O direito público na história: do estado liberal à sociedade da informação

AutorJosé Luiz de Moura Faleiros Júnior
Ocupação do AutorMestre em Direito pela Universidade Federal de Uberlândia - UFU
Páginas7-86
CAPÍTULO 1
O DIREITO PÚBLICO NA HISTÓRIA:
DO ESTADO LIBERAL À SOCIEDADE
DA INFORMAÇÃO
Antes de adentrar à discussão nuclear da pesquisa, impõe-se breve estudo histó-
rico-evolutivo acerca da formação do Estado, de sua evolução, de suas bases teóricas
fundamentais e dos ref‌lexos da tecnologia em suas inúmeras etapas.
Nesta breve digressão, não se buscará discernir acerca da construção kelseniana de
Estado e de sua precedência à ordem jurídico-social, pois o Übermensch, para todos os
efeitos que interessam à investigação, expressa um aspecto marcado pela “oscilação” 1
que a Escola de Viena, da qual Hans Kelsen é o maior expoente, avalia do ponto de vista
de estruturas espirituais (ou ordenamentos de sentido), impertinentes à proposta de
mera revisitação histórica.
Impõe-se, na esteira do que indica Arthur Kaufmann, considerar o direito como
a “estrutura das relações nas quais os homens estão uns perante os outros e perante as
coisas”2, a ponto de se justif‌icar uma apreciação da formação do Estado, do ponto de
vista ontológico, a partir das relações nele constituídas – e, para o direito público, isto
se dá após a derradeira etapa de sobrevida do Antigo Regime.
1.1 O ESTADO MEDIEVAL E A IRRESPONSABILIDADE ABSOLUTA
O surgimento do direito administrativo perpassa pelo estudo do instituto da res-
ponsabilidade civil, remontando ao período dos reis, quando não se cogitava de qual-
quer espécie de responsabilização do soberano.3 Segundo Guido Zanobini, “o termo
responsabilidade serve para indicar a situação toda especial daquele que, por qualquer
título, deve arcar com as consequências de um fato danoso”.4 Sendo o soberano uma
1. KELSEN, Hans. O Estado como integração: um confronto de princípio. Tradução de Plínio Fernandes Toledo.
São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 31-35.
2. KAUFMANN, Arthur. Filosof‌ia do direito, teoria do direito, dogmática jurídica. In: KAUFMANN, Arthur; HAS-
SEMER, Winfried (Org.). Introdução à f‌ilosof‌ia do direito e à teoria do direito contemporâneas. Tradução de
Marcos Keel e Manuel Seca de Oliveira. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2002, p. 42.
3. GOHIN, Olivier. La responsabilité de l’État en tant que législateur. Revue Internationale de Droit Comparé,
Paris, v. 50, n. 2, pp. 595-610, abr./jun. 1998, p. 595.
4. ZANOBINI, Guido. Corso di diritto amministrativo. 6. ed. Milão: Giuffrè, 1950, v. I, p. 296. O autor ainda indica
que a primeira teoria criada para explicar a (ausência) de responsabilidade civil do Estado surgiu no século XIX,
com os alemães Richelmann, Bluntschli, Rönne, Wohl, os italianos Gabba, Mantellini, Lozzi, Saredo, além de vários
outros. Tais doutrinadores eram enfáticos na defesa desta teoria, que partia do pressuposto da irresponsabilidade
geral do Estado, que, à época, se concretizava na própria f‌igura do rei.
ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DIGITAL • JOSÉ LUIZ DE MOURA FALEIROS JÚNIOR
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f‌igura infalível e que materializava o próprio Estado naquele período, inexistia razão
para qualquer tipo de formulação dogmática de um ‘direito público’.
Segundo Maurice Hauriou, o aspecto fundamental desse período histórico está
conectado a uma distinção entre a capacidade de se obrigar e de ser responsável e de
uma capacidade de adquirir, que está atrelada à personalidade jurídica, cerne de todas
as capacidades.5 E, em exercício retrospectivo, af‌igura-se de clareza hialina o caráter
hermético da conf‌iguração do Estado medieval, que não permitia qualquer tipo de
cogitação acerca da responsabilização da f‌igura que personif‌icava o próprio Estado:
L’État c’est moi 6 (o Estado sou eu), dizia o famoso brocardo francês atribuído a Luís
XIV, denotando a assunção do poder em gradação que tornava impensável a prática de
qualquer ato passível de questionamento ou apto à falibilidade da parte do rei7 – f‌igura
soberana que materializava o Estado – não se sujeitando, ele próprio, às mesmas regras
impostas aos súditos.
