Direito dos financiadores a concessão nas operações de project finance

AutorPaulo Meira Lins - Eduardo Salomão Neto
Páginas173-190

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Introdução

O mercado brasileiro presencia virtuoso crescimento no número e no porte dos proje-tos de infraestrutura, comumente outorgados pelo Estado à participação privada por meio de concessões de serviços públicos regidas pela Lei n. 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. A Lei de Concessões passou por várias reformas desde a sua promulgação, sendo as recentes alterações da Lei n. 11.196, de 21 de novembro de 2005, importantes para modernizar o regime de financiamento das concessões, adequando-o a práticas internacionais de financiamento de projetos (project finance).

FoinestecontextoqueaLein. 11.196/2005 acresceu o § 2o ao art. 27 da Lei n. 8.987/1995, outorgando aos financiadores o direito à assunção do controle da concessionária para promover a sua reestraturação financeira e assegurar a continuidade dos serviços. Esse direito de origem anglo-saxã é comumente conhecido como step-in right e a disciplina de seu exercício permanece pouco explorada pelas doutrinas brasileira1 e estrangeira.

Com efeito, a maioria dos trabalhos académicos2 sobre o step-in ngfe preocupa-se

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em entender do que se trata, quais são suas características e elementos centrais, e não de sua aplicação. Esta compõe o principal objeto deste trabalho, cujo objetivo é delinear as possíveis hipóteses jurídicas de exercício do step-in, suas implicações jurídicas e práticas. É importante ressaltar que essas hipóteses produzem diferentes efeitos em termos da responsabilidade do financiador e questões relativas à sucessão, que não serão objeto de análise neste trabalho.

A análise centra-se na proposição de possíveis soluções integrativas ao conflito entre o step-in right e a vedação ao pacto comissório no Direito brasileiro. Para chegar a tais soluções, o trabalho inicialmente estabelece a lógica e estrutura geral do project finance, para assim passar à análise das garantias, suas diferenças e conexão com os interesses do financiador. Esclarecidos esses fundamentos, o artigo envereda pela descrição do problema acima referido e proposição das possíveis soluções.

O "projectfinance", sua lógica e estrutura geral

Um importante traço distintivo costuma apartar os financiamentos de grandes projetos dos demais. Os mutuantes aceitam que em princípio seu crédito deve ser pago com recursos gerados pelo próprio projeto, ao invés de por um tomador de recursos autônomo e preexistente, cujo crédito tenha sido aprovado. Mesmo sofrendo importantes moderações em cada caso concreto, esse é um dos elementos que condicionam a estruturação comercial e contratual destas operações.3

A causa disso é muitas vezes a própria dimensão dos projetos, principalmente os ligados à área de infraestrutura, que dificultam sua condução sob a responsabilidade patrimonial de um empresário único. A participação de financiadores em projetos de infraestrutura é fundamental para a viabilização da participação privada, já que tais projetos são intensivos em capital, de longa maturação e carregam riscos que o empresário comu-mente não possui capacidade financeira de suportar por si só.4 Cotizam-se assim vários interessados no projeto, como fornecedores de insumos e compradores em potencial de sua produção. Mas sem assumir total responsabilidade financeira pela operação de financiamento. Este deve ser quitado com base principalmente nos próprios resultados do projeto, que precisam ficar juridicamente vinculados à dívida.

O mecanismo para se obter o efeito de imputação da dívida do projeto a seus próprios resultados é a formação de uma sociedade separada para tomar os recursos emprestados e deter a propriedade dos ativos financiados. À mesma sociedade incumbirá também pagar principal e encargos, normalmente com recursos gerados pela venda da produção do projeto. Esta sociedade é normalmente controlada pelos empresários que tiveram a iniciativa da montagem do projeto.5

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Dito isto, o financiamento de projetos é usualmente uma operação de empréstimo sindicalizado, com lógica econômica diferenciada e adição de cláusulas e instrumentos assecuratórios.

A estrutura contratual básica dos financiamentos de projetos é a de um empréstimo sindicalizado. A este instrumento básico, normalmente denominado CreditAgreement, adicionam-se outros cujafinalidade é permitir a implementação e operação do projeto e dar garantias em termos jurídicos ou econômicos de sua viabilidade econômica e aptidão para gerar receitas.

