O Direito do Trabalho no Brasil de Hoje: do Pesadelo ao

AutorMárcio Túlio Viana
Páginas16-21

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(dedicado ao amigo Jorge Luiz Souto Maior)

Tateando pela casa Toda escura

Esbarrando em degraus Seguindo o medo

Das paredes (Alberto Bresciani, “Breu”)

1. Introdução

Dizem que, na Idade Média, as pessoas sabiam muito menos da vida – e por isso tinham muito mais medos.

Medo do mar, dos bosques, dos raios, do diabo, das bruxas e seus feitiços. Medo dos loucos, das almas, das ruivas, do céu, do inferno, do fim do mundo...

Medos da noite: quem podia ter uma cama, dormia recostado em travesseiros, para que o anjo da morte – se viesse buscá-lo – o encontrasse alerta, pronto para lutar.1

Medo também do sono – pois a qualquer momento podia aparecer Incubus, o demônio que se deitava sobre o corpo da mulher, ou Sucubus, sua versão feminina, que procurava o homem.

Em sua fúria de sexo, tanto Incubus como Sucubus violavam os corpos e as almas de suas vítimas. E por isso, elas acordavam suando, aflitas, com sensação de peso no peito2.

Em italiano, a palavra “incubo” significa “pesadelo”. Mesmo em nossa língua, o verbo “incubar” lembra um pouco a ação daqueles demônios. A palavra inglesa “nightmare” tem igual origem histórica.

Pois bem.

Hoje, não sem razão, notícias sobre reformas nos enchem de medo. Qual será o pesadelo que desaba sobre o Direito do Trabalho?

2. O pesadelo

Como sabemos, há mais de três décadas o Direito do Trabalho vem sofrendo fortes pressões – como se recebesse o peso de Incubus ou de Sucubus sobre o seu

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corpo. E essas pressões não são apenas econômicas, políticas ou ideológicas. São também emocionais.

Num tempo que celebra – muito mais intensamente – as liberdades, e há muito menos certezas, sonhos e projetos, é bem mais fácil criticar um Direito forte, impositivo, com uma meta a cumprir.

E o Direito do Trabalho é assim: um Direito com um projeto, um Direito imperativo, um Direito sonhador. Não quer, e nunca quis, outro sistema. Mas sempre quis, e quer ainda, humanizar um pouco o sistema que existe.

Hoje, não só ele sofre pressões, como os meios de pressioná-lo se disseminam. Eles estão presentes no novo modelo produtivo, nas novas formas de consumir, nos novos contratos de emprego e até nos objetos à nossa volta.

Vejam-se, por exemplo, a influência que as empresas em rede exercem sobre as fontes materiais do Direito do Trabalho. Como não é segredo para ninguém, o novo modo de produzir divide cada vez mais a classe operária, diminuindo o seu poder de fogo para criar as normas de proteção.

Pois o Direito do Trabalho não é como o Direito Civil, que se constrói e se realiza sem grandes traumas. Ele opõe uma classe a outra, e desse modo só consegue crescer com a força do grupo. Até o seu grau de efetivi-dade depende disso.

Outro exemplo são os modos de trabalho que isolam os trabalhadores – como os prestados em casa. E ainda as terceirizações, que – mesmo na fábrica – os dividem em duas classes, com problemas e interesses diferentes.

Por outro lado, estamos muito mais voltados para nós mesmos, celebrando o nosso eu. Até os objetos – cada vez mais variados, abundantes, personalizados – acentuam essa nossa tendência, na medida em que temos muito mais ocasiões de afirmar – em cada compra, em cada escolha – a nossa vontade, o nosso modo de ser.3

Ora, naturalmente, afirmar o nosso eu tem o seu lado bom. Mas também nos afasta das solidariedades, a não ser daquelas pontuais, emocionais, de circunstância, sem ligação com os grandes sonhos, como as provocadas por um terremoto ou um tsunami.

Cada vez mais, queremos ser leves, livres e soltos, o que também pode ser bom, mas nos deixa desgarrados das bandeiras, dos ideais, dos compromissos, que ajudavam a dar sentido às nossas vidas. E desse modo, também enfraquecem o Direito do Trabalho, levando embora a lembrança das lutas operárias e nos fazendo esquecer da importância de conspirarmos juntos.

Esse processo de personalização, de supervalorização do eu, acaba desgastando as estruturas que construímos.4 Já não aceitamos do mesmo modo as regras, as ordens, as hierarquias e as instituições em geral – dentre as quais se insere o sindicato.

Desse modo, embora sejam suas maiores vítimas, os trabalhadores são também sujeitos dessas transformações. Os novos modos de sentir e de viver a vida – turbinados, em boa parte, pela mídia – invadem suas subjetividades, num processo de contaminação recíproca. Assim é, por exemplo, que a pressão por rapidez os faz aceitar mais facilmente os contratos precários, a rapidez de tudo os adapta aos novos ritmos de trabalho, a busca por performances do corpo os leva a exigir sempre mais de si mesmos e a sede de mudanças torna mais natural a alta rotatividade de seus empregos.

Em nome da igualdade, fica também mais fácil defender a ideia de que as partes devem discutir seus contratos sem interferências – como se a relação de forças fosse também igual. Em nome da liberdade, a empresa se vê mais à vontade para se libertar do próprio Direito. Juntos, os discursos (e aspirações) por mais liberdade e igualdade – que à primeira vista seriam sempre positivos – ajudam a legitimar a “livre negociação”, por menos parecido que ela seja.

É verdade que não é todo o Direito do Trabalho que sofre tensões. As normas que protegem o empregador, por exemplo – a começar do poder diretivo – continuam vivas e até mais fortes. O mesmo acontece com aquelas que entram em sintonia com outros valores do nosso tempo, e não colidem diretamente com os grandes interesses empresariais – como as que combatem as discriminações e os assédios, especialmente os mais visíveis.

Aliás, nem mesmo se pode dizer que essas últimas regras sejam mesmo trabalhistas, em sentido próprio, pois não visam distribuir renda, só o fazendo de forma circunstancial e indireta. Têm natureza civilista, e por isso o seu espectro é muito mais amplo que o da fábrica: afinal, não há diferença entre impedir que um operário negro se torne chefe, só por ser negro, e proibir que um pobre de pés no chão entre numa igreja para rezar.

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Além disso, como dizíamos, são normas que se alinham com as ideias de igualdade e liberdade, que também podem ser úteis à empresa.

Mais de um autor já escreveu que as tensões que o Direito do Trabalho vêm sofrendo, em todo o mundo, não são nenhuma novidade; afinal, a crise é a sua “companheira de viagem”. No entanto, é possível que a crise atual – nascida na década de 1960, e...

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