Direitos e deveres individuais e coletivos

AutorPaulo Roberto de Figueiredo Dantas
Páginas245-346
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DIREITOS E DEVERES INDIVIDUAIS E COLETIVOS
7.1 ESCLARECIMENTOS INICIAIS
Estudamos, no Capítulo 6, as noções gerais dos direitos e garantias fundamentais,
tratando, dentre outros temas, de seu conceito e de suas principais características, de sua
evolução histórica, suas diferentes categorias, benef‌iciários, e outros temas inerentes ao que
podemos denominar de teoria geral dos direitos fundamentais.
No tocante especif‌icamente às espécies de direitos fundamentais, vimos que a
doutrina mais tradicional costuma dividi-los em 3 (três) categorias: direitos funda-
mentais de primeira, segunda e terceira gerações. Referida classif‌icação, como ressalta
boa parte dos doutrinadores pátrios, tem em conta a ordem histórico-cronológica em
que tais direitos fundamentais passaram a receber expresso amparo das constituições.
Vimos também, naquela mesma oportunidade, que a Constituição Federal de 1988,
ao tratar dos direitos e garantias fundamentais em seu Título II, ao invés de dividi-los em 3
(três) gerações (ou mesmo dimensões), preferiu dividi-los em 5 (cinco) categorias distintas,
a saber: direitos e deveres individuais e coletivos (Capítulo I), direitos sociais (Capítulo II),
direitos da nacionalidade (Capítulo III), direitos políticos (Capítulo IV) e direitos relacio-
nados aos partidos políticos (Capítulo V).
No Capítulo que ora se inicia cabe-nos examinar os denominados direitos e deveres
individuais e coletivos, disciplinados em nossa Constituição Federal (em seu Título II, Ca-
pítulo I), mais especif‌icamente em seu artigo 5º. Os demais direitos e garantias fundamen-
tais em espécie (direitos sociais; direitos relacionados à nacionalidade; direitos políticos; e
direitos que envolvem a criação e funcionamento de partidos políticos) serão tratados no
Capítulo seguinte deste livro.
Por outro lado, devemos esclarecer que, mesmo tendo sido expressamente relacio-
nados naquele artigo 5º da Carta Magna, também deixaremos de estudar, no presente
Capítulo, os remédios constitucionais. Com efeito, por se tratar de meios processuais
próprios, destinados a tornar efetivos os demais direitos e garantias fundamentais, caso
estes não sejam devidamente respeitados (e, justamente por isso, são também chamados
de garantias das garantias), entendemos que os remédios constitucionais merecem um
estudo mais aprofundado, em Capítulo próprio, notadamente em razão da crescente
importância que tem assumido, em nosso País, a denominada jurisdição constitucional.
7.2 DIREITO À VIDA
Como vimos no Capítulo 4 deste livro, ao tratar dos princípios fundamentais da
Constituição de 1988, o direito à vida, da mesma forma que os demais direitos e garantias
fundamentais, decorre inequivocamente do princípio da dignidade da pessoa humana,
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CURSO DE DIREITO CONSTITUCIONAL • PAULO ROBERTO DE FIGUEIREDO DANTAS
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expressamente previsto no artigo 1º, inciso III, do texto constitucional, ali apontado como
um dos fundamentos da República Federativa do Brasil.
A Constituição Federal de 1988 reconhece a primazia do direito à vida, relacionando-o
já no caput do artigo 5º, em primeiro lugar, antes do direito à liberdade, à igualdade, à se-
gurança e à propriedade. A Carta Magna, ainda no Capítulo relativo aos direitos e garantias
fundamentais, volta a tutelar o direito à vida, ao determinar, no artigo 5º, inciso XLVII, alínea
a, a proibição da pena de morte, salvo em caso de guerra declarada.