O esquema contratual básico do empréstimo sindicalizado sofre evidentemente alterações. As principais regras específicas são os saques de recursos pela entidade financiada muitas vezes serem vinculados ao atendimento de custos específicos, as condições de desembolso incluírem a apresentação de certidões e autorizações governamentais necessárias e os juros flutuantes em regra. Há também o traço distintivo de vinculação de pagamentos aos financiadores, normalmente de principal, ao fluxo de recursos proveniente do projeto, o que não exclui o pagamento fixo de valor mínimo. A tal valor mínimo acrescem-se adicionais de acordo com o fluxo de recursos gerados, de tal forma que a rapidez da quitação do empréstimo seja di-retamente proporcional ao sucesso financeiro do empreendimento.

O CreditAgreement tipicamente prevê ainda regras relativas a contas bancárias em que devem ser depositados os recursos desembolsados para o projeto, assim como contas em que devem ser depositados interinamente seus resultados, e cujo funcionamento devemos agora explicar. O objetivo final destas contas é controlar a destinação de recursos desembolsados para o empreendimento ou dele provenientes. Isso é formalizado através da assinatura de acordos entre os credores, a entidade financiada e os bancos onde as contas são mantidas, pelos quais estes últimos se obrigam a dar destinação específica aos valores, ou seja, a só acolher saques em caso de se destinarem ao atendimento dos fins previstos nesses acordos. Alternativamente, as contas podem ser abertas em nome de um representante dos credores, que se obriga a somente efetuar saques nas condições estabelecidas nos acordos.

A casuística de rescisão do CreditAgreement mostra da mesma forma diferença em relação à do empréstimo comum, para refletir a mesma lógica. A sanção não é apenas a rescisão com vencimento antecipado, mas também a possibilidade de os bancos financiadores restringirem certas decisões relativas ao empreendimento. As consequências mais comuns do evento de inadimplemento são a suspensão de distribuições aos acionistas do projeto e a suspensão de saques dos recursos provenientes do financiamento. Eventualmente, pode também ocorrer a necessidade de aumento dos depósitos efetuados pela sociedade do projeto nas contas de reservas que vimos anteriormente. Por fim, a sociedade do projeto perde qualquer direito de saque, mesmo parcial, em relação às contas que mencionamos, as quais passam totalmente à administração dos financiadores.

Em algumas modalidades contratuais, acrescenta-se cláusula segundo a qual os valores depositados nas contas, após a ocorrência de evento de inadimplemento, serão obrigatoriamente transferidos aos credores para quitação total ou parcial do financiamento. Tal transferência será efetuada evidentemente apenas até o montante de principal, juros e outros encargos e multas em aberto.

Garantias, controle de contas do projeto e controle externo -A lógica dofinanciador

As características acima descritas tornam o tema de garantias especialmente importante na matéria, pois afinal o patrimônio da sociedade financiada limita-se aos ativos do próprio projeto. Mas tornam o tema também especialmente sensível. Como no project

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finance a entidade financiada tem apenas o projeto, se este não vai bem não haverá outros recursos para pagar o financiamento, e pouco adiantará antecipar seu vencimento. Assim, execução imediata da dívida e de suas garantias seriam medidas inócuas, que serviriam apenas para precipitar a falência do projeto e a liquidação de seus ativos por valor inferior ao que valem conjuntamente. Esta última situação seria bastante prejudicial aos interesses dos financiadores e, portanto, é evitada por eles. A típica reação do financiador após um evento de inadimplemento é usar seu poder de vinculação das garantias e controle sobre o fluxo de caixa do projeto para influenciar decisões administrativas, sem as quais a liberação de recursos para a continuação das obras não contará com o consentimento dos ditos financiadores.

Assim, uma importante característica, não jurídica, separa as garantias tradicionais daquelas outorgadas em operações de project finance: a intenção do credor. Enquanto como regra a intenção do credor ao obter garantias é poder executá-las para quitação de sua dívida, essa intenção é secundária no project finance. Isso porque tipicamente os ativos da sociedade do projeto valem menos se vendidos separadamente do que a dívida incorrida para adquiri-los. A principal esperança para o credor de pagamento integral do débito reside na continuação do empreendimento, com geração de recursos. A existência de garantias e a possibilidade de sua excussão servem como elemento de pressão para que os financiadores influenciem a construção e operação do projeto, caso o inadimplemento das obrigações a eles devidas seja iminente ou já tenha ocorrido.

A aquisição do controle sobre as contas do projeto, na forma que destacamos na seção anterior, se soma ao poder de pressão decorrente da possibilidade de execução das garantias.

A possibilidade de execução de garantias e prerrogativas dos financiadores sobre contas do projeto inadimplente faz com que, em caso de...

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