O Direito Penal em tempos de epidemia do coronavírus no Brasil

A emergência sanitária desencadeada pela covid-19 não está imune à enérgica pretensão de aplicação do Direito Penal, especialmente no Brasil, em que há uma tradição de utilização da ameaça da sanção penal como instrumento de persuasão para a observância de políticas públicas. É nesse contexto que, nas duas últimas semanas, houve um boom de instaurações de investigações criminais.

De um lado, oferta de medicamentos e produtos milagrosos[1], eventos e festas marcados para a propagação do vírus[2], indivíduos divulgando que foram responsáveis por levar a infecção a um lugar até então seguro[3], infectados disseminando a doença por não respeitarem a quarentena[4], exposição de trabalhadores a risco de infecção desnecessário[5], falta de equipamentos de proteção para profissionais da área da saúde que cuidam de infectados[6], indivíduos se aproveitando da situação para fabricar produtos sanitários clandestinamente ou vender produtos adulterados[7], comerciantes cobrando preços exorbitantes por insumos essenciais em época de calamidade[8] e promovendo propaganda enganosa[9].

Do outro, estabelecimentos de saúde que não teriam comunicado informações a respeito de pacientes infectados[10] e, pasme-se, até relato de advogado infectado que comparece à audiência[11] e médico que sabidamente portaria o vírus atendendo pacientes[12]. Esses fatos, que beiram a ficção, frequentaram os noticiários locais nas últimas semanas.

Todas essas notícias possuem algo em comum: encontram condutas criminais correspondentes no Ordenamento Jurídico brasileiro. Abaixo, faremos um breve panorama sobre os tipos penais costumeiramente invocados. São eles:

  • Perigo de contágio de moléstia grave (artigo 131, Código Penal)
  • Iniciando pelos crimes de periclitação da vida e da saúde, a imputação ao artigo 131 do Código Penal está condicionada à comprovação do dolo específico, isto é, não basta o agente ter ciência de que foi infectado, devendo, adicionalmente, ter a intenção de transmitir a doença grave. Na hipótese de, por exemplo, a pessoa contaminada pela covid-19, intentando transmitir a doença a outrem, provocar um contato físico capaz de provocar a contaminação, aparentemente poderá ser enquadrada no mencionado tipo penal, que prevê pena de reclusão de um a quatro anos e multa.

    O tipo penal demanda que a moléstia transmitida seja grave. Por essa razão, caso o vírus, do ponto de vista médico, caracterize-se apenas por sua fácil e difusa transmissibilidade, mas não tenha um índice de letalidade elevado[13], a justificar a aplicação do tipo penal, esse poderá ser afastado no caso em concreto, a menos que a pessoa para a qual se tenha intenção de transmitir a doença faça parte do grupo de risco, hipótese em que a gravidade da patologia passa a ser discutível.

  • Perigo para a vida ou saúde de outrem (artigo 132, Código Penal)
  • A conduta de expor a vida ou a saúde de outrem a perigo direto e iminente é aplicável somente se o fato não constitui crime mais grave. Em que pese a abrangência da conduta narrada no tipo penal, há interessantes limitantes para a sua aplicação. O tipo exige que o perigo seja direto, isto é, imediatamente vinculado à vítima, e, além disso, iminente (próximo). Não basta, portanto, que o perigo seja iminente e indireto[14] ou direto e não iminente. Além disso, deve existir um dolo de expor o outro a esse perigo, ainda que em sua modalidade eventual (assumir o risco de expor ao perigo).[15] Ainda, o perigo sempre deve ser concreto, devendo ser comprovado que o comportamento do agente efetivamente desencadeou a exposição ao perigo direto e iminente.[16] É importante que esse perigo não expresse um risco permitido. É por essa razão, inclusive, que não responde por esse crime pessoa que exponha outrem ao contágio de uma gripe ou demais patologias de transmissão corriqueira e com pouca gravidade, por exemplo. No que diz respeito à covid-19, com a promulgação da Lei nº 13.979/20[17], fica evidente a carência de permissividade do risco, posto que caracterizado como "emergência de saúde pública de importância internacional".

    Suponhamos que a um médico ou enfermeiro tenham sido negados equipamentos de proteção individual (álcool em gel 70%, máscaras cirúrgicas, luvas descartáveis, vestimentas apropriadas, óculos/proteção facial, etc.) para atendimento das pessoas contagiadas pela covid-19. Nessas hipóteses, a administração do hospital assume, em tese, o risco de expor tais profissionais a perigo direto e, ainda mais que iminente, um perigo atual.

