Direitos Escritos numa Terra sem Livros

AutorAna Patrícia Thedin Corrêa
CargoProfessora da Faculdade de Direito do Centro Universitário da Cidade, Rio de Janeiro; Doutora em História pela Universidade Federal Fluminense; Procuradora Federal
Páginas150-165

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O direito português recepcionado no Brasil com a chegada dos primeiros colonizadores era um direito eminentemente escrito. Regimentos, Forais, Cartas Régias, Ordenações e mais um sem número de instrumentos jurídicos que regulavam a vida dos portugueses desde há muito foram, a partir do século XVI, transplantados para a colônia. Lidar quotidianamente com este direito era tarefa reservada a uns poucos que detinham condições mínimas para tanto.

Apesar da concepção jurídica ibérica no período colonial já colocar as regras escritas acima das regras consuetudinárias [e isto acontecia mesmo quando se lidava com antigos costumes do reino, cuja licença para serem observados deveria, em tese, estar escrita] a idéia de um direito eminentemente letrado não se vinculou necessariamente a posse ou a invenção de nenhum meio de impressão para uma sistemática divulgação das leis e nem mesmo a nenhuma intenção de alfabetização daqueles que a este direito deveriam submeter-se. A escrita e a leitura permaneceram fundamentalmente sob o domínio das “elites” dirigentes.

Deste modo, as regras escritas e o direito assim estruturado, bastante antigos em si mesmos, derivando no Ocidente não só do direito romano, mas também e fundamentalmente do direito hebreu herdado pelo cristianismo [observemos, naquelas tradições, tanto as Leis das Doze Tábuas quanto os Dez Mandamentos da Lei de Deus] foram preservados essencialmente pela Igreja que, com o recuo da cultura romana na Idade Média, fez do direito canônico o único sistematicamente “letrado” do Ocidente até o ressurgimento da escrita

Panóptica, Vitória, ano 1, n. 9, jul. – ago. 2007, p. 150-165Page 151 laica que se inicia lentamente por volta do século XII. De fato, fora do âmbito eclesiástico apenas pontualmente se vêem leis escritas1. Segundo Gilissen, na tradução de António Hespanha, os séculos X e XI marcam o período de maior retração dos escritos jurídicos. A escrita permanece praticamente inexistente, exceto para umas poucas instituições eclesiásticas e para um reduzido número de clérigos a elas ligados. Mesmo assim o direito canônico permanece sendo estudado e comentado mantendo-se escrito por toda a Idade Média. Para além das dificuldades com escrita e leitura, esta hegemonia canônica também foi incrementada pela grande dificuldade na produção de livros antes da era moderna e da invenção da tipografia. Assim, como um grande número de pessoas não tinha nenhum acesso à leitura, escrever e ler permanecia como um grande monopólio eclesiástico, ficando a maioria dos leigos à mercê de outras formas transmissão dos saberes – que incluía também os jurídicos – fundamentais para vida em sociedade.

Durante todo o período medieval na Europa os livros existiam apenas nos mosteiros, nas chamadas bibliotecas monacais, e em ambientes privados como propriedade de reis e alguns outros nobres e mais tarde nas universidades que surgiram e começaram a possuir bibliotecas relativamente independentes2. Na colônia portuguesa, no entanto, este período de inacessibilidade a livros e bibliotecas vai estender-se para muito além do período renascentista, alcançando o início do século XIX.

A ausência de leitores e livros, porém, não impede a transmissão de conhecimento, apenas a modifica. O século XIV europeu foi responsável pelo esplendor do manuscrito ilustrado. A existência de duas Bíblias manuscritas em Paris, uma delas com mais de cinco mil e outras com cerca de duas mil e quinhentas ilustrações, “cada quadro acompanhado de dois versículos em latim e em francês, com as letras iniciais e finais em ouro e azul”3 é um exemplo do refinamento e da importância assumida pela imagem na final da Idade Média, aPage 152 mesma imagem que a teoria do conhecimento Tomás de Aquino considerava apta a transformar matéria em “imatéria” e fazer o conhecimento aceder mais diretamente à alma4.

Teólogos e doutores que séculos antes condenaram a ilustração já reconheciam a maravilha de se poder contar com elas. Para a Igreja, belas páginas ricamente ilustradas e cada vez mais coloridas avivavam o espírito. As imagens pintadas não eram mais consideradas cópias da realidade, mas sim – aristotelicamente sua interpretação5 e passaram a ser vistas como um caminho para o doutrinamento dos povos para salvação de suas almas. Um campo ideal para preparação de uma sociedade com valores pautados em dogmas essenciais para o cristianismo.

A utilização de imagens para auxiliar no doutrinamento religioso ganhou imensa força com a 'chegada' de Aristóteles e da escolástica. Já por volta do século IX são encontrados defensores eclesiásticos entusiasmados com a ‘leitura de imagens’. São Nilo, por exemplo, teria registrado que cenas bem pintadas e dispostas de ambos os lados da Santa Cruz seriam como “livros para iletrados, ensinando-lhes a história bíblica e incutindo neles a crônica da misericórdia de Deus”6.

