O Direito Fundamental à Disposição sobre o Próprio Corpo: Reflexos no Direito ao Trabalho

AutorAngelo Antonio Cabral
CargoMestre em Direito pela Faculdade de Direito da USP. Pesquisador do núcleo de estudos e extensão «O trabalho além do direito do trabalho: dimensões da clandestinidade jurídico-laboral», DTBS/USP
Páginas14-21

Page 14

1. Introdução

A vida na atual socie-dade - científica, tecnológica e digital - desperta a atenção para a regulamentação jurídica das novas relações sociais entrelaçadas com o desenvolvimento científico. É nesse contexto que surge a motivação de desenvolver este ensaio que correlaciona o direito à disposição sobre o próprio corpo - como direito contido nos direitos da personalidade e nas liberdades fundamentais - e o direito ao trabalho.

Poucos institutos jurídicos passaram e passarão por tamanhas modificações em tão curto espaço de tempo como a tutela dos direitos da personalidade. Surgidos no imo do direito civil, o direito ao próprio corpo ganhou novos contornos com o término da segunda guerra mundial. Findo o confiito bélico que revelou ao mundo a banalização do mal e evidenciou que os direitos humanos precisariam passar por uma reconstrução, o tema do direito da personalidade volta a ganhar força nas constitui-ções e codificações civis nos Estados democráticos que refizeram as suas constituições no período pós-guerra.

Quanto às novas perspectivas para as liberdades públicas e para os direitos da personalidade, o avanço tecnológico fez aumentar a exposição das pessoas, as possibilidades de manejo médico-genético de partes do corpo, as modalidades de trabalho (formal ou informal) que implicam exposição do corpo a riscos, entre outros tópicos contemporâneos. Diante de uma questão tão atual como esta nasceu o interesse de abordar como o direito ao próprio corpo - e à utilização dele - pode limitar ou até mesmo impedir o direito ao trabalho.

Assim, diante das limitações físicas deste ensaio, buscou-se estruturá-lo em dois tópicos. O primeiro contextualiza os direitos fundamentais e os direitos da personalidade na dogmática constitucional. O segundo traz à lume situações casuísticas e aborda como o trabalho pode confiitar com situ-ações de (in)disponibilidade sobre o próprio corpo. Ao final, aporta-mos nossas conclusões.

2. Os direitos fundamentais e os direitos da personalidade
2. 1 Os direitos fundamentais como categoria jurídica

Os direitos fundamentais1 correspondem a uma visão ética da humanidade e, ao mesmo tempo, a um programa de ação concreta, previstos constitucionalmente2.

As origens do consenso a respeito dos direitos fundamentais podem ser encontradas em Locke e Montesquieu e nos modelos de evolução histórica dos direitos fundamentais inglês3, americano4 e francês5. A sua respectiva evolu-

Page 15

ção, por seu turno, baseou-se em etapas sucessivas de "positivação, generalização, internacionaliza-ção e por fim de especificação, que consiste no passo gradual, mas cada vez mais acentuado, para uma determinação dos sujeitos titulares"6 dos direitos fundamentais.

A teoria geral dos direitos fundamentais é a teoria dos direitos fundamentais consagrados na constituição; é, portanto, uma teoria jurídica e teoria geral, nos dizeres de José Joaquim Gomes Canotilho7. Os direitos fundamentais como categoria dogmática implicam uma perspectiva analítico-dogmática, preocupada com a construção conceitual e sistemática do direito positivo, mas tendendo também a assinalar uma única dimensão - subjetiva - e apenas uma função - proteção de esfera livre e individual do cidadão -, "entrecruzando-se a dimensão constitutiva e declarativa dos princípios que, eles mesmos, na sua fundamentalidade principal"8 exprimem, denotam, indicam ou constituem a compreensão global da ordem constitucional. Esses princípios assentam-se numa base antropológica9 comum, numa "tríade mágica do homem como pessoa, cidadão e trabalhador"10, de modo a articular-se em termos de complementaridade, condicionando-se mutuamente.

Os direitos fundamentais enquanto princípios estruturantes podem ser objeto de vários crité-rios de classificação11:

(a) De acordo com o conteúdo dos direitos - os direitos fundamentais podem ser agrupados segundo o objeto e finalidade que perseguem, e podem ser direitos personalíssimos nos quais se toma em consideração e se protege a pessoa em si, com independência da vida social e das suas relações com os demais12;

(b) De acordo com a forma de seu exercício - pode-se falar em não interferência, participação, prestação, direitos-dever13;

(c) De acordo com os tipos de relação jurídica que supõem - pode-se falar em direito subjetivo, direito-autonomia, poder, imuni-dade. A liberdade será correlata a um não direito, ao contrário da imunidade, mas de qualquer modo as duas identificam-se porque em ambos os casos protege-se uma esfera de privacidade ou de não interferência14.

