O Direito à Profissionalização do Adolescente e a Lei do Sinase: Comentários

AutorRafael Dias Marques
Páginas149-155

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1. Introdução

O capítulo VIII da Lei Instituidora do Sistema Nacional Socioeducativo1 é dedicado à capacitação para o trabalho. Com efeito, o capítulo encontra-se perfeitamente arrimado no art. 227 da Constituição Federal, que, ao preencher o conteúdo normativo do princípio constitucional da proteção integral e prioridade absoluta, elenca, como direito fundamental do adolescente, a profissionalização.

Reforçando, em sede constitucional, tal direito, pode também ser destacado o art. 205 da Carta de 1988, que, ao prever o direito à educação, reza, como conteúdo deste, a qualificação para o trabalho.

Aliás, não é por outro motivo que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), ao compor o conteúdo normativo constitucional, estatui, em seu art. 69, que o adolescente tem direito à profissionalização e à proteção ao trabalho, observados os seguintes aspectos, entre outros: a) respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento;
b) capacitação profissional adequada ao mercado de trabalho.

Muito sabiamente, assim, a Constituição Federal e o ECA impuseram padrões normativos que pretendem, no plano da realidade, quebrar um poderoso e perverso círculo de miséria, que tem como ponto de partida e de chegada uma situação de pobreza e é seguido de trabalho precoce — evasão escolar — falta de acesso à educação básica — falta de profissionalização — subemprego ou desemprego.

Destarte, para reproduzir essa quebra de paradigma no seio da realidade, exsurgem obrigações comissivas, imputáveis, em um esquema de tríplice responsabilidade, ao Estado, à família e à sociedade, na forma dos artigos acima citados, que arrimam, na vertente do trabalho decente, o princípio da proteção integral. Fala-se, então, em preenchimento material do direito fundamental à profissionalização, por meio de ações que lhe venham a dar concretude prática, as quais, por sua vez, correspondem a deveres jurídicos imputáveis a estruturas e instituições diversas.

Ora, por serem obrigações jurídicas, sobre elas incide a nota da coercitividade e da vincula-

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ção, anulando-se, pois, o elemento volitivo da não realização da ação embutida na obrigação. Cabe, pois, ao agente obrigado a realização da conduta requerida pela norma, de modo vinculado, deixando-se a discricionariedade no campo operacional da conduta — e não no campo existencial do agir, isto é, no campo do como fazer — e não no campo da existência desse próprio fazer.

É, pois, sob este esquema de positivação constitucional do direito à profissionalização, tríplice responsabilidade e preenchimento material do direito, que a Lei em comento estende a fruição desse padrão jurídico aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas, gerando direitos e deveres, correlatos, exigíveis, coercitivos e vinculativos.

Com efeito, as cinco disposições normativas do presente Capítulo, ao se valerem de técnicas legislativas de introdução de normas em outras Leis já editadas, criam obrigações positivas a instituições já existentes, as quais contêm ações que vêm a preen-cher o conteúdo normativo do direito fundamental à profissionalização, concebido, pela Lei do SINASE, aos adolescentes em sistema socioeducativo.

Nesse sentido, entidades integrantes do Sistema S, vale dizer, o Serviço Nacional de Aprendizagem Industrial (SENAI), o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural e o Serviço Nacional de Aprendizagem em Transporte (SENAT), tiveram inseridas, em suas respectivas Leis Criadoras, padrões de conduta direcionados à oferta de profissionalização aos adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas.

Tais padrões de conduta, muito embora lhe tenham sido cominados pela Lei do SINASE, com traço de facultatividade e escolha, a partir da opção do uso do verbo PODER, precisam ser compreendidos no esquema obrigacional acima destacado, vale dizer, correspondem a ações que compõem obrigações imprescindíveis para o preenchimento material do direito fundamental à profissionalização.

Com efeito, sendo a profissionalização um direito qualificado e fundamental, concedido a adolescentes, para cuja fruição a própria norma constitucional comina ao Estado, em sentido amplo, a responsabilidade pela garantia de fruição destes direitos, não há que se falar em facultatividade e discricionariedade, pois a Lei do SINASE disciplina ações profissionalizantes, incumbidas a estruturas do poder público e ínsitas ao gozo daquele direito, pelo que se tornam vinculantes e obrigatórias, muito embora o verbo utilizado possa vir a conduzir, num sistema hermenêutico puramente gramatical, à ideia de opção no realizar da conduta estampada na norma.

Trata-se de típico caso em que o Legislador disse menos do que deveria dizer, de modo que o sistema normativo vem ao socorro desse deslize de técnica legislativa para suprir essa falha e, dando harmonia ao ordenamento jurídico, completar a mens legis, num autêntico método de interpretação sistemática.

Com efeito, não seria solução albergada no sistema jurídico de proteção e efetivação de direitos fundamentais admitir-se que, diante de uma norma constitucional que prevê o direito à profissionalização de adolescentes, houvesse opção de escolha e facultatividade frente a uma ação — vagas em sistema de educação profissional — cominada por lei a uma estrutura — Sistema S —, para preencher o conteúdo material daquele direito, visto que outra natureza não lhe poderia incidir que não a daquele de jaez obrigacional e mesmo mandamental.

Com efeito, sendo a existência de tais instituições do Sistema S uma técnica administrativa de descentralização do Estado, recebendo, inclusive, receitas tributárias para fiel cumprimento de seus misteres, é possível dizer que integram a estrutura estatal em sentido amplo e, portanto, inserem-se na tríplice responsabilidade de adimplemento de obrigações, traduzidas em ações cominadas por lei, para preencher — e assim cumprir — direito fundamental à profissionalização que tem assento constitucional (art. 227 da CF/88) e conformação legal (art. 69 do ECA e arts. 76 e ss. da Lei em comento), em se tratando de adolescentes cumpridores de medidas socioeducativas.

Portanto, é sob este viés obrigacional que serão analisados, mais detidamente, os artigos abaixo, destacando-se, em cada um deles, a atuação finalística do Serviço de Aprendizagem e modalidades de atuação.

3. Lei do SINASE e o Sistema S

A Lei que instituiu o SINASE fez significativas alterações no Decreto-Lei n. 4.048, de 22 de

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janeiro de 1942 que instituiu o Serviço Nacional de Aprendizagem (SENAI), situação que se repetiu em relação ao Decreto-Lei n. 8.621, de 10 de janeiro de 1946, que instituiu o Serviço Nacional de Aprendizagem Comercial (SENAC), na Lei n. 8.315, de 23 de dezembro de 1991, que instituiu o Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR), na Lei
n. 8.706, de 14 de...

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