É justamente em razão daquela preeminência do direito à vida sobre os demais direi-
tos fundamentais que Maria Helena Diniz1 aponta a existência do princípio do primado do
direito à vida e explica que, no caso de conf‌lito entre dois direitos da pessoa, deverá sempre
prevalecer o direito à vida, não havendo qualquer ilicitude, por exemplo, na amputação de
membro de alguém, mesmo que não consentida, para salvar-lhe a vida.
O direito à vida, conforme nos lembra Alexandre de Moraes,2 “é o mais fundamental
de todos os direitos, já que se constitui em pré-requisito à existência e exercício de todos os
demais direitos”. Uadi Lammêgo Bulos,3 por sua vez, pondera que o signif‌icado do direito à
vida é amplo, “porque ele se conecta com outros, a exemplo dos direitos à liberdade, à igual-
dade, à dignidade, à segurança, à propriedade, à alimentação, ao vestuário, ao lazer, à edu-
cação, à saúde, à habitação, à cidadania, aos valores sociais do trabalho e da livre iniciativa”.
Consideramos que o direito à vida abrange não só o aspecto biológico, conferindo ao
seu titular, como veremos melhor no transcorrer deste estudo, tanto o direito de nascer4
como o de permanecer vivo, como também o aspecto psicossocial do ser humano, referente
ao direito deste último de viver com dignidade.5 É por isso, por exemplo, que nosso orde-
namento jurídico proíbe não só o aborto, o homicídio e a pena de morte, para a garantia da
vida, como também a tortura e as penas perpétuas, de trabalhos forçados, de banimento e
cruéis, para assegurar à pessoa uma vida digna.
Por estar inserido no caput do artigo 5º da Constituição de 1988, sendo, portanto, um
direito individual, trata-se o direito à vida, inequivocamente, de uma cláusula pétrea, não
podendo sofrer qualquer tipo de emenda sequer tendente a suprimi-lo, conforme dispos-
to no artigo 60, § 4º, inciso IV, de nossa Lei Maior. E, em sendo assim, é vedada qualquer
proposta de emenda constitucional que tenha por objeto suprimir, ou mesmo restringir,
minimamente que seja, o direito à vida.
Em razão da supremacia formal (jurídica) da nossa Constituição Federal em face das
demais normas editadas pelo poder público, não há qualquer dúvida de que o Poder Legis-
lativo (e também o Poder Executivo, em sua função atípica de editar diplomas normativos)
não poderá jamais produzir uma norma infraconstitucional, a não ser que autorizado por
uma nova constituição, que legitime atos que atentem contra a vida. Da mesma forma, o
1. Estado atual do biodireito. Saraiva, 2002, p. 21.
2. Direito constitucional. 26. ed. Atlas, 2010, p. 35.
3. Op. cit., p. 529.
4. Sobre a proteção à vida intrauterina, vide a lição de Uadi Lammêgo Bulos: “Assim, tanto a expectativa de vida exterior (vida
intrauterina) como a sua consumação efetiva (vida extrauterina), constituem um direito fundamental. Sem ele nenhum
outro se realiza. Cabe ao Estado assegurar o direito à vida sob duplo aspecto: direito de nascer e direito de subsistir ou
sobreviver”. Op. cit., p. 530.
5. Em termos semelhantes é a lição de Pedro Lenza: “O direito à vida, previsto de forma genérica no art. 5º, caput, abrange
tanto o direito de não ser morto, privado da vida, portanto, o direito de continuar vivo, como também o direito de ter
uma vida digna”. Op. cit., p. 748.
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Poder Judiciário não poderá jamais conferir uma interpretação às normas jurídicas vigentes,
no julgamento dos casos que lhe sejam submetidos, que violem o direito à vida.
A despeito de reconhecer o primado do direito à vida, a Constituição de 1988 não
explicita, em contrapartida, quem seria o titular daquele direito. Tal tarefa, portanto, cabe à
doutrina e, sobretudo, à jurisprudência pátrias, através da análise das normas constitucio-
nais e infraconstitucionais que compõem o nosso ordenamento jurídico. E a resposta a essa
indagação, a nosso ver, é até simples: o titular do direito à vida é o homem, aqui entendido
como o gênero humano, a espécie humana (homo sapiens).
Com efeito, como é amplamente sabido, a cada direito subjetivo corresponde pelo
menos um titular. Este titular é o chamado sujeito de direito, destinatário da norma jurídica
que assegura àquele a faculdade de agir (facultas agendi), e que só pode ser o homem, con-
forme conhecido brocardo jurídico que dispõe que hominum causa omne ius constitum est.
Como nos lembra Caio Mário da Silva Pereira,6 somente o homem é sujeito de direitos,
e mesmo que a norma, aparentemente, contemple direito a coisas ou a animais (caso da
proteção à fauna e à f‌lora, por exemplo), ela o faz tendo em vista o bem-estar da espécie hu-
mana. Portanto, o titular do direito à vida, mesmo não estando explicitado na Constituição
Federal, é facilmente def‌inível: o gênero humano.
Nossa Lei Maior também não explicita o momento em que a vida termina, fazendo
cessar, para o ser humano, a titularidade de direitos e deveres.7 De todo modo, a legislação
infraconstitucional, com fundamento na medicina moderna, aponta a denominada morte
encefálica como o evento que revela, de forma inequívoca, a morte da pessoa, permitindo,
inclusive, que seja realizada a retirada de tecidos, órgãos ou partes do corpo do falecido para
doação a terceiros.8
De tudo o que examinamos até aqui, podemos perceber, sem maiores dif‌iculdades,
que, a despeito de não haver explicitação no texto constitucional, seja em relação ao titular
do direito à vida (o ser humano), seja no tocante ao momento em que a vida cessa (a morte
encefálica), estes são facilmente identif‌icáveis. Maior dif‌iculdade, contudo, nós encontramos
ao tentar precisar em que momento começa a vida.
Dito em outras palavras, ainda há grande divergência, não só no campo religioso ou
f‌ilosóf‌ico, mas até mesmo no científ‌ico, e, por consequência, na seara jurídica, sobre o evento
que faz iniciar a vida humana, para que se possa dizer, com segurança, que alguém passou
a ser titular da proteção estatal relativamente àquele direito.
Em que pese os aspectos f‌ilosóf‌icos e religiosos serem inequivocamente importantes
e respeitáveis, e, portanto, de legítima análise pelo corpo social, notadamente em uma so-
ciedade eminentemente cristã, não podemos olvidar que este é um livro técnico-jurídico,
que tem por objeto o estudo do direito constitucional positivo de um Estado considerado
laico (muito embora não refratário às diferentes religiões, que aliás são protegidas pela Lei
Maior). Por essa razão, buscaremos analisar o tema apenas em seu aspecto científ‌ico, e a
repercussão que tal estudo inevitavelmente provoca na seara do direito.
6. Instituições de direito civil. Volume I. Introdução ao direito civil. Teoria geral de direito civil. 20. ed. Forense, 2004, p. 41.
7. Sobre o f‌im da personalidade jurídica, o artigo 6º do Código Civil dispõe o seguinte: “A existência da pessoa natural termina
com a morte; presume-se esta, quanto aos ausentes, nos casos em que a lei autoriza a abertura de sucessão def‌initiva”.
8. Lei 9.434, de 4 de fevereiro de 1997, a denominada Lei de Transplantes: “Art. 3º A retirada post mortem de tecidos, ór-
gãos ou partes do corpo humano destinados a transplante ou tratamento deverá ser precedida de diagnóstico de morte
encefálica, constatada e registrada por dois médicos não participantes das equipes de remoção e transplante, mediante
a utilização de critérios clínicos e tecnológicos def‌inidos por resolução do Conselho Federal de Medicina” (grifou-se).
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