Direito e socialismo? A atualidade da critica de Marx e Lukacs ao Direito/Law or socialism? The actuality of Marx's and Lukacs' critic of Law.

AutorSartori, Vitor Bartoleti

Introducao

Uma questao importante para aqueles que procuram uma abordagem critica do fenomeno juridico diz respeito aos limites dessa esfera no que diz respeito a transformacao social. No presente artigo, pretendemos--a partir de uma abordagem marxista inspirada em Marx e Lukacs - tratar dessa tematica relacionando-a aos antagonismos sociais presentes na sociedade civil-burguesa (burguerliche Gesellschaft), a sociedade capitalista, a qual percorre os escritos de Hegel, de Marx, de Lukacs. Procuramos mostrar que, mesmo quando as lutas sociais aparecem no cotidiano expressas em "conquistas juridicas", essas ultimas nao sao, na perspectiva que aqui se adota, o central a uma sociedade emancipada do dominio abrangente das relacoes de producao eivadas pelo capital. Antes, para a abordagem materialista do autor de O capital e do autor da Ontologia do ser social, e preciso voltar-nos as praticas que buscam a supressao dessas relacoes de producao, as quais, pretendemos demonstrar, possuem um momento juridico, que, porem, nao pode ser pensado autonomamente; antes, precisa ele ser visto como algo indissociavel da producao e reproducao da sociedade como um todo.

Que fique claro: nao se pode negar que, da perspectiva de autores como Marx e Lukacs, a defesa de direitos conforma parte importante da luta travada na vida cotidiana daqueles que se opoem a sociedade atual, sociedade essa marcada por desigualdades e disparidades sociais. Deixar de lado tal fato seria eclipsar as mediacoes que se interpoem entre a atividade efetivamente revolucionaria (que busca suprimir o capital) e atividade diuturna dos homens (ligada, em essencia, embora de modo sempre contraditorio, as determinacoes da sociedade civil-burguesa). E bom percebermos, assim, que nao ha, em verdade, uma muralha entre a vida cotidiana e a transformacao consciente das relacoes sociais; ao mesmo tempo, porem, e preciso levar em conta, desde ja, que, do ponto de vista aqui adotado, a atividade transformadora que seja real e efetiva tem lugar somente passando por rupturas e saltos qualitativos quanto aquilo tratado por Lukacs no derradeiro capitulo de sua Ontologia do ser social, cotidianidade alienada do capital. Neste texto, partindo de Marx e Lukacs, procuraremos tratar do papel dubio que desempenha o Direito nas lutas contra o dominio abrangente do capital e da reproducao da sociedade capitalista. Ao mesmo tempo, tentaremos ser claros quanto as determinacoes historicas e sociais que sao inseparaveis, sempre segundo os autores que aqui utilizamos, da esfera juridica. Como mostrou Istvan Meszaros em seu seminal Para alem do capital, nao podem as esferas do ser social, dentre elas o Direito, serem pensadas sem a compreensao cuidadosa da sociedade civil-burguesa e das vicissitudes dessa.

Tendo em mente a importancia que pode adquirir a teoria lukacsiana para o "renascimento do marxismo" (3)(o que, depois daquilo que se passou com o pensamento de Marx sob "socialismo" sovietico parece ser essencial (4)), partimos conjuntamente da abordagem desse autor e daquela dispensada pelo proprio Marx ao Direito. Neste pequeno artigo, em um primeiro momento, abordaremos os aspectos mais importantes acerca da relacao entre Direito e capital na obra dos mencionados autores, entao, passaremos ao debate sobre a possibilidade (ou nao) de um "Direito socialista" ou de um "Direito critico"; por fim, buscaremos explicitar o carater frutifero do tratamento lukacsiano dispensado ao Direito em sua obra madura, a qual, como demonstra Meszaros (5), conforma-se no periodo de sua producao posterior a decada de 30.

Direito e capital em Marx e Lukacs

Um dos autores mais importantes do pensamento marxista e critico do seculo XX certamente foi Gyorgy Lukacs. (6) O marxista hungaro vivenciou momentos delicados do seculo passado, como a Primeira Guerra Mundial, a crise de 29, o auge do stalinismo, a Segunda Guerra Mundial, a Guerra Fria, 68 e a crise do movimento comunista. (7) Assim, em grande parte, aquele que reconheceu que "nao ha nenhuma ideologia inocente" (8) inseriu seu pensamento em meio aos conflitos que marcaram o seculo passado. (9) Deste modo, uma das possibilidades existentes para nos percebermos da atualidade do marxismo e abordar esse autor, que, no final de sua vida, chegou a defender que, diante da vigencia do stalinismo, "nao ha mais marxistas. Nos simplesmente nao temos uma teoria marxista." (10) Lukacs, pois, pode ser considerado tanto um continuador do legado de Marx quanto alguem que percebeu que esse legado estaria, no minimo, eclipsado. Deste modo, pretendemos aqui tracar apontamentos sobre o Direito com base nesse diagnostico lukacsiano e com amparo na interpretacao do pensamento de Marx por parte desse autor, interpretacao essa que enxerga no marxismo uma ontologia do ser social, sendo assim - para o autor, e para nos - "a critica de Marx e uma critica ontologica" (11). No limite, como pretendemos mostrar ao longo desse artigo, inclusive, seria preciso, nao uma abordagem critica que busque uma visao distinta sobre o fenomeno juridico, mas uma critica ontologica ao Direito. (12)

