O direito de existir da pessoa transexual: corpo, identidade e recomeços

AutorThamis Dalsenter Viveiros de Castro e Vitor Almeida
Ocupação do AutorDoutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)/Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ)
Páginas305-322
O DIREITO DE EXISTIR DA PESSOA
TRANSEXUAL: CORPO, IDENTIDADE E
RECOMEÇOS
Thamis Dalsenter Viveiros de Castro
Doutora em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Mestre
em Direito Constitucional pela PUC-Rio. Professora de Direito Civil do Departamento
de Direito da PUC-Rio. Coordenadora do Instituto de Direito da PUC-Rio. Coorde-
nadora adjunta do Programa de Mestrado em Direito Civil Contemporâneo e Prática
Jurídica da PUC-Rio.
Vitor Almeida
Doutor e Mestre em Direito Civil pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
Professor Adjunto da Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). Professor
de Direito Civil do Departamento de Direito da PUC-Rio. Advogado.
Sumário: 1. Introdução. 2. Corpo e transexualidade. 3. Identidade e transexualidade: trajetória
e desaos. 4. Considerações nais: esquecimento e recomeço.
1. INTRODUÇÃO
Em dezembro de 1971, no Hospital Oswaldo Cruz, em São Paulo, Waldirene No-
gueira submeteu-se a uma cirurgia de redesignação sexual para realizar a mudança de
seu sexo, o que, na visão da paciente, era na verdade uma alteração “para a f‌ixação do
seu verdadeiro sexo, que sempre foi feminino”. Realizada pelo cirurgião plástico Roberto
Farina, a cirurgia de Waldirene é considerada a primeira cirurgia de redesignação de sexo
documentada no Brasil.
A cirurgia, devidamente autorizada e desejada pela paciente, foi realizada com
sucesso e o resultado foi considerado efetivamente transformador para a integridade
psicofísica de Waldirene, que descrevia a sua vida antes da intervenção cirúrgica como
um martírio insuportável “por ter que carregar uma genitália que nunca me pertenceu”1.
Cinco anos depois, em 1976, o Ministério Público de São Paulo tomou conhecimento
da atuação de Roberto Farina e denunciou a conduta do cirurgião plástico como lesão
corporal gravíssima, com Waldirene na condição de vítima.
1. “Minha vida antes da operação era um martírio insuportável por ter que carregar uma genitália que nunca me
pertenceu. Depois da operação f‌iquei livre para sempre – graças a Deus e ao Dr. Roberto Farina – dos órgãos
execráveis que me infernizavam a vida, e senti-me tão aliviada que me pareceu ter criado asas novas para a vida”,
escreveu Waldirene na época. Relato disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/geral-43561187?fbclid=I
wAR2FP5nOieslkYHAH90k98F1JnOshNVHvD9latnCyqCfA_Pz4cfsOwgW8lI. Acesso em: 20 out. 2020.
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Considerando absolutamente irrelevante o consentimento da paciente, o procurador
Luiz de Mello Kujawski sustentou, em pedido de instauração de inquérito, que: “Não há
nem pode haver, com essas operações, qualquer mudança de sexo. O que consegue é a
criação de eunucos estilizados, para melhor aprazimento de suas lastimáveis perversões
sexuais e, também, dos devassos que neles se satisfazem. Tais indivíduos, portanto, não
são transformados em mulheres, e sim em verdadeiros monstros”. Começava, então,
mais um dramático capítulo na história de Waldirene, agora diante da judicialização do
seu direito de existir e da negação de sua condição de pessoa humana.
Dados sobre a violência contra as pessoas transexuais revelam um alarmante au-
mento no primeiro semestre de 2020. De acordo com Associação Nacional de Travestis
e Transexuais (Antra), 89 pessoas transgênero foram assassinadas no Brasil, número
que representa um aumento 39% em relação ao mesmo período de 2019. A vulnera-
bilidade das pessoas transexuais se torna ainda mais evidente diante dos números que
consideram a sua expectativa de vida. Enquanto o tempo médio de vida de uma pessoa
trans no Brasil é de 35 anos, a população em geral apresenta a média é de 75,5 anos, de
acordo com informações divulgadas em dezembro de 2016 pelo Instituto Brasileiro de
Geograf‌ia e Estatística (IBGE). A redução da expectativa de vida das pessoas trans é o
resultado do acúmulo de experiências de exclusão e violências relacionadas e motivadas
por discriminação em razão da identidade de gênero.2
Segundo levantamento do Grupo Gay da Bahia (GGB), em 2018, foram registradas
420 mortes de pessoas LGBTTI (sigla para Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis, Pessoas
Trans e Intersexos), sendo 320 homicídios e 100 suicídios3. O relatório de 2019 revela
que 329 LGBT+ (lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais) tiveram morte violenta
no Brasil, vítimas da homotransfobia: 297 homicídios (90,3%) e 32 suicídios (9,7%).4
A passagem do corpo natural ao corpo transformado é percurso que implica, no
campo jurídico, distintas formas de percepção desta alteração. A naturalização do bi-
narismo de gênero, como esquema de pensamento universal, tem uma causa objetiva
que pode ser encontrada na constituição biológica dos corpos, cuja previsibilidade
comportamental reside, precisamente, na análise da matéria corporal, o que demonstra
a superf‌icialidade do esquema-modelo binário. A identidade sexual é composta por um
conjunto de elementos que descrevem a pessoa. O sexo é tido como natural e imutável,
por conseguinte integrando o conjunto de elementos f‌ixos ou rígidos da identidade do
indivíduo5. O reconhecimento do sexo é feito na hora do nascimento, com base na ge-
nitália externa, e este dado constará do registro civil do recém-nato, acompanhando-o
2. Dados preliminares do projeto da ANTRA, TransAção2, revelam que 94,8% da população trans af‌irmam terem
sofrido algum tipo de violência motivada por discriminação devido a sua identidade de gênero. Informações
disponíveis em: https://antrabrasil.f‌iles.wordpress.com/2020/06/boletim-3-2020-assassinatos-antra.pdf. Acesso
em: 05 nov. 2020.
3. Disponível em: https://grupogaydabahia.f‌iles.wordpress.com/2020/03/relatorio-2018.pdf. Acesso em: 27 jan.
2021.
4. OLIVEIRA, José Marcelo Domingos de; MOTT, Luiz (Org.). Mortes violentas de LGBT+ no Brasil – 2019: Relatório
do Grupo Gay da Bahia. Salvador: Editora Grupo Gay da Bahia, 2020. Disponível em: https://grupogaydabahia.
com.br/relatorios-anuais-de-morte-de-lgbti/. Acesso em 27 jan. 2021.
5. Sobre o assunto ver CHOERI, Raul. Direito à identidade na perspectiva civil-constitucional. Rio de Janeiro: Renovar,
2010.
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