Direito, desconstrução e justiça: reflexões sobre o texto força de lei, de Jacques Derrida

AutorAlexandre Araújo Costa
CargoMestre e Doutorando em Direito pela Universidade de Brasília - UNB.
Páginas1-16

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A - O direito construído

A base de todo jusnaturalismo é a idéia de que o direito positivo só é válido na medida em que pode ser derivado de um direito natural composto por normas e valores intrinsecamente justos. Contra essa postura de que o direito é válido, em última instância, porque é justo, Montaigne sustentou que as leis mantêm-se credíveis, não por serem justas, mas por serem leis. É o fundamento místico de sua autoridade, elas não têm nenhum outro. Essa idéia encontra eco no pensamento de Pascal, que chegou a dizer que o costume faz a equidade, pela simples razão de ser recebido; tal é o fundamento místico de sua autoridade.1

Esse tipo de concepção, porém, tem raízes muito mais antigas, pois Platão já colocava na boca do sofista Trasímaco a afirmação de que a justiça não é outra coisa senão a conveniência do mais forte2 e que, portanto, os valores entendidos como justos não são o fundamento da autoridade, mas uma decorrência das relações de poder. Entretanto, se Platão invocou tal argumento foi apenas para refutá-lo, mediante a aproximação socrática entre justiça e virtude, que também se repete em Aristóteles e em toda a tradição de matriz greco- romano.

Assim, desde a Antigüidade, a justiça é vista como um bem em si, e esse seu valor absoluto faz com que ela seja a pedra de toque de todo projeto de fundamentação das regras positivas. Por mais que todos admitam as relações necessárias entre direito e força, a filosofia Page 2 jurídica reconhece claramente que direito não pode ser fundado na violência, pois o poder puro e simples pode gerar obediência, mas é incapaz de gerar dever. Assim, por mais que o medo da punição possa fazer com que as pessoas observem as normas impostas, a validade do direito não pode ser fundada no fato de ele ser coativo, mas somente no fato de ele ser justo (ou legítimo, o que é a mesma coisa nesse contexto).

Isso inverte completamente os termos da questão: não é a força que justifica a validade da norma, mas é a validade da norma que justifica o uso da força, convertendo o que seria violência em um exercício legítimo da autoridade. Fundamentar o direito não significa explicar as razões da obediência, mas justificar o dever de obedecer, oferecendo critérios para diferenciar o simples uso da força do uso legítimo da força.

O instrumento conceitual normalmente usado para operar essa milagrosa transmutação de violência em força legítima é o recurso aos padrões objetivos de justiça, pois somente a justiça pode diferenciar adequadamente o direito da mera imposição. Nessa medida, toda teoria jusnaturalista contém em si uma teoria da justiça, pois refere-se a um conjunto das regras e princípios naturalmente justos, os quais não pretendem estar apenas no mundo das idéias, mas realizar-se na prática como direito natural válido e efetivo. Assim, ocorre que o direito pretende exercer-se em nome da justiça e que a justiça exige instalar-se num direito que deve exercer-se (constituído e aplicado) pela força "enforced"3.

Portanto, a instituição de uma ordem jurídica nunca se afirma como um ato de violência, dado que a constituição de um sistema jurídico precisa ser entendida como exercício legítimo de poder, realizado por uma autoridade que atua em nome da própria justiça. Não é por outro motivo que a teoria atualmente hegemônica acerca da instituição de ordens jurídicas é a que atribui poder constituinte originário ao povo, poder esse que não é propriamente jurídico (e sim jurígeno), mas que precisa ser descrito como exercício legítimo de autoridade: uma legitimidade que não pode ser derivada da lei, mas que precisa ser baseada em alguma espécie de direito natural (ou seja, na justiça).

Essa fundamentação filosófico-política do direito está na base inclusive do que comumente é chamado de positivismo, pois o normativismo positivista não nega a fundamentação jusnaturalista do poder, mas apenas recusa a possibilidade de se utilizar referências ao direito natural para fins de contestação da validade da própria ordem constitucional. Portanto, o positivismo é tipicamente um jusnaturalismo disfarçado, na medida Page 3 em que sua expressa limitação ao estudo do direito positivo válido oculta o fato de que a validade do direito que ele descreve é assentada sobre uma base jusnaturalista (mais especificamente, uma base jusracionalista vinculada às teorias contratualistas que estão na origem da própria idéia de poder constituinte originário).

Contra essa tendência hegemônica de separar direito e violência e de buscar fundar o direito na justiça, o filósofo Jacques Derrida escreveu o livro Força de lei, que é composto por duas partes relativamente autônomas.

Na primeira, Derrida se inspira nas idéias de Montaigne e Pascal acerca do fundamento místico da autoridade para desconstruir as relações tradicionais entre direito e justiça, desestabilizando a possibilidade de se tentar buscar na justiça um fundamento para o direito positivo.