Sabe-se que o princípio da separação dos poderes norteava os rumos desta con-
cepção, ditando que a sustentação da responsabilidade estatal importaria a censura ou
o julgamento dos seus atos – atividade que era totalmente defesa ao Judiciário8 – e que
tornava juridicamente inviável qualquer pretensão deste tipo, contribuindo ainda mais
para a prevalência da imagem do Estado supremo e intocável.9
Para Zanobini, por vezes, falava-se no caráter ético-jurídico do Estado, o que ex-
cluiria ele próprio, porque nunca poderia editar atos que fossem considerados ilícitos;
por outras tantas vezes, falava-se na função que é inerente ao Estado e que diz respeito
ao dever de criar o direito, missão incompatível com qualquer atividade afrontosa ao
direito e à legalidade; sob um terceiro viés, também falava-se no caráter publicístico da
personalidade do Estado, que impediria sua sujeição a um princípio de direito privado,
como o da responsabilidade por dano – que já vinha sendo desenvolvida no direito
privado, mas sequer germinava no âmbito público.10
Também no direito inglês, traduzido nas ideias de Thomas Hobbes, desde o perí-
odo medieval, já se entendia que o Estado tem seu início e seu f‌im no soberano, que é,
5. HAURIOU, Maurice. Précis de droit administratif et de droit public. 11. ed. Paris: Librairie du Recueil Sirey,
1927, p. 301.
6. Há outros brocardos que marcaram o período, como “o rei não erra/não pode errar” (“the King can do no wrong”)
e “o que agradou ao príncipe tem força de lei” (“quod principi placuit habet legis vigorem”), evidenciando a com-
pleta falta de cogitação da responsabilização do soberano. (CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação
de indenizar. São Paulo: Saraiva, 1980, p. 61.)
7. DUGUIT, León. Las transformaciones del derecho publico y privado. Tradução do francês para o espanhol de
Carlos Posada. Buenos Aires: Heliasa, 1975, p. 136.
8. CAHALI, Yussef Said. Responsabilidade civil do Estado. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2014, p. 19. E o
autor ainda comenta: “Na doutrina, pôs-se em evidência que a teoria da irresponsabilidade representava clamo-
rosa injustiça, resolvendo-se na própria negação do direito: se o Estado se constitui para a tutela do direito, não
tinha sentido que ele próprio o violasse impunemente; o Estado, como sujeito dotado de personalidade, é capaz
de direitos e obrigações como os demais entes, nada justif‌icando a sua irresponsabilidade.”
9. Conf‌ira-se, a esse propósito: DUEZ, Paul. La responsabilité de la puissance publique: en dehors du contrat.
Paris: Dalloz, 1927, p. 7; SEVERO, Sérgio. Tratado da responsabilidade pública. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 3;
DUGUIT, León. Las transformaciones del derecho publico y privado, cit., p. 136.
10. ZANOBINI, Guido. Corso di diritto amministrativo, cit., p. 271. Conf‌ira-se, ademais: CRETELLA JÚNIOR, José.
O Estado e a obrigação de indenizar, cit., p. 63.
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CAPíTULO 1 • O DIREITO PÚBLICO NA HISTÓRIA: DO ESTADO LIBERAL À SOCIEDADE DA INFORMAÇÃO
ao mesmo tempo, “legislador e juiz supremo”, nele se concentrando todo o poder de
criação da norma e também a supremacia de sua aplicação aos súditos.11-12
Graças à jurisprudência francesa, que se pronunciou em alguns casos emblemáticos,
uma nova teoria se f‌irmou e foi ocupando a lacuna da antiga era de irresponsabilidade
estatal.13 A título de exemplo, importante citar os casos “Rotschild”, de 1855, e, prin-
cipalmente, os casos “Blanco”, de 1873 e “Feutry”, de 1908. Destes três casos, o que
ganhou mais relevância e repercussão doutrinária e jurisprudencial14 foi o da menina
Agnès Blanco15, que abriu as portas para a consideração da primeira tese jurídica da
autonomia do direito administrativo.16 É nesse mesmo período que começa a germinar
a ideia de independência disciplinar, na Inglaterra, entre o direito administrativo e o
constitucional frente ao grande contexto do direito público.17
Se a frase de Luís XIV marcou o ponto de partida da irresponsabilidade estatal, foi
a frase de “Frederico o Grande, de que o príncipe nada mais é que o primeiro servidor
do Estado”18 o marco f‌inal do referido período.
