Direito Fundamental à Saúde na Ordem Jurídica Pátria

AutorJosiane Araújo Gomes
Ocupação do AutorMestra em Direito Público pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Especialista em Direito das Famílias pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU). Servidora do Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais (TJMG)
Páginas25-70

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A ordem constitucional brasileira em vigor constitui marco histórico e jurídico quanto à disciplina do direito à saúde, o qual integra o perfil essencial de cada ser humano, diretamente relacionado à proteção da vida, da integridade física e corporal e da dignidade humana. De fato, a Constituição Federal de 1988, em vários de seus dispositivos, reconhece a saúde como direito fundamental, dotado de aplicação direta e imediata, que vincula tanto os Poderes Públicos, quanto os entes privados.

A atribuição de caráter fundamental a um direito possui importância crucial para a sua efetividade, uma vez que acarreta o aumento de sua força normativa, o que possibilita, em decorrência, o real desempenho de sua função social no mundo dos fatos. Assim, o reconhecimento do direito à saúde como direito fundamental é responsável por tornar inquestionável a definição da saúde como direito de todos e dever do Estado - e também de particulares que atuem em sua substituição, dentro dos limites contratuais -, o qual deve buscar promover o acesso universal e igualitário às ações e serviços para a sua promoção, proteção e recuperação.

Nesse passo, sendo o direito à saúde um direito fundamental, tem-se também o seu enquadramento dentre os direitos humanos, pois aquele constitui a positivação constitucional destes. Logo, a saúde consiste em direito inerente à pessoa, pelo simples fato de existir como pessoa, sendo dotado de caráter universal, uma vez que pertence a todos, independentemente de seus atributos pessoais ou sociais.

Em vista disso, para se alcançar a adequada compreensão acerca do reconhecimento da saúde como direito fundamental, é necessário, primeiramente, proceder à abordagem do processo de internacionalização dos direitos humanos, para, em seguida, analisar a institucionalização dos direitos fundamentais na ordem constitucional pátria. Diante disso, faz-se mister a abordagem conceitual do direito à saúde, de modo a possibilitar a sua correta delimitação no atual

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contexto jurídico-social, bem como constatar a influência que o caráter fundamental desse direito provoca nas relações privadas de assistência à saúde.

1. 1 Precedentes dos direitos fundamentais: a internacionalização dos direitos humanos

Para que se torne possível reconhecer a saúde como direito fundamental consagrado na ordem constitucional brasileira, traçando seu conceito e alcance, é indispensável analisar os precedentes históricos que permitiram a deflagração do processo de internacionalização e universalização dos direitos humanos1, visto que referido processo histórico é responsável por culminar na positivação dos direitos humanos nas Constituições de diversos Estados, dentre eles o Brasil.

Nesse passo, em primeiro lugar é necessário traçar o conceito de direitos humanos. Constituem posições jurídicas reconhecidas aos seres humanos2 como tais, possuindo, assim, origem na própria natureza humana, o que atribui a referidos direitos o caráter inviolável, intemporal e universal. Dessa forma, os direitos humanos recebem tal denominação3devido à essencialidade de

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seu conteúdo, possuindo, assim, função estruturante no que diz respeito à fixação dos limites existentes nas relações jurídicas travadas entre o indivíduo e o Estado, entre os indivíduos ou grupos de indivíduos e em relação a todo o gênero humano.

Nesse sentido, afirma Weis4que tais direitos "são denominados de humanos não em razão de sua titularidade, mas de seu caráter nodal para a vida digna, ou seja, por terem em foco a definição e proteção de valores e bens essenciais para que cada ser humano tenha a possibilidade de desenvolver as suas capacidades potenciais".

Diante disso, passa-se à análise do processo histórico de internacionalização e universalização dos direitos humanos.

1.1. 1 Antecedentes históricos dos direitos humanos

O primeiro momento histórico de destaque para o processo evolutivo dos direitos humanos coincide com o nascimento da Filosofia, datado do século V a.C., tanto na Ásia quanto na Grécia. Com efeito, a Filosofia surge a partir do momento em que o ser humano passa a questionar a realidade de modo racional, provocando, assim, a substituição do saber mitológico da tradição pelo saber lógico da razão. Logo, o homem se torna o principal objeto de análise e reflexão da Filosofia, a qual buscará responder à seguinte indagação: quem é o homem?