  • Atentado contra a liberdade do trabalho (artigo 197, I, Código Penal)
  • Outro crime que tem sido noticiado é o do atentado contra a liberdade do trabalho, sobretudo em hipóteses de funcionários/colaboradores que têm sido constrangidos, mediante violência ou grave ameaça, a trabalhar presencialmente durante os períodos de suspensão de atividades não essenciais destinada a evitar a propagação da covid-19[18]. Coagir interessados a trabalhar em home office a antecipar férias também é uma conduta passível de enquadramento no aludido tipo penal, a depender das peculiaridades do caso concreto.

    Fora isso, nessas hipóteses os tomadores de serviços arriscam-se também à imputação com base no artigo 132 do Código Penal, notadamente se: I) em seu quadro de funcionários houver pessoas do grupo de risco; e II) não forem fornecidos equipamentos e diretrizes de segurança para prevenir a contaminação, como álcool em gel 70%, luvas e outros instrumentos e orientações para um distanciamento mínimo entre os funcionários, observadas as peculiaridades da atividade.

  • Causar epidemia (artigo 267, Código Penal)
  • Referido tipo penal consiste em crime de perigo comum ou coletivo, especificamente contra a saúde pública, que se destina a um número difuso e indeterminado de vítimas, ao contrário dos crimes de perigo individual, como o do artigo 132 do Código Penal. Suas hipóteses de aplicação, porém, são mais remotas, uma vez que pressupõem um resultado naturalístico que dá início à epidemia. Epidemia, por sua vez, é considerada a "afetação da saúde de um número significativo de pessoas pertencentes a uma coletividade, numa determinada localidade".[19]

    Por essa razão, a pena do crime é tão elevada (reclusão de dez a 15 anos), sendo possível aplicá-la em dobro se do fato resultar a morte. Não obstante o tipo penal seja punido também a título de culpa, na prática as condutas que causem a epidemia da covid-19 são restritas a localidades que ainda não foram afetadas, que já são raras no contexto atual de transmissão difusa/comunitária. Assim, poderá haver incidência do tipo penal se determinada pessoa, por algum meio, contaminar um número significativo de pessoas em uma região ainda não afetada pelo vírus.

    Infração de medida sanitária preventiva (artigo 268, Código Penal)

    O crime de infração de medida sanitária preventiva consiste em norma penal em branco, pois remete à violação de "determinação do poder público destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa". É possível constatar a sua corriqueira invocação como sanção, sobretudo aos que não observarem os decretos estaduais e municipais de emergência que tratam da covid-19. Como exemplos de condutas típicas em relação a esse dispositivo, mencionamos a organização e a participação em aglomerações, a realização de atividades declaradas suspensas e a infração a medidas de isolamento impostas por médicos.

    É imperioso que de fato exista uma determinação (ordem expressa) e não mera orientação ou sugestão do poder público para que se configure a figura típica. Por essa razão, em tese as seguintes condutas possuem relevância penal: I) o descumprimento dos decretos de emergência, isto é, das restrições de atividades impostas pelo poder público; II) o descumprimento de qualquer norma individual e concreta de medida sanitária, tais como: II.I) a prescrição médica ou a determinação por agentes de vigilância do isolamento domiciliar ou hospitalar de pessoas contaminadas; II.II) a indicação por médico ou profissional de saúde da realização de exames e tratamentos.

    É importante destacar que as normas individuais e concretas acima mencionadas só ganham relevância penal por terem sido previstas, anteriormente, em outros instrumentos normativos do poder público[20]. Em todo caso, as exigências formais para a edição e a promulgação dessas normas devem ser observadas.

  • Omissão de notificação de doença (artigo 269, Código Penal)
  • Outra conduta típica que tem recebido destaque nos noticiários é a omissão de notificação de doença[21]. O crime, que busca proteger a saúde pública, apenas ocorrerá se a notificação à autoridade pública for compulsória, sendo que essa notificação só pode ser realizada por sujeito determinado: profissional da saúde, em especial médicos. No âmbito federal, a Lei nº 13.979/20 dispõe sobre a necessidade de comunicação imediata às autoridades sanitárias em casos de possíveis contatos com os agentes infecciosos ou de circulação em áreas consideradas contaminadas (artigo 5º). Além disso, torna obrigatório o compartilhamento, entre órgãos e entidades das administrações públicas federal, estadual, distrital e municipal, bem como por pessoas jurídicas de direito...

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