11. HOBBES, Thomas. Do cidadão. Tradução de Renato Janine Ribeiro. São Paulo: Martins Fontes, 1992, p. 127 et. seq.
12. Importante comentar, ademais, a preponderância da velha premissa do “bellum justum” (“guerra justa”), que
expressava que, caso houvesse qualquer contrariedade à vontade emanada do soberano, o efeito invariável seria
a guerra – daí a irresponsabilidade. Esta mesma ideia foi importada pelo direito norte-americano dos séculos
XVIII e XIX, pela noção de imunidade do soberano (“sovereign immunity”), e perdurou nos Estados Unidos da
América até sua derrogação pelo Federal Tort Claims Act, de 1948.
13. JELLINEK, Georg. Teoría general del Estado. Tradução do alemão para o espanhol de Fernando de los Ríos.
México: Fondo de Cultura Económica, 2000, p. 157. Anota: “Considerado el Estado en su aspecto exterior se le
llama macht, puissance, potenza, power, poder, cuyas expresiones se usan frecuentemente (…).
14. LONG, Marceau; WEIL, Prosper; BRAIBANT, Guy et al. Les grands arrêts de la jurisprudence administrative.
20. ed. Paris, Dalloz, 2015, p. 1.
15. No ano de 1873, a menina Agnès Blanco, ao cruzar os trilhos que cortavam rua movimentada da cidade francesa
de Bordeaux, é colhida pelo vagonete da Companhia Nacional da Manufatura de Fumo, que transportava maté-
ria-prima de um para outro edifício. A acidentada sofre graves lesões que culminam com a amputação das pernas.
O pai da menor move, perante os tribunais judiciários, ação civil de indenização por perdas e danos contra o
Prefeito do Departamento da Gironda, com o fundamento de que o Estado é civilmente responsável por preju-
ízos ocasionados a terceiros, em decorrência da ação danosa de seus agentes (Código Civil francês, arts. 1.382,
1.383 e 1.384). Como na França existe o contencioso administrativo, ou seja, justiça especializada que julga
litígios entre Administração e administrado, em matéria administrativa, foi suscitado o denominado conf‌lito de
atribuição – conf‌lito negativo –, para que se decidisse o problema de competência: o conhecimento e a decisão
caberiam ao Tribunal Judiciário comum ou ao Tribunal Administrativo? Em outras palavras, à Corte de Cassação
ou ao Conselho de Estado? (CRETELLA JÚNIOR, José. O Estado e a obrigação de indenizar, cit., p. 29-30)
16. Sobre isso, veja-se: «Qu’il subsiste, au coeur du droit public français, un môle d’irresponsabilité, voilà qui peut sembler
surprenant pour ne pas dire choquant et voilà qui est bien souvent occulté dans l’exposition du droit de la respon-
sabilité de la puissance publique.» (GOHIN, Olivier. La responsabilité de l’État en tant que législateur. Revue
Internationale de Droit Comparé, cit., p. 598.). Conf‌ira-se, ademais: BEAUD, Olivier. La distinction entre droit
public et droit privé: un dualisme qui résiste aux critiques. In: FREEDLAND, Mark; AUBY, Jean-Bernard (Eds.).
The public law/private law divide. Oxford: Hart Publishing, 2006, p. 23-30.
17. FREEDLAND, Mark. The evolving approach to the public/private distinction in English law. In: FREEDLAND,
Mark; AUBY, Jean-Bernard (Eds.). The public law/private law divide. Oxford: Hart Publishing, 2006, p. 94-95.
18. RADBRUCH, Gustav. Introdução à ciência do direito. Tradução de Vera Barkow. 2. ed. São Paulo: Martins Fontes,
2010, p. 39. Comenta: “(...) delimitam os pontos de saída e de chegada de um caminho que levou da concepção
da coroa como direito à concepção da coroa como ofício, da concepção do soberano como proprietário do Estado
à concepção do soberano como órgão do Estado. Uma vez reconhecida esta última, imediatamente uma doutrina
individualista do Estado teve que perguntar por que ele conheceria e preservaria melhor os interesses individu-
ais, a cujo serviço se encontrava agora, do que os próprios representantes desses interesses, por que aquilo que
aconteceria para o povo não aconteceria melhor ainda pelo povo, e exigiu a participação de representações do
povo na formação da vontade do Estado.”

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