Por Um Direito Penal do Trabalho

AutorRené Ariel Dotti
Páginas17-2

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1. O código penal

O Código Penal (Dec.-lei n. 2.848, de 07.12.1940) dispõe sobre os crimes contra a organização do trabalho, prevendo 11 hipóteses de ilícitos fundamentais (arts. 197 a 207). Estão aí descritas as modalidades de atentado contra a liberdade de trabalho; contra a liberdade de contrato trabalhista; contra a liberdade de associação; a paralisação de trabalho, seguida de violência ou perturbação da ordem; a paralisação de trabalho de interesse coletivo; a invasão de estabelecimento industrial, comercial ou agrícola; a sabotagem; a frustração do direito assegurado por lei trabalhista; a frustração de lei sobre a nacionalização do trabalho; o exercício de atividade infringindo decisão administrativa; o aliciamento para fim de imigração e o aliciamento de trabalhadores de um local para outro do território nacional.

2. Bases para a criminalização

A Exposição de motivos ao projeto de que resultou o CP 1940 justifica a criminalização desses tipos de ofensa com a necessidade de intervenção do Estado no domínio econômico para suprir as deficiências da iniciativa individual e coordenar os fatores da produção, de maneira a evitar ou resolver os seus conflitos e introduzir no jogo das competições individuais o pensamento e o interesse da nação.1

Se é certo que tal orientação - fundada na filosofia política da Carta Constitucional de 1937 - privilegiava o Estado Novo2 como a sua beneficiária, é também certo que a atual Carta Política adota igualmente o princípio de intervenção, porém o faz em nome de outros interesses comuns aos Estados Democráticos

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de Direito, como: a) a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III); b) o valor social do trabalho (art. 1º, IV); e c) a garantia de acesso à jurisdição e o consequente direito de ação (art. 5º, XXXV e art. 7º, XXIX).

Segundo o principal redator do diploma penal vigente, ministro nelson hungria, o Código, "ao cuidar dos fatos lesivos da organização do trabalho, não atendeu a radicalismos doutrinários ou políticos. Não se afeiçoou incondicionalmente ao laissez faire, laissez passer da economia liberal, nem ao intervencionismo irrestrito da economia dirigida ou planificada. Ficou em ponto de equidistância. De acordo, aliás, com preceito constitucional, preferiu o que ansiaux denomina ‘intervencionismo conservador’, não excluindo a iniciativa individual e assegurando o quadro sindical livre. Aceitou a intervenção do Estado na vida econômica, mas tão somente para impedir o êxito da vis ou da fraus ou como medida indeclinável de defesa do interesse coletivo ou da ordem jurídica. O legislador de 40 entendeu que não há incompatibilidade entre liberdade política e intervencionismo temperado, ou que é possível a coexistência, no campo econômico, de setores livres e setores controlados; note-se que não dizemos dirigidos, a exemplo, aliás, do que ocorre na França e nos Estados Unidos, países de clima democrático por excelência. O controle impõe-se, no próprio seio do regime demoliberal, para evitar o despejado sacrifício do bem geral em holocausto a interesses individuais hipertrofiados, inteiramente desprovidos de sentimento de solidariedade, de espírito público ou de compreensão da liberdade jurídica do trabalho".3

Também discorrendo a respeito do objetivo jurídico de proteção penal, heleno fragoso sustenta que o princípio da autonomia da vontade - defendido na elaboração do Código Penal de 1890 - "é puramente ilusório se o contrato se celebra entre o forte e o fraco. O contrato se transforma virtualmente num sistema de poder tornando-se a expressão da lei do mais forte. Por isso mesmo, como mostra josserand, a evolução dos contratos degenerou em revolução notadamente em matéria trabalhista, com a intervenção da lei para proteger o economicamente mais fraco".4

3. O florescimento dos microssistemas

Nas últimas décadas, o sistema positivo brasileiro foi alcançado pelo florescimento dos microssistemas oriundos da expansão extraordinária das leis especiais que passaram a circular em torno dos códigos Civil, Penal, Comercial, etc. A propósito de crimes contra as relações de trabalho, a Constituição Federal em mais de uma oportunidade contém normas caracterizadoras de mandados de criminalização.5 Um dos exemplos se contém no inciso X do art. 7º, que regula direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, ao estabelecer que o salário é protegido na forma da lei, "constituindo crime a sua retenção dolosa". Também outros mandatos repercutem no campo das atividades laborais para a proteção do empregado, como o previsto no art. 5º, XLI, nos seguintes termos: "- a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e das liberdades fundamentais".

