Direito e marxismo: entre o antinormativo e o insurgente/Law and Marxism: between antinormativism and insurgency.

AutorSoares, Moises Alves

As analises marxistas, em geral, e as analises marxistas do direito, em particular, encontram hoje seu ressurgimento, justamente apos os diagnosticos que diziam que o capitalismo representava o fim da historia. Desacreditadas tais perspectivas, volta a pauta a crise estrutural do capitalismo e, ao nivel das analises juridicas, o papel do direito nestas sociedades em crise.

A nova recepcao do marxismo como metodo para compreender o direito deparase, porem, com uma tradicao razoavelmente consolidada em torno do que veio se chamando, desde a decada de 1970, ao menos na America Latina, de teorias criticas do direito. A encruzilhada da qual a critica marxista ao direito tem de sair e a seguinte: as teorias criticas do direito consolidaram sua incidencia pratica nas lutas sociais, ainda que preservando um deficit teorico quanto a uma profunda compreensao dos processos sociais no capitalismo; ja a teoria marxista que ressurge para o direito se ressente da incapacidade de intervencao nos conflitos que envolvem os movimentos populares e seus assessores, ainda que possua um dos mais sofisticados arsenais teoricos de analise das formas sociais do capital.

O retorno da critica marxista ao direito ocorre, justamente, no momento em que as teorias criticas do direito passam por um esgotamento analitico e influxo de suas praticas. E preciso, como ponto de partida, analisar em que sentido isso acontece. Para tanto, analisaremos os caminhos que levam o alternativismo e o pluralismo juridico, de teorias ecleticas, que dialogaram com o marxismo tendo um horizonte de transformacao social, a uma negacao da critica estrutural e um certo fascinio pelos constitucionalismos--seja o velho ou o novo velho. A este processo de falencia da critica, denominamos de escombros das teorias criticas do direito.

Por sua vez, num segundo momento, como um contraponto para sairmos dos escombros, defendemos a imperiosa necessidade de um resgate das contribuicoes do debate juridico sovietico. Pois, Stutchka e Pachukanis, em que pese suas distincoes, desenvolvem uma concepcao critica de direito, a teoria antinormativista, que compreende o direito como relacoes sociais especificas ao modo capitalista de produzir a vida. Entretanto, a retomada marxista da critica juridica nao se encerra ai, afinal ha que se dar conta de um novo contexto que em muito pouco se assemelha com a do periodo revolucionario russo. Por isso, em ultimo lugar, colocaremos o resgate da critica marxista ao direito sob a subsuncao da critica insurgente do direito.

  1. As teorias criticas do direito sob escombros

    O aparecimento das teorias criticas do direito significou o esgotamento, ao nivel epistemologico, dos canones da teoria do direito construida entre o jusnaturalismo e o juspositivismo. Ainda que persistente a dicotomia explicativa--direitos naturais X direito positivo--no imaginario dos juristas, com a consolidacao do pensamento critico no campo das ciencias sociais, se evidencia, tambem no campo juridico, a possibilidade de rompimento com este dilema.

    Para o caso latino-americano, a decada de 1970 representou o periodo heroico da critica juridica, enfrentando as contradicoes proprias aos regimes ditatoriais que caracterizaram o continente no periodo. Ja uma segunda geracao, apos os processos de reconstitucionalizacoes formais, pode desenvolver com certa liberdade teorica e pratica a sua avaliacao critica acerca do fenomeno juridico e seus usos. E neste contexto, por exemplo, que surge o movimento de direito alternativo no Brasil.

    Seu ciclo, iniciado no final de decada de 1980, se encerraria, contudo, ja no meado na decada de 1990. Seguindo as tendencias pos-modernizantes dos anos de 1990, as teorias criticas do direito abandonaram o por-em-crise das propostas marxistas de analise e o criterio de verdade que os movimentos populares ensejam, em nome de suposta liberdade teorica e de seu consequente descompromisso academico.

    A ascensao do neoliberalismo e a queda da Uniao Sovietica, ja no inicio dos anos de 1990, evidenciaram um aprofundamento das relacoes sociais capitalistas. Estes exemplos historicos sao um demonstrativo de que o capital, cada vez mais, vem se apropriando da sociabilidade humana, o que repercute, inclusive, nas construcoes teoricas a partir de entao, mesmo naquelas autodenominadas criticas.

    As teorias criticas do direito, no contexto latino-americano e brasileiro em especial, foram influenciadas, desde o inicio, por vertentes marxistas de analise da realidade social. Nesse sentido, um projeto politico transformador parecia guiar suas leituras, sempre recorrendo a critica do capitalismo, a partir de Marx, Engels e Gramsci, para mencionar os mais citados.

    E verdade, porem, que tambem desde o comeco uma leitura marxista do direito apareceu apenas residualmente nestas teorias criticas, ja que prevaleceu a interpretacao de que as propostas dos juristas sovieticos, tais como Stutchka e Pachukanis, ao retomarem Marx, instauravam um dogmatismo economicista na compreensao do juridico, nao dando a este a possibilidade de ser "alternativo", "plural" ou "emancipatorio". Mesmo assim, ressaltava-se o projeto politico emancipatorio.

    A partir da decada de 1990, entretanto, as teorias criticas do direito ficam sob escombros, ja que abandonam nao so a critica marxista, muitas das vezes construida de forma ecletica, da sociedade, mas tambem o projeto politico de transformacao radical que dela decorre. Como as influencias marxistas na leitura do direito sempre foram rarefeitas, ainda que presentes aqui e acola (via recepcao da critica juridica francesa--de Edelman ou Mialle--ou do alternativismo juridico italiano, para citar dois exemplos fortes), a fronteira da critica marxista ficou mais facilmente desprotegida e grassou uma ruptura com suas perspectivas mais importantes, quais sejam, a critica estrutural ao capitalismo e o projeto politico transformador que e inerente a esta critica.

    Ao nivel da teoria do direito, esta ruptura com o marxismo representou um recuo para concepcoes ainda mais adequadas a ordem social do capitalismo. Se o que prevalecia era o alternativismo/pluralismo (ou normativismo de esquerda)--tendencia que ate pode dialogar com a interpretacao marxista do direito mas que com ela nao se confunde--, agora teria vez um receituario garantista de direitos, individuais e sociais, conforme sua inscricao nos documentos constitucionais a duras penas conquistados apos os regimes antidemocraticos que se estabeleceram por todo o continente. Por conseguinte, a utopia concreta da construcao de um novo modelo de sociabilidade resumiu-se ao estreito horizonte da efetivacao de direitos programaticos.

    Nao e por outra razao que indicamos este processo de abandono do marxismo e da praxis dos movimentos populares como sendo ruinoso. Os escombros das teorias criticas do direito tem este significado. E certo que sempre existirao as excecoes para confirmarem a regra, no entanto, essa avaliacao geral pretende problematizar o estado da arte em que se encontram tais teorias criticas e propugnar um novo impulso para sua superacao dialetica.

    A critica juridica brasileira chegou a uma dicotomia, no seio do movimento do direito alternativo, que se expressou pela polarizacao entre direito alternativo e pluralismo juridico. Ambos os "paradigmas" explicativos propunham-se caracterizadores do juridico ao mesmo tempo em que definidores de seus usos--nisto consistindo uma importante contribuicao. No entanto, de que maneira essa conjugacao entre caracterizacao e usos do direito se deu? Em termos gerais, podemos dizer que restou aceite a sistematizacao critica do direito em seus tres planos de instituicao: o instituido sonegado, o instituido relido e o instituinte negado. (3)

    As intuicoes iniciais foram interessantes. A geracao do movimento do direito alternativo significou a possibilidade de os juristas se organizarem politicamente. Foi significativa sua movimentacao por nao se resumirem a propostas teoricas ou universitarias. Dai que, assim como na Italia ou na Espanha, tambem o Brasil assistiu a aparicao de uma magistratura alternativa.

    Tomemos como exemplo dos resultados obtidos pelo movimento a obra de Amilton Bueno de Carvalho, um dentre tantos magistrados que se identificaram com o alternativismo juridico brasileiro. Operando com uma interpretacao gramsciana, busca apresentar sua pratica de magistrado alternativo como resultado da postura de um "jurista organico", criticando a lei como instrumento de classe e indo a cata de um direito "mais justo, mais igualitario, comprometido com a maioria trabalhadora", enfim, um direito "progressista". (4) Sua preocupacao, aqui, e a de, tendo em vista sua pratica profissional, socializar as possibilidades de uma atuacao organica em favor dos "menos favorecidos". (5) A influencia dos debates da teologia da libertacao e reconhecivel, a tal ponto que Carvalho faz uso de um horizonte de pensamento que ele chama de "jusnaturalismo de caminhada", o qual guarda as potencialidades e limites proprios a uma concepcao de direito que intenciona afirma-lo como produto humano. Sua potencialidade esta no ambito da superacao que propoe, ou seja, na medida em que tal "jusnaturalismo de caminhada" e "dialetico, ou de superacao, ou de movimento". (6) Assim, o plano do instituido--que para os alternativistas se refere a lei/legalidade--implica uma "luta de destruicao da lei para sua construcao". A dialetica do direito--como e marca, inclusive, de praticamente toda a critica juridica brasileira--nao esta preocupada em compreender o fenomeno juridico em sua especificidade historica e, assim, tomando-o como um universal, chega a conclusao de que "a lei tem servido basicamente como instrumento de opressao, mas de outro modo nao se ve possivel uma sociedade sem normas". (7) Em face de suas potencialidades--expressas nos entendimentos acerca da superacao e negacao da lei, que levam ao raciocinio de que "a efetividade da norma nao e imediata, [pois] depende em...

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