Os Direitos dos Trabalhadores como Direitos Fundamentais e a sua Proteção na Constituição Federal Brasileira de 1988

AutorRaimundo Simão de Melo/Cláudio Jannotti da Rocha
Páginas128-135

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1. Notas preliminares

A despeito do destaque atribuído pela Constituição Federal de 1988 (doravante apenas CF) aos direitos sociais em geral, mas também aos direitos dos trabalhadores, os níveis de eficácia e efetividade de tais direitos seguem não apenas controversos no debate (e embate) jurídico, quanto ainda se registram índices significativos de déficit no que diz com a sua realização concreta.

Além disso, constata-se que a constitucionalização de direitos dos trabalhadores segue sendo questionada, seja quanto à sua extensão (o número de direitos consagrados) seja quanto ao nível de regulamentação e vinculação dos órgãos infraconstitucionais, tudo a resultar em relativamente acirrada e duradoura controvérsia no meio político, econômico, social e jurídico. Se isso, à evidência, não representa algo necessariamente negativo, já que indispensável ao processo democrático-deliberativo, o fato é que em alguns casos o que se busca é mesmo a supressão de pelo menos parte dos direitos dos trabalhadores do texto constitucional, ou então a sua erosão por outras vias, o que, de resto, tem sido discutido recentemente ao ensejo do projeto de lei que tramita no Congresso Nacional e que prevê a ampliação das possibilidades de terceirização, o que tem atraído a crítica de que com isso se estaria a fragilizar significativamente, senão mesmo esvaziar, a proteção aos direitos dos trabalhadores. De qualquer sorte, ainda que não seja o caso de adentrar tal discussão, que aqui é referida em caráter ilustrativo, certo é que o problema da proteção dos direitos dos trabalhadores em face de medidas restritivas ou mesmo supressivas - como seria o caso de emenda constitucional que viesse a retirar alguns ou mesmo todos os direitos do texto constitucional - segue mere-cendo a atenção da doutrina e dos que lidam em concreto, em todos os setores, com a aplicação de tais direitos.

Considerando que a proteção contra medidas restritivas integra a essência do regime jurídico dos direitos fundamentais, o presente texto busca enfrentar o problema de como os direitos dos trabalhadores, na condição de direitos humanos e direitos fundamentais2, encontram-se protegidos por conta do assim chamado princípio da proibição de retrocesso, que, ademais, não encontra guarida expressa no texto constitucional, mas que, em sentido amplo, abarca tanto a proteção dos direitos fundamentais em face do poder de reforma constitucional, quanto a sua blindagem em face de medidas restritivas impostas pelo legislador infraconstitucional e mesmo por outros atos normativos. Para tanto, parte-se do pressuposto, por si só já passível de ampla controvérsia, de que, de acordo com a vontade do constituinte originário, os direitos dos trabalhadores representam uma espécie do gênero direitos fundamentais consagrados no Título II da CF, sem prejuízo, por certo, de outros direitos dos trabalhadores, sejam eles decorrentes do regime e dos princípios constitucionais, sejam eles reconhecidos em tratados internacionais de direitos humanos, tudo consoante prevê o artigo 5º, § 2º, da CF. Assim, e seguindo fiéis aos próprios pontos de vista3, os direitos dos trabalhadores são aqui compreendidos como direitos fundamentais, devendo-lhes ser atribuído um regime jurídico reforçado, típico da concepção corrente de direitos fundamentais e também consagrada pela CF.

De qualquer sorte, mesmo reconhecida a condição de direitos fundamentais segue polêmica a extensão e qualidade do seu respectivo regime jurídico, como, por exemplo, o sentido do mandamento da aplicabilidade imediata (se idêntico para todos os direitos) ou mesmo os níveis de proteção contra o poder de reforma constitucional e eventuais investidas por parte do legislador infraconstitucional, objeto precípuo do presente estudo.

2. Os Direitos Fundamentais dos Trabalhadores como “cláusulas pétreas”

No que diz com a inclusão dos direitos fundamentais dos trabalhadores (assim como dos direitos sociais previstos no artigo 6º, CF) no elenco dos limites materiais à reforma constitucional e em se tomando como ponto de partida o enunciado

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literal do artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF, poder-se-ia afirmar – e, de fato, há quem sustente tal ponto de vista – que apenas os direitos e garantias individuais do artigo 5º da CF se encontram blindados contra a atuação do poder de reforma da Constituição. Caso fôssemos nos aferrar a esta exegese de cunho estritamente literal, teríamos de reconhecer que não apenas os direitos sociais (artigos 6º a 11), mas também os direitos de nacionalidade (artigos 12 e 13), bem como os direitos políticos (artigos 14 a 17, com exceção do direito de sufrágio, já previsto no elenco do inciso IV do § 4° do art. 60) estariam todos excluídos da proteção outorgada pela norma contida no artigo 60, § 4º, inc. IV, da CF. Aliás, por uma questão de coerência, até mesmo os direitos coletivos (de expressão coletiva) constantes no rol do artigo 5º não poderiam ser, por via de consequência, merecedores desta proteção, exclusivamente reservada aos “direitos individuais”!

Já esta simples constatação indica que tal interpretação dificilmente poderá prevalecer, pelo menos não na sua versão mais extremada. Caso assim fosse, alguns dos direitos essenciais de participação política (artigo 14, que contempla os institutos da iniciativa popular legislativa, do plebiscito e do referendo), assim como algumas liberdades fundamentais dos trabalhadores, como é o caso da liberdade sindical (artigo 8º) e do direito de greve (artigo 9º), apenas para citar alguns exemplos, estariam situados em condição inferior aos demais direitos fundamentais, não compartilhando o mesmo regime jurídico reforçado, ao menos não na sua plenitude, sujeitos que estariam, pelo menos em tese, a serem suprimidos por emenda constitucional. Paradoxalmente, em se levando ao extremo este raciocínio e reiterando a objeção já apontada, poder-se-ia até mesmo sustentar que apenas o mandado de segurança individual, mas não o mandado de segurança coletivo4, integra as “cláusulas pétreas”! Neste contexto, foi inclusive sustentado que a expressão “direitos e garantias individuais”, utilizada no artigo 60, § 4º, inciso IV, da CF, não foi reproduzida em nenhum outro dispositivo da Constituição, razão pela qual mesmo com base numa interpretação literal não se poderia confundir tais direitos individuais com os direitos individuais e coletivos do art. 5º de nossa Lei Fundamental.5

Para os que advogam uma interpretação restritiva, abre-se, todavia, alternativa argumentativa. Com efeito, poder-se-á sustentar que a expressão “direitos e garantias individuais” deve ser interpretada de tal forma que apenas os direitos fundamentais equiparáveis aos direitos individuais do artigo 5º, da CF, poderiam ser considerados como sendo “cláusulas pétreas”, ou mesmo – pois é precisamente este o sentido que costuma ser atribuído a tal linha de argumentação, os direitos equiparáveis aos assim designados direitos civis e políticos, de titularidade individual, ainda que, por vezes, de expressão coletiva. Nesse caso, todavia, a tutela contra a supressão por meio de emendas constitucionais, embora alcançando também direitos não previstos no artigo 5º, da CF, seguiria excluindo os direitos sociais.

Por outro lado, constata-se que a viabilidade desta concepção esbarra na difícil tarefa de traçar as distinções entre os direitos individuais e os de titularidade transindividual. Mesmo se considerássemos como individuais apenas os direitos fundamentais que se caracterizam por sua função defensiva (especialmente os direitos de liberdade), concepção que corresponde à tradição no direito constitucional brasileiro, teríamos de levar em conta a existência, nos outros capítulos do Título II da CF, de direitos e garantias passíveis de serem equiparados aos direitos de defesa, de tal sorte que as liberdades sociais (direitos sociais como direitos negativos), como é o caso, entre outros, do direito de greve da liberdade de associação sindical, também se encontrariam ao abrigo das “cláusulas pétreas”. Também por esta razão, ainda mais à míngua de um regime jurídico diferenciado expressamente previsto na CF, não nos parece possível excluir os direitos sociais do rol das assim chamadas “cláusulas pétreas”.

No direito constitucional brasileiro, a despeito dos argumentos já colacionados, há ainda quem sustente que os direitos sociais não podem, em hipótese alguma, integrar as “cláusulas pétreas” pelo fato de não poderem (ao menos na condição de direitos a prestações) ser equiparados aos direitos de liberdade do artigo 5º, da CF. Além disso, argumenta-se que, se o constituinte efetivamente tivesse tido a intenção de gravar os direitos sociais com a vedação da sua abolição, ele o teria feito, ou mencionando expressamente esta categoria de direitos no artigo 60, § 4º, inc. IV, ou, pelo menos, teria feito uma referência genérica a todos os direitos e garantias fundamentais, mas não apenas aos direitos e garantias individuais.6 Tal concepção e todas aquelas que lhe podem ser equiparadas esbarram, contudo, nos seguintes argumentos: a) a Constituição brasileira, diferentemente de outras ordens constitucionais, como é o caso da já referida Constituição da República Portuguesa, não traça uma genérica e expressa diferença entre os direitos de liberdade (defesa) e os direitos sociais, inclusive no que diz com eventual prima-zia dos primeiros sobre os segundos; b) os partidários de uma exegese conservadora e restritiva em regra partem da premissa de que todos os direitos sociais podem ser conceituados como

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direitos a prestações materiais estatais, quando, em verdade, já se demonstrou que boa parte dos direitos sociais...

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