Na segunda parte, ele analisa criativamente um texto de Walter Benjamin chamado Zur Kritik der Gewalt, ou seja, Crítica da "Gewalt", que é uma palavra germânica usada para designar tanto violência quanto poder legítimo. Essa ambigüidade parece estimular Derrida porque ela tanto indica as relações viscerais entre direito e força quanto a oculta a violência imanente ao direito por trás de manto de uma legitimidade mítica. Assim, ela serve como Leitmotiv para um texto que, sob o pre-texto de avaliar um artigo do início da década de 1920, termina por realizar uma contundente análise das relações entre direito e violência.

B - Direito e justiça

Segundo Derrida, o estilo desconstrutivista tem uma aplicabilidade muito rica no campo do direito, pois trata-se de um espaço no qual há muitas verdades mitológicas a serem desestabilizadas. Portanto, o desconstrutivismo pode aqui exercer o seu papel de maneira adequada, desestabilizando verdades cristalizadas, complicando as crenças estabelecidas e lembrando aos juristas os paradoxos sobre os quais se assentam seus discursos. Isso ocorre especialmente porque o direito se pretende válido, mas a autoridade das leis não tem qualquer fundamento, não assenta senão no crédito que se lhes dá. Crê-se nelas, tal é o seu fundamento único. Este acto de fé não é um fundamento ontológico ou racional.4 Page 4

Assim, a busca de descrever o fundamento da autoridade termina por gerar discursos circulares, como um cachorro a correr atrás do próprio rabo: a lei vale porque gera dever e gera dever porque é valida. Então, deveríamos admitir desde logo que a autoridade da lei não pode apoiar-se senão em si mesma e que, portanto, o direito é uma violência sem fundamento. Mas isso não quer dizer que as leis são injustas, no sentido de "ilegais" ou de "ilegítimas", dado que, em seu momento fundador, elas não são nem legais nem ilegais5, pois nenhum discurso justificador pode e deve assegurar o papel de metalinguagem, em relação à performatividade da linguagem instituinte ou à sua interpretação dominante. O discurso encontra ali o seu limite: nele mesmo, no seu próprio poder performativo6, o que faz com que exista um silêncio murado na estrutura violenta do acto fundador. Murado, emparedado, porque este silêncio não é exterior à linguagem7.

Existem autoridades instituídas que constroem discursos jurídicos que consideram legítimos, mas a validade desses discursos não pode ser fundamentada. É preciso, então, construir muros em volta da própria autoridade, para evitar o seu questionamento, já que não se pode se sustentar argumentativamente essa validade mitológica. Portanto, o discurso fundamentador é um discurso que precisa ocultar o seu caráter místico, escamoteando o fundamento místico da autoridade de que falam Pascal e Montaigne8.

Assim, o próprio direito é historicamente fundado (quer dizer, construído sobre camadas textuais interpretáveis e transformáveis), mas o seu fundamento último, por definição, não é fundado (porque tem caráter claramente mitológico)9. Essas contradições e ocultamentos originais tornam o campo jurídico muito fértil para o estilo desconstrutivista, cuja principal função é justamente mostrar os paradoxos e desvelar as ocultações contidas nos discursos.

Esse caráter iconoclasta do desconstrutivismo faz com que os juristas tradicionais o percebam como uma postura inconseqüente, na medida em que ataca a ordem instituída sem propor a sua substituição por uma ordem diversa e mais justa. Tal percepção torna-se ainda mais aguçada quando existe uma polarização do debate jurídico e político em torno de concepções contrapostas que se pretendem fundadas na justiça. E a situação torna-se ainda mais complexa quando, tal como ocorreu no século XX, as concepções hegemônicas Page 5 contrapostas eram variações da mesma matriz moderna, assentada em conceitos desconstrutíveis tais como propriedade, sujeito, igualdade, pessoa, consciência, vontade, liberdade.

Nesse contexto, o desconstrutivismo tipicamente percebido como um niilismo, dado que, quando credibilidade em um axioma é suspensa pela desconstrução, pode sempre crer-se que não há mais lugar para a justiça, nem para a própria justiça, nem para o interesse teórico que se orienta para os problemas da justiça.10 Aqueles que criticam não apenas uma tentativa específica de fundamentação, mas a própria fundamentabilidade do direito, são criticados pelos fundamentacionistas de todos os matizes, que formam a imensa maioria dos juristas.

O testemunho mais claro nesse sentido parece-me ser o testemunho de Kelsen sobre a recepção da teoria pura do direito que, ao afirmar a impossibilidade de fundamentar racionalmente o direito (na medida em que a norma fundamental é apenas uma hipótese epistemológica), recebeu oposição de as orientações políticas, de tal forma que os fascistas declaram-na liberalismo democrático, os democratas liberais ou os sociais-democratas consideram-na um posto...

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