Direitos fundamentais em tempos de pandemia III: o fechamento de igrejas
Limitar direitos fundamentais, já dizia Hesse, é “coordenar mutuamente as condições de vida garantidas pelos direitos de liberdade”, tarefa que a Constituição esquematiza em grandes linhas, apostando basicamente na produção de concordância prática, uma coordenação proporcional que, ao fim e ao cabo, não prescinde da arte da dogmática relativa aos limites e restrições.
No momento em que as condições de vida estão sendo duramente postas à prova, e, com isso, também a capacidade de o Direito, em especial dos direitos fundamentais, de reagir de modo ao mesmo tempo eficaz e constitucionalmente consistente, às diversas, complexas e urgentes demandas que gravitam em torno da contenção e combate à pandemia, também o direito fundamental à liberdade religiosa se torna, assim como outros direitos, mais vulnerável a restrições, legitimadas, à partida, pela causa da saúde pública.
Aliás, calha recordar que mesmo em tempos “normais”, ou seja, não marcados por quadros de aguda crise e instabilidade, não seria possível conceber uma ordem jurídico-constitucional colonizada pela religião (ou por qualquer valor ou ideologia), ao menos em se tratando de um Estado Democrático de Direito como é o caso do formatado pela Constituição Federal de 1988.
Por outro lado, seja no caso da liberdade religiosa, seja no tocante a outros direitos e garantias fundamentais, não existe suporte juridicamente legítimo a justificar intervenções no seu âmbito de proteção que possam resultar no esvaziamento do respectivo núcleo essencial. É nesta perspectiva que se passa, agora, a examinar brevemente o quadro do exercício da liberdade religiosa no Brasil em tempos de pandemia da Covid-19, notadamente seus limites e restrições.
Mas antes de investir no Direito Constitucional positivo brasileiro, crucial recordar o que dispõe a Convenção Americana de Direitos Humanos, cujo artigo 12 consagra a liberdade de consciência e de religião, vedando expressamente a restrição geral à liberdade de religião ou de crença (e de trocar uma ou outra), mas sujeitando a liberdade de manifestar a própria religião e as próprias crenças às limitações prescritas por lei e que sejam necessárias para proteger, no que interessa agora, a saúde pública.
Embora tal circunstância deva ser do domínio comum, nunca é demais, contudo, pontuar que o Brasil ratificou tal convenção, incorporando-a ao ordenamento jurídico com hierarquia normativa (por força da orientação atualmente dominante no Supremo Tribunal Federal) supralegal, o que, por sua vez, implica a necessidade de uma interpretação conforme a convenção, pelo menos de toda a normativa infraconstitucional pátria.
No que concerne à Constituição Federal, esta não prevê qualquer restrição legal explícita à liberdade religiosa, que não pode ser suspensa sequer no estado de defesa e mesmo no estado de sítio (artigos 136 e 139 da Constituição Federal), o que é coerente com a íntima proximidade que o fenômeno religioso guarda com a dignidade da pessoa humana (a espiritualidade também constitutiva da dignidade, expressão da dimensão existencial pessoal nuclear, imprescindível para assegurar a autodeterminação e os aspectos identitários).
Todavia, algumas das posições jurídicas fundamentais componentes da liberdade religiosa em sentido amplo submetem-se à reserva de lei simples (direito de assistência religiosa “nos termos da lei”, proteção aos locais de culto “na forma da lei”), ao passo que a cooperação que marca o princípio da separação e da não confessionalidade submete-se à reserva de lei qualificada pela finalidade (colaboração de interesse público, na forma da lei).
Além disso, em casos de colisão, mesmo sem expressa reserva legal, é possível restringir aspectos da liberdade religiosa em face de direitos de terceiros (vida, integridade física etc.) e mesmo de outros bens de hierarquia constitucional, resplandecendo, aqui, no que interessa diretamente ao presente texto, a saúde pública.
Todavia, se a ausência de expressa reserva de lei não desautoriza, por si só, eventuais restrições a direitos fundamentais, nenhuma intervenção restritiva pode deixar de observar determinados critérios (“limites dos limites”)...
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