Anteriormente, a prática de atos resultantes de preconceitos de raça ou de cor constituía simples contravenção penal, definida pela Lei n. 1.390, de 3 de julho de 1951 e consistente na recusa, por parte de estabelecimento comercial ou de ensino de qualquer natureza, de hospedar, servir, atender ou receber cliente, comprador ou aluno por preconceito de raça ou de cor, sancionada com penas irrisórias.

A imensa difusão de uma nova cultura social nas relações humanas a partir do marco declaratório do Estado Democrático de Direito ampliou a proteção de bens morais e espirituais que se condensam na pessoa humana.

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4. A clássica unificação do direito positivo

Antes do advento dos Códigos chamados decimonónicos,6 regia-se a sociedade pelas consolidações. Estas procuravam reproduzir o Direito sem modificá-lo, visando somente a sua conservação e melhoria em um proceder histórico. As obras legislativas totalizadoras constituíam inventários da regulação existente, como as da Índia, ou uma seleção de textos escolhidos como no Digesto. O Código, ao contrário, não é continuidade, é ruptura. Procura criar uma nova regulação, substitutiva; "ao invés de compilar, ordena, baseando-se na racionalidade. Tem um caráter constituinte do Direito Privado", como ensina lorenzetti.7

Mestres de notável prestígio e, por coincidência, redatores de anteprojetos de Código Civil, a exemplo de orlando Gomes, no Brasil (1963), e antunes varella, em Portugal (1966), reconheceram a inviabilidade dos monossistemas. O primeiro admitiu que a multiplicação das leis especiais está causando a agonia do Direito Civil em face da quebra do sistema que, assim, deixou de condensar e exprimir os princípios gerais do ordenamento. E o segundo conclui que "o novo jurista, sob a pressão dos fatos, passou a venerar as lei especiais, como uma espécie de deuses domésticos, mais próximas das realidades concretas da vida, mais acessíveis às preces de cada cenáculo político, mais permeáveis às ideias-forças do mundo contemporâneo".8

Pode-se falar que na atualidade há um desprestígio da codificação como instrumento de segurança. Não se poderá mais afirmar, como seria possível no começo do século, que os códigos (civil, penal, comer-cial, etc.) caracterizam meios jurídicos de segurança dos cidadãos. Essa é a lúcida conclusão de lorenzetti ao afirmar que "a idéia de ordenar a sociedade ficou sem efeito a partir da perda do prestígio das visões totalizadoras; o Direito Civil se apresenta antes como estrutura defensiva do cidadão e de coletividades do que como ‘ordem social’." (...) "A explosão do Código produziu um fracionamento da ordem jurídica, semelhante ao sistema planetário. Criaram-se microssistemas jurídicos que, da mesma forma como os planetas, giram com autonomia própria, sua vida é independente; o Código é como o sol, ilumina-os, colabora com suas vidas, mas já não pode incidir diretamente sobre eles. Pode-se também referir a famosa imagem empregada por Wittgenstein aplicada ao Direito, segundo a qual, o Código é o centro antigo da cidade, a que se acrescentaram novos subúrbios, com seus próprios centros e características de bairro. Poucos são os que se visitam uns aos outros; vai-se ao centro de quando em quando para contemplar as relíquias históricas".9

Essas certeiras observações e comparações decorrem do surgimento dos microssistemas em todos os ramos jurídicos. Relativamente ao sistema penal, a diversificação dos interesses populares e as fran-quias constitucionais e legais de um regime autenticamente democrático, assim como ocorre em nosso país, criaram núcleos com identidades e características próprias. Eles compreendem, isolada ou simultaneamente, vários aspectos como: a) o bem jurídico tutelado (vida humana, liberdade, solidariedade social, patrimônio, probidade administrativa, meio ambiente, qualidade...

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