No que vale remeter ao pensamento de Marx sobre o Direito em um primeiro momento, para que se possam verificar com cuidado os liames que pretendemos explicitar aqui. Comecaremos, assim, com uma passagem que pode dar margem a interpretacoes equivocadas e que esta presente na Miseria da filosofia: Marx havia dito que "o Direito nada mais e que o reconhecimento oficial do fato". (13) E, aparentemente, tratar do fenomeno juridico nesses termos poderia ser essencialmente problematico: nao haveria como a esfera juridica possuir qualquer influencia na realidade social; ela somente traria, post festum, uma legitimidade oficializada pelo Estado. Portanto, em um tratamento cuidadoso, e preciso abordar a questao mostrando de modo consistente o significado da afirmacao marxiana. No que pode ser elucidativo ver o que diz Gyorgy Lukacs sobre a tematica em sua monumental Ontologia do ser social:

A formulacao "fato" e seu "reconhecimento" exprime com exatidao a prioridade ontologica do economico: o Direito e uma forma especifica de reflexo e reproducao na consciencia daquilo que acontece de fato na vida economica. O termo reconhecimento especifica, posteriormente, a peculiaridade desta reproducao colocando em primeiro plano o carater nao puramente teorico, contemplativo, mas antes de tudo pratico. (14) Lukacs demonstra em sua ontologia que o Direito e uma especie de por teleologico o qual traz consigo mediacoes e complexos sociais que somente desenvolvem-se no transcorrer da historia. (15) Trata-se de uma "forma especifica de reflexo" na medida em que aqueles que operam por meio do complexo parcial que conforma o Direito--em grande parte o proprio jurista - apreendem (de modo tendencialmente "tecnico-juridico") os nexos objetivos presentes na realidade social, buscando atuar por meio desses. Ou seja, ao mesmo tempo em que ha prioridade ontologica do economico, a esfera juridica conforma-se como essencial a uma determinada formacao social, sendo seu papel de grande importancia. Seguindo o marxismo, ela nao e, nem pode ser, o momento preponderante (ubergreifender Moment) na reproducao do ser social. (16) Mas, sem ela, essa mesma reproducao mostra-se impossivel depois de determinado ponto do contraditorio desenvolvimento social. (17) Assim, certamente, com o Direito como fenomeno de destaque, tem-se uma sociedade amparada na divisao do trabalho que, nas palavras de Marx e Engels da Ideologia alema "so se torna efetivamente divisao do trabalho a partir do momento em que se opera uma divisao entre o trabalho material e o trabalho intelectual." (18) No entanto, e sempre preciso ter em mente que trabalho material e o trabalho intelectual (como aquele do jurista) nunca podem ser dissociados, ate mesmo porque a conformacao objetiva da propria realidade efetiva (Wirklichkeit) passa obrigatoriamente pela producao social, que e o momento preponderante da reproducao do ser social, e "o ponto de partida efetivo, [...] o ato em que todo o processo transcorre novamente." (19)

O Direito e a sociabilidade de uma epoca especifica, pois, operam enquanto determinacoes reflexivas (Reflexionsbestimmungen) em relacao a base material da producao, a esfera socioeconomica, nao conformando o campo juridico o momento preponderante (20) da reproducao da sociabilidade. (21) A esfera da producao material, assim, em condicoes especificas, pode subsistir sem a esfera juridica, enquanto a reciproca nao e verdadeira: ha uma prioridade ontologica do economico. (22)

Dai, o Direito ser o "reconhecimento" de nexos objetivos presentes no proprio real, dai ele sempre trazer consigo, nao um dever-ser (Sollen) incondicionado, mas um imperativo que nao prescinde da objetividade da atividade economico-social. A esfera juridica certamente tem uma autonomia relativa; porem, nunca pode ser dissociada dos nexos objetivos presentes no proprio ser social. Tratar do Direito enquanto um reflexo, pois, implica considerar real e efetivamente sua funcao no ser-propriamente-assim de determinada sociedade. E isso e essencial na medida em que--efetivamente - a atividade juridica considerada em sua peculiaridade e especificidade esta ligada a sociedades em que a universalidade amparada naquilo que Lukacs chamou de especificidade do genero humano em-si (Gattungsmassigkeit an-sich) ja esta conformada (23): trata-se de um momento do desenvolvimento social que pressupoe os homens relacionados objetivamente enquanto um todo indissociavel. (24) Ou seja, a universalidade da forma juridica (25) e, em verdade, um reflexo da universalizacao do proprio capital, sendo preciso enxergar a potencial abrangencia de direitos como algo inseparavel da expansao da circulacao de mercadorias amparada na relacao-capital. Direito e capital, pois, sao determinacoes reflexivas, sendo o primeiro incapaz de se voltar realmente contra o ser das relacoes de producao que dao base a sua...

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