Dessa forma, com o surgimento da Filosofia, a pessoa é vista, em sua igualdade essencial, como ser dotado de razão e liberdade, características essas que independem das inúmeras diferenças existentes entre as pessoas (sexo, raça, religião, costumes, cultura etc.). "Lançavam-se, assim, os fundamentos intelectuais para a compreensão da pessoa humana e para a afirmação da existência de direitos universais, porque a ela inerentes".5

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Contudo, a convicção de que todas as pessoas possuem direito a ser igualmente respeitadas, devido à sua humanidade6, somente se tornou possível pela sua vinculação a uma instituição social de importância crucial, qual seja, a lei escrita, entendida como "regra geral e uniforme, igualmente aplicável a todos os indivíduos que vivem numa sociedade organizada".7Dessa forma, tem-se que a lei escrita se tornou, pela primeira vez na história, o fundamento da sociedade política na Grécia, mais especificamente em Atenas8, haja vista que na democracia ateniense a autoridade ou força moral das leis escritas tornou-se superior à soberania de um indivíduo ou classe social que, anterior-mente, era ofensiva ao sentimento de liberdade do cidadão.

Nesse sentido, e dando-se um salto na história da humanidade, chega-se à época denominada de Baixa Idade Média (séculos XI e XII)9, em que se

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avulta a ideia de limitação do poder dos governantes, haja vista se se verificar a ocorrência da reconcentração do poder - já que a Alta Idade Média foi marcada pelo esfacelamento do poder político e econômico, com a instauração do feudalismo -, o qual era objeto de disputa entre o Imperador e o Papa. Com o intuito de limitar os abusos decorrentes da centralização do poder, na Inglaterra surge a Magna Carta - redigida em latim bárbaro, Magna Carta Libertatum seu Concordiam inter regem Johannem et Barones pro concessione libertatum ecclesiae et regni Angliae (Carta Magna das Liberdades ou Concórdia entre o rei João e os Barões para a outorga das liberdades da igreja e do reino inglês) - a qual consiste em declaração solene assinada pelo rei João da Inglaterra (rei João Sem-Terra) em 15 de junho de 1215, perante o alto clero e os barões do reino.

A Magna Carta abriga o embrião dos direitos humanos, notadamente quanto ao valor da liberdade. Ressalte-se, todavia, que a liberdade assegurada não é a mesma que se busca na contemporaneidade - ou seja, em benefício de todos -, mas, pelo contrário, referida declaração assegurava liberdades específicas, respeitando os estamentos sociais existentes na época - nobreza, clero e povo. E isto porque constitui a Magna Carta uma convenção firmada entre o monarca e os barões feudais, pela qual se lhe reconheciam certos privilégios e, por consequência, limitava a soberania do monarca. Apesar disso, ela possui, sim, relevante importância para os direitos humanos, haja vista deixar "implícito pela primeira vez, na histórica política medieval, que o rei acha-se naturalmente vinculado pelas próprias leis que edita".10

Já no século XVII, após um longo período de recrudescimento da concentração de poderes na Europa, houve uma "crise da consciência europeia"11, responsável por alimentar o sentimento de liberdade e a necessidade de concretização do valor da harmonia social, notadamente em razão das devastações provocadas pela guerra civil que se espalharam pelo território europeu.

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Em vista disso, diante da consciência social dos perigos representados pelo poder absoluto, na Inglaterra surgiram dois textos legais que buscaram garantir as liberdades sociais, quais sejam, o Habeas Corpus e o Bill of Rigths, os quais também constituem marcos legislativos no desenvolvimento dos direitos humanos.

A Lei de Habeas Corpus é datada de 1679 e teve por objetivo atribuir eficácia de remédio jurídico ao habeas corpus, entendido este como mandado judicial (writ) em caso de prisão arbitrária, o qual já existia na Inglaterra desde antes do advento da Magna Carta. A razão para a concepção do habeas corpus advém da ideia de que o Direito Inglês condiciona a existência de direitos à existência de ação judicial própria para a sua defesa, ou seja, são as garantias processuais que criam o direito e não o contrário. Dessa forma, no que se refere aos direitos humanos, tem-se que os ingleses defendem que a evolução da proteção jurídica da pessoa humana decorre, em especial, mais das garantias judiciais do que das meras declarações de direitos.12Por sua vez, a Declaração de Direitos (Bill of Rights) de 1689, uma das Leis Fundamentais do reino inglês, foi responsável pela institucionalização da permanente separação de poderes no Estado e, por consequência, pela limitação dos poderes governamentais e pela garantia das liberdades individuais.13Em que pese não trazer uma declaração de direitos...

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