação com o outro. Trabalho e cultura são então regidos por uma essencial complementaridade.

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3. O trabalho e a especificidade do ser social

Se a raiz do homem é o próprio homem, este ser humano está, na realidade concreta, em constante tensão entre sua generalidade (seu ser genérico posto em um complexo de relações e mediações) e sua singularidade (evidenciada em sua individualidade empiricamente imediata).

Com efeito, o que liga um dado a outro do caráter humano é a possibilidade do indivíduo se transcender. O indivíduo somente se mantém vivo enquanto se “objetifica”.

A condição de existência humana é a objetivação, a sua exteriorização (“vergegenständlischung”) da existência singular. O homem é um ser que é ontologicamente orientado para a objetivação, e isso se dá por intermédio de inúmeras formas: do riso, do gesto, dos atos de fala cotidianos, das significações e interpretações do mundo, da atribuição de valores às condutas etc.

Entre as diversas formas de objetivação, existem aquelas privilegiadas, mais duradouras, como no produto do trabalho, no produto do conhecimento científico, no produto da arte. Para marx a objetivação mais elementar, aquela que permite emergir e desenvolver o ser social na história, é o trabalho.

O conjunto...

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