Atualmente é pacífica a cons-trução dogmática dos direitos fundamentais a respeito de sua dupla natureza: de um lado são direitos subjetivos dos indivíduos. Sem embargo, não podem ser considerados apenas direitos dos cidadãos em sentido estrito, enquanto garantem também um status jurídico ou objetivo, um âmbito de liberdade de existência.

2. 2 A estrutura negativa dos direitos, liberdades e garantias

A natureza dos direitos, liberdades e garantias poderá ancorar-se no critério do radical subjetivo, o critério de sua natureza defensiva e negativa, o critério da determinação ou determinabilidade constitucional do conteúdo, o critério da densidade subjetiva autônoma. O seu conteúdo fundamental é determinado, no nível jurídico constitucional, e são dotados de aplicabilidade direta, nada obstante caiba ao legislador a tarefa de assegurar a sua efetividade e a concordância prática com outros bens ou direitos constitucionalmente protegidos, olhando-se as restrições, nesta perspectiva, como forma de resolver confiitos ou colisões15.

Luísa Neto, comentando a estrutura negativa dos direitos, liberdades e garantias, à luz da reforma constitucional portuguesa, anota:

A revisão do artigo 9º da CRP viria ainda tornar bem patente a diferença de estrutura de direitos, liberdades e garantias e direitos económicos, sociais e culturais - garantir os primeiros e promover os segundos são as tarefas fundamentais do Estado. Esta garantia decorre de os direitos, liberdades e garantias apresentarem um estatuto superior aos outros - um regime específico, uma vinculação imediata e direta, com vinculação das entidades públicas e das entidades privadas - que no entanto se não apresenta radical, no sentido de apontar uma hierarquia, negada.

Estes direitos que encontramos são no seu conjunto de índole negativa, baseados na doutrina liberal clássica de que a principal tarefa do Estado é a de estabelecer as condições para a liberdade e abster-se de interferir com a pessoa mais do que o necessário para atingir tal fim e sem apontar ainda definitivamente para a solidariedade de que fala Vasco Pereira da Silva, em Estruturas da socie-dade: liberdade e solidariedade, ou da solidariedade ontológica exigida por Archer em Dimensões éticas da investigação biomédica16.

A distinção entre direitos e liberdades faz-se tradicionalmente com base na posição jurídica do cidadão em relação ao Estado. As liberdades estariam ligadas ao status negativus e por meio delas visa-se defender a esfera jurídica dos cidadãos perante a intervenção ou agressão dos poderes públicos. Daí chamarem-se também direitos de liberdade, liberdades-autonomia, liberdades-resistência, direitos negativos, direitos civis, liberdades individuais17.

Nesta seara, é possível perceber como inevitáveis as situações de colisão, concorrência e dependência dos direitos fundamentais, porque se percebe que o exercício de um direito pode ser dependente do gozo de outros ou da posse de

Page 16

outros requisitos18. No contexto da disposição do próprio corpo, Luísa Neto anota:

Registre-se ainda, porque nos interessará sobremaneira e porque é logicamente prioritário, condição de todos os outros direitos da pessoa, o direito à vida, previsto no atual artigo 24º da CRP, e anteriormente no artigo 2º do Ato Adicional à Carta de 1826, no artigo 3º/22 da Constituição de 1911, no artigo 8º/1 e 11 na Constituição de 1933 e também hoje previsto no artigo 3º da Declaração Universal dos Direitos do Homem e no artigo 6º do PICDCP, no artigo 2º da CEDH e ainda na Convenção para a repressão do crime de genocídio de 1-12-48.

Impõem-se mesmo em caso de estado de sítio ou de emergência - artigo 19º da CRP - e na proibição de extradição de estrangeiros em risco de serem condenados a pena de morte. Quanto à pena de morte, o Ato Adicional de 1852 da Carta aboliu-a para os crimes políticos. Agora, a Constituição eliminou ainda a pena de morte em relação a crimes militares cometidos no teatro de operações, que à data da Constituição estava prevista em lei penal militar então vigente, ao abrigo de uma cláusula expressa da Constituição de 193319.

Nesse complexo contexto, o direito à vida, bem constitucionalmente protegido, não corresponde ao direito à vida - na medida em que pode implicar confiitos com o direito à saúde, por exemplo. Ademais, a proteção da vida intrauterina, por exemplo, não é e não deve ser igual em todas as fases, e os meios de proteção do direito à vida - notadamente a legislação penal - podem ser inadequados, excessivos ou insuficientes quan-do se trate de proteção da vida intrauterina. Por isso, uma proibição total do aborto não se sustenta, assim como a constitucionalização do direito ao abordo mostra-se, no mínimo, controversa20.

Demonstrados em breves linhas alguns dos pontos relacionados à categoria jurídica dos direitos fundamentais e a sua estrutura negativa, veja-se, também de forma concisa e dentro dos limites deste estudo, algumas...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT