O direito como instrumento de desmercantilização do trabalho: perspectiva da história e da ciência política no século XX

AutorValéria Marques Lobo
Páginas24-58
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O DIREITO COMO INSTRUMENTO DE DESMERCANTILIZAÇÃO DO
TRABALHO: PERSPECTIVA DA HISTÓRIA E DA CIÊNCIA POLÍTICA NO
SÉCULO XX
LAW AS WORK DECOMMODISATION INSTRUMENT: PERSPECTIVE OF
HISTORY AND POLITICAL SCIENCE IN THE TWENTIETH CENTURY
Valéria Marques Lobo*
Pois me dei conta de que o direito (... ) er a um braço da política e a política era uma de sua s
armas; era uma disciplina a cadêmica, sujeita ao r igor de sua própria lógica autônoma;
contribuía à definição da própria identida de tanto dos governa ntes quanto dos governados; e,
acima de tudo, proporcionava um terreno para a luta de classes, onde se esgr imiam noções
alterna tivas da lei” (Thompson, 1981: 157).
Por várias vezes, suas reivindicações incluíam um salário mínimo legal, o controle do ‘suor’
das mulheres e meninos, a a rbitragem, o compromisso dos mestres em encontrar tra balho
para tr abalhador es qualificados tornados supérfluos pela intr odução das máquinas, a
proibiçã o de traba lhos ordiná rios de imitação, o direito à livre associa ção sindica l. Todas
essas reivindicações olhavam par a a frente, tanto quanto par a trás, e traziam em si uma
imagem vaga de uma comunidade não ta nto paternalista , mas sim democrática, onde o
crescimento industria l seria r egulado segundo prior idades éticas e a busca do lucro se
subordina ria às necessida des humanas” (T hompson, 1987, Vol. 3: 123).
Resumo: O Direito do Trabalho tem cumprido papel histórico no capitalismo de reduzir
desigualdades sociais e de poder entre empregadores e empregados. Em sua regulação,
diminui o caráter de mercadoria que o sistema econômico tenta impor ao trabalho humano.
No Brasil, esse papel foi atenuado em vista da tendência do século XX de deixar fora do
sistem oficial de regulação trabalhista grande número de trabalhadores. Mesmo no final do
século, quando o País parecia encontrar condições ideais de desmercantilização do trabalho,
pelo advento da Constituição e de outros fatores sociais e políticos relevantes, o elevado
desemprego vivido na época, aliado a um revigoramento da ideologia de mercado,
Artigo recebido em 10 de setembro de 2015
* Doutora em Ciência Política pelo IUPERJ, atual IESP (2005). Mestre em Ciência Política pela UFMG (1995).
Professora Associada de História da UFJF.
RDRST, Brasília, volume 1, n. 2, 2015, p 24-58, jul-dez/2015
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mantiveram como enigma e desafio o contraponto histórico entre desmercantilização e
mercantilização do trabalho humano na economia e sociedade brasileiras.
Palavras chave: Direito do Trabalho. Papel histórico no capitalismo. Desmercantilização do
trabalho. Peculiaridades da evolução brasileira.
Abstract: Labor Law has played historical role in capitalism by reducing social and power
inequalities between employers and employees. In its regulation, it decreases the character of
merchandise that the economic system tries to impose on human labor. In Brazil, this role was
mitigated given the trend of the twentieth century to leave outside the official system of labor
regulation a large number of workers. Even at the end of the century, as the country seemed to
find ideal conditions for the decommodisation of labor due to the advent of the Constitution
and other relevant social and political factors, the high unemployment experienced at the time,
combined with a strengthening of market ideology, maintained as both an enigma and a
challenge the historical contrast between decommodisation and commoditisation of human
labor in the Brazilian economy and society
Keywords: Labor Law. Historical role in capitalism. Labor decommodisation. Peculiarities of
the Brazilian evolution.
1.Introdução
O Direito do Trabalho tem cumprido um papel primordial na história do capitalismo
mundial no sentido de promover a redução das desigualdades entre empregadores e
empregados, tanto no que diz respeito ao aspecto socioeconômico, como no que se refere ao
desequilíbrio de poderes entre essas duas forças fundamentais da economia capitalista. O grau
em que isso ocorre varia conforme a sociedade e pode indicar o patamar civilizatório de cada
uma delas. Tendo surgido em meio ao processo de desenvolvimento das sociedades
industriais, o Direito do Trabalho emerge como um campo de disputas no qual os contendores
tendem a se comportar como agentes dispostos a maximizar seus ganhos. Do ponto de vista
dos empresários, o melhor resultado é quase sempre a ampliação do poder do mercado na
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definição das regras de contratação, ao passo que, para os trabalhadores, a ação direcionada a
maximizar os ganhos orienta-se pela perspectiva da desmercantilização do trabalho.
Tanto nas comunidades do século XVIII que inspiraram o historiador inglês Edward
Palmer Thompson nas análises acima como nas sociedades atuais, verifica-se uma tendência
no sentido de que, quanto mais as leis que regulam a vida de um determinado agrupamento de
pessoas estiverem orientadas por prioridades éticas e pelas necessidades humanas, mais
elevado será o patamar civilizatório alcançado por aquele grupo. Nas sociedades capitalistas
que se constituíram a partir do século XIX, isso equivale à suposição de que o grau em que o
Direito se orienta por razões éticas e pelas necessidades humanas é diretamente proporcional
ao nível de dependência em que o cidadão se encontra em relação à venda de sua força de
trabalho no mercado para sobreviver.
No decorrer do século XX, o arrefecimento da perspectiva revolucionária que marcou
a luta dos trabalhadores em diversos cenários nacionais deu lugar a uma postura reformista,
no âmbito da qual as políticas sociais em geral e as leis de proteção aos assalariados em
particular aparecem como pressupostos da cidadania. À medida em que direitos individuais
vão sendo implementados, a ação coletiva dos trabalhadores e suas entidades representativas
tendem a se fortalecer, favorecendo, por suposto, o desenvolvimento do Direito Coletivo do
Trabalho e da própria Cidadania.
No Brasil, não obstante a fixação de distintas leis trabalhistas desde fins do século
XIX, o Direito do Trabalho só se torna objeto de um tratamento mais sistemático a partir das
décadas de 1920 e 30 do século passado, refletindo o aumento da participação dos
assalariados no conjunto da população e do poder de barganha exercido por esses
trabalhadores nas mais diversas arenas em que o conflito Capital/Trabalho se manifesta. Para
os trabalhadores brasileiros, contudo, em face da presença de um elevado contingente de
pessoas excluídas do mercado formal de trabalho, desmercantilizar implica considerar
também a situação dessa população excedente, que por se situar a uma grande distância em
relação aos benefícios da Cidadania, pressiona permanentemente o mercado de trabalho,
fragilizando a posição dos próprios trabalhadores formalizados e, por conseguinte, sua ação
coletiva. De modo que, para os trabalhadores brasileiros, reduzir o poder do mercado implica
formular proposições que considerem também a presença daquele vasto segmento
populacional. Do contrário, é sua própria posição no mercado de trabalho, mas também nas
disputas que ocorrem no campo do Direito, que se fragiliza.

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