Direitos autorais, tecnologia e transformações na criação e no licenciamento de obras intelectuais

AutorCarlos Affonso Pereira de Souza
Páginas735-756
33
DIREITOS AUTORAIS,
TECNOLOGIA E TRANSFORMAÇÕES
NA CRIAÇÃO E NO LICENCIAMENTO
DE OBRAS INTELECTUAIS
Carlos Affonso Pereira de Souza
Sumário: 1 Introdução. 2 A função promocional do direito autoral: incentivo à criação através
da exclusividade. 3 Repensando a função promocional do direito autoral à luz das tecnologias
de informação e comunicação (TICs). 4 Wikipedia e as obras colaborativas. 5 Transformações
na autorização: software livre e Creative Commons. 6 Conclusão. Referências.
1. INTRODUÇÃO
A noção de que o direito autoral existe para estimular a criação intelectual é bas-
tante difundida. Essa percepção parte da premissa de que uma primeira função a ser
desempenhada pelo direito autoral é incentivar autores a criar. Todavia, não raramente
se confunde essa primeira função com a remuneração devida ao autor decorrente do
exercício de seu direito de exclusividade sobre as utilizações de suas obras.
Não se pode confundir a essência dessa função do direito autoral, ou seja, o estímulo
à criação, com a metodologia adotada pela legislação para alcançar esse objetivo, ou, em
outras palavras, para fazer cumprir essa função. A metodologia adotada pelas legislações
nacionais, e constantes dos tratados e convenções internacionais, se vale da concessão
de uma exclusividade limitada e temporária sobre a utilização da obra. Em regra, nos
países que seguem o sistema dos direitos autorais conforme desenhado na Europa (droit
d’auteur), caso alguém queira utilizar determinada obra e o seu uso não se enquadre nas
exceções e limitações derivadas da legislação, nem esteja a obra em domínio público,
deverá a pessoa solicitar autorização do autor para legitimamente utilizá-la da forma
pretendida.
Pode-se dizer então que essa função promocional possui um núcleo, consistente no
estímulo à criação intelectual, que poderá ser alcançado através de várias metodologias,
sendo a outorga de uma exclusividade aquela que se provou mais adequada ao longo dos
anos, fazendo constar dos textos legais. O desenvolvimento tecnológico, por outro lado,
coloca em xeque a efetividade da dinâmica de exclusividade, demandando uma trans-
formação nas formas de autorização tradicionalmente concebidas, quando não mesmo
forçando a ampliação das hipóteses em que a própria autorização seria dispensada em
nome de outros interesses que não os do autor ou dos titulares do direito autoral.
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CARLOS AFFONSO PEREIRA DE SOUZA
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Este capítulo procura debater essas transformações na função promocional do direito
autoral, analisando os questionamentos sobre como a exclusividade, instrumentalizada
pelo regime de autorizações de uso, é impactada pelo progresso tecnológico, modif‌icando
não apenas o licenciamento de obras, mas até mesmo a concepção tradicional sobre os
incentivos para a criação intelectual.
2. A FUNÇÃO PROMOCIONAL DO DIREITO AUTORAL: INCENTIVO À CRIAÇÃO
ATRAVÉS DA EXCLUSIVIDADE
A outorga de uma exclusividade ao autor encontra-se prevista na legislação brasileira
a partir do preceito constitucional inscrito no art. 5o, XXVII, assim redigido:
Art. 5o Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros
e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à
segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
XXVII – aos autores pertence o direito exclusivo de utilização, publicação ou reprodução de suas obras,
transmissível aos herdeiros pelo tempo que a lei xar.
Dessa forma, a tutela autoral está inserida no rol dos direitos e garantias fundamen-
tais da Constituição Federal, juntamente com outros dispositivos que detalham a forma
pela qual será protegida a criação intelectual, tanto no campo do direito autoral,1 como
no campo da propriedade industrial.2
A opção por se conceder ao autor uma exclusividade na exploração da obra intelec-
tual não é novidade da Constituição em vigor, já que o direito autoral, especif‌icamente no
que diz respeito ao exercício de seus direitos patrimoniais,3 integrou o texto de todas as
Constituições brasileiras desde a Constituição de 1891, com exceção feita à Carta de 1937.
Nas Constituições que antecederam a atual, e que continham uma disposição
sobre a tutela autoral, percebe-se como o texto pouco se alterou no que diz respeito à
concessão de uma exclusividade ao autor para utilizar a obra, variando sempre em torno
da expressão “aos autores de obras literárias, artísticas ou científ‌icas pertence o direito
exclusivo de reproduzi-las”.4 A Constituição de 1988 inovou ao dispor sobre as formas
1. O mesmo art. 5o ainda trata dos direitos autorais no seu inciso XXVIII, assim redigido: “XXVIII – são assegurados,
nos termos da lei: a) a proteção às participações individuais em obras coletivas e à reprodução da imagem e voz
humanas, inclusive nas atividades desportivas; b) o direito de f‌iscalização do aproveitamento econômico das
obras que criarem ou de que participarem aos criadores, aos intérpretes e às respectivas representações sindicais
e associativas”.
2. O direito de exclusividade referente à propriedade industrial está disposto no art. 5o, XXIX, da Constituição Fe-
deral, da seguinte forma: “XXIX – a lei assegurará aos autores de inventos industriais privilégio temporário para
sua utilização, bem como proteção às criações industriais, à propriedade das marcas, aos nomes de empresas e a
outros signos distintivos, tendo em vista o interesse social e o desenvolvimento tecnológico e econômico do País”.
3. Giorgio Jarach critica a expressão direitos patrimoniais, pois ela vincula o exercício do direito de exclusividade à
obtenção de proveito econômico. Segundo o autor, essa exclusividade apenas diz respeito à forma de exercício
de uma série de direitos outorgados pela lei, sem que se faça qualquer distinção sobre a sua utilização para f‌ins
econômicos ou não (Manuale del diritto d’autore. Milão: Mursia, 1991. p. 57).
4. Constituição de 1891, art. 72, § 26: “Aos autores de obras literárias e artísticas é garantindo o direito exclusivo de
reproduzi-las pela imprensa ou por outro processo mecânico. Aos herdeiros não é garantido o direito exclusivo de
reproduzi-las pela imprensa ou por outro processo mecânico. Os herdeiros dos autores gozarão desse direito pelo
tempo que a lei determinar.” Constituição de 1934, art. 113, inciso 20: “Aos autores de obras literárias, artísticas
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