Os livros de imagens bíblicas, chamados de bibliae pauperum (literalmente, bíblia dos pobres)7, tornaram-se muito populares no final da Idade Média. Estes livros são descritos como compostos

quase exclusivamente de cenas justapostas, com poucas palavras, às vezes com legendas nas margens das páginas, às vezes saindo da boca das personagens em cártulas semelhantes a bandeiras, como os balões de histórias em quadrinhos de hoje8.

As ‘bíblias dos pobres’ eram escrita quase integralmente em imagens,Page 153 eram grandes livros de figuras nos quais cada página estava dividida para receber duas ou mais cenas. Por exemplo, na assim chamada Biblia pauperum de Heidelberg do século XV, as páginas estão divididas em duas metades, a de cima e de baixo9,

que eram mostradas aos fiéis em certas datas litúrgicas e representavam seqüencialmente cenas do velho e do novo testamento.

Lessing, fundador da compreensão contemporânea da estética, teria observado que o nome bibliae pauperum ao livro ilustrado talvez tenha sido dado posteriormente pela necessidade de catalogá-lo. De todo modo a expressão bibliae pauperum pode ser também traduzida como bíblia destinada aos analfabetos10, em sua maioria pobres, já que os dois estados eram geralmente – mas não necessariamente – associados.

A partir do século XV, com a invenção da prensa tipográfica, aliada à alfabetização de maior número de pessoas, o mundo começará a conhecer um acesso mais amplo aos textos escritos. De fato, a atividade da imprensa – no sentido de ofício de imprimir – já se encontra difundida por toda a Europa no século XVI, havendo inúmeros impressores em atividade especialmente em torno de Universidades e de centros urbanos onde existia algum mercado consumidor. A unidade da língua então mais comumente utilizada para impressão – o latim – e a uniformidade dos currículos universitários – que basicamente eram os mesmo de ‘Coimbra à Cracóvia’11 – além de facultar a peregrinatio academica, prática que permitia “que os estudantes se transferissem com relativa facilidade de uma instituição para outra”12, também facilitava muitíssimo a transmissão do conhecimento escrito.

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Em Portugal a atividade dos impressores modernos – aqueles já munidos de técnicas tipográficas – desenvolveu-se a partir do século XVI13 com a presença dos primeiros mestres na nova arte que facultava a produção de infinitas cópias de um mesmo texto. Algumas das primeiras obras apareceriam publicadas em ‘linguagem’14 – em língua falada, ou seja, em português – mas a prensa latina, como já vimos, alcançaria maior êxito por seu uso corrente nas escolas e universidades.

A rápida expansão da nova atividade, porém, acabou por despertar – ou acirrar – preocupações com controle doutrinário. A crescente difusão dos impressos na Europa trouxe consigo inúmeras contendas acerca dos privilégios de publicação bem como uma série de indagações sobre a necessidade ou oportunidade de tamanha difusão do conhecimento. Os Estados e as Igrejas (incluindo já aí o protestantismo) logo ressentiram–se do perigo existente na possibilidade de divulgação de informações consideradas secretas (arcanas) tais como mapas de cidades e de rotas marítimas15 ou obras consideradas perigosas para conservação do estado, corruptoras da verdade ou incentivadoras de imoralidades, cismas e heresias. O conhecimento impresso transforma–se assim em algo cada vez mais cercado de cuidados e o controle de sua produção e circulação vai entrar para o rol dos temas de largo interesse tanto para os governantes civis como para os eclesiásticos. Listas de livros impróprios serão continuamente divulgadas e a atividade de censura será uma ‘menina dos olhos’ tanto para o clero e quanto para os funcionários régios.

O modelo de censura adotada sofreria mudanças ao longo do tempo, passando de uma atividade de viés mais marcadamente moralista – muito comum para os séculos XV e XVI – para uma atividade cada vez mais dirigida a livros que ameaçassem o absolutismo16 ou fossem contrários a dogmas religiosos cristãosPage 155 católicos ou protestantes, conforme a vinculação a uma ou outra corrente, já que a ameaça representada pela imprensa não foi reprimida apenas pelo Bispo de Roma: também o clero protestante preocupou–se muito com esta questão, sendo exemplos deste fato a proibição no início do século XVI da leitura de polêmicas católicas e também de textos de alguns representantes de própria ala [protestante] radical17. Genericamente considerada, a censura calcada em critérios político–religiosos tornou–se cada vez mais forte a partir de meados do século XVII.

A preocupação crescente com o controle da leitura vai provocar tanto a edição de índices de livros e autores proibidos como a de regras de censura, como são exemplo o conhecido Index Librorum Prohibitorum...

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