Direito Fundamental À Saúde

AutorEduardo Braga Rocha
Páginas79-135
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dIreIto FundamentaL À saÚde
3.1 CONCEITO DE SAÚDE
O conceito de saúde e a posição do Estado diante deste direito pas-
saram por substanciais alterações ao longo da história da humanidade.
Durante muito tempo a saúde foi concebida apenas como au-
sência de doenças, sendo que no decorrer do processo histórico cons-
tatou-se que este conceito negativo de saúde – isoladamente – não é
capaz de proporcionar uma vida com qualidade, e, então, tem-se uma
ampliação da noção de saúde para albergar uma dimensão positiva, in-
cumbindo ao Estado e à sociedade a tarefa de concretizar efetivamente
este direito fundamental.169
Na Antiguidade, a maioria dos povos acreditava que a doença
era ocasionada por demônios e espíritos malignos, somente poden-
do ser tratada pelos feiticeiros, pelos curandeiros ou pelos sacerdotes,
especialmente por meio de rituais “mágicos” em que se invocavam
169 Cf. SCHWARTZ, Germano. Gestão compartida sanitária no Brasil: possibilidade
de efetivação do direito à saúde. In: SCHWARTZ, Germano (Org.). A saúde sob os
cuidados do direito. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2003, p. 112-115.
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80 a justiciabilidade do direito fundamental à saúde n o brasil
espíritos capazes de erradicar a doença. Já, para os hebreus, a doença
representava um castigo divino, em face dos pecados cometidos pelos
homens.170
Esta concepção mágico-religiosa da doença foi logo afastada pe-
los gregos que, diante dos ensinamentos de Hipócrates (“o pai da medi-
cina”), aceitavam que a doença tinha uma origem natural. Hipócrates
dizia ainda que a doença estava relacionada com os fatores ambientais
de cada localidade (água, ar, etc.) e com o modo de vida das pessoas (ex:
alimentação), não sendo suficiente que houvesse uma preocupação
apenas com os fatores físicos (fatores internos), pois as questões exter-
nas exerciam uma influência direta sobre a saúde dos indivíduos.171
Entretanto, na Idade Média houve um retrocesso, pois as do-
enças ocorridas neste período – muitas decorrentes das epidemias de
peste – passaram novamente a ser consideradas um castigo divino pe-
los pecados cometidos pela humanidade, e, com isso, os povos acredi-
tavam que a cura somente seria alcançada por aqueles que realmente
merecessem a aprovação de Deus.172
Até o momento a ideia de saúde estava relacionada à ausência de
doenças – tendo havido apenas divergência acerca da origem destas –,
conceito que perdurou por bastante tempo ao longo dos séculos.
Com o advento do Estado Liberal esta concepção de saúde não se
modificou, pois imperava a noção de liberdade de buscar a cura, no sentido
de que o indivíduo tinha a possibilidade de “comprar” a saúde, livrando-
se, assim, das doenças. Ressalte-se que a comunidade era essencialmente
responsável pela proteção da saúde, restando ao Estado uma atuação sub-
sidiária voltada aos interesses do individualismo liberal.
Vale registrar que somente a partir do século XIX, com o advento
da Revolução Industrial, é que o Estado passou a efetivamente prover
a saúde dos indivíduos, em face da pressão realizada pelos empresá-
rios que visavam evitar a diminuição dos lucros, já que a saúde dos
trabalhadores era essencial para que houvesse produção satisfatória (o
trabalhador era tratado como máquina, que deveria ser consertada), e,
170 SCLIAR, Moacyr. Do mágico ao social: trajetória da saúde pública. 2. ed. São Pau-
lo: Senac São Paulo, 2005, p. 14-17.
171 Cf. Ibid., p. 22-24.
172 Cf. Ibid., p. 30.
direito fundamental à saúde 81
além disso, muitas doenças que atingiam os operários eram epidêmi-
cas, sendo os empresários infectados por morarem próximos àqueles.
Constata-se que: “[...] o capitalismo, por mais paradoxal que pareça,
fez nascer uma visão social da saúde”.173 A partir da segunda meta-
de do século XIX, os operários finalmente passaram a se organizar,
reivindicando uma atuação mais intensa do Estado na proteção do
direito à saúde, especialmente na fiscalização das condições no am-
biente de trabalho.174
Com o Estado Social, a saúde passa a ser admitida como uma ne-
cessidade coletiva, devendo o Estado intervir com o intuito de prestar
os serviços essenciais de atividade sanitária para que toda a sociedade
tenha acesso à cura das doenças, independentemente das condições
pessoais. Neste período, fortalece-se especialmente a ideia de saúde
preventiva, com a atuação estatal direcionada a evitar a proliferação de
doenças. Conquanto o conceito negativo de saúde seja prevalecente,
esta não é mais analisada apenas sob o aspecto curativo – como ocorria
no Estado Liberal –, já que a prevenção torna-se o principal objetivo do
Estado Social.
Atualmente, o conceito mais completo de saúde é o descrito no
Preâmbulo da Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS)
de 1946, que dispõe in verbis: “A saúde é um estado de completo
bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausên-
cia de doença ou de enfermidade”.175 Este conceito contemporâneo
de saúde merece elogios por reconhecer a necessidade de que haja o
equilíbrio interno do indivíduo, bem como o equilíbrio deste com o
ambiente, encontrando respaldo desde os ensinamentos preconizados
por Hipócrates, e também há que se destacar que a saúde já não é mais
vista apenas como ausência de doenças, o que leva à incorporação de
um aspecto positivo ao conceito de saúde, qual seja, a busca por uma
melhor qualidade de vida.
173 SCHWARTZ, 2003, op. cit., p. 113.
174 DALLARI, Sueli Gandolfi. A saúde do brasileiro. 6. ed. [São Paulo]: Moderna,
[1992], p. 8-9.
175 ORGANIZAÇÃO MUNDIAL DA SAÚDE. Constituição. Disponível a partir de:
. Acesso em: 18 jan. 2010, grifos nossos. A
OMS é uma agência especializada em saúde, vinculada à Organização das Nações
Unidas, tendo como principal objetivo buscar estender a todos os povos o mais
elevado nível de saúde possível.

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