Direitos Fundamentais, Garantismo e Direito do Trabalho

AutorSayonara Grillo Coutinho Leonardo da Silva
Páginas137-153

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1. Introdução

A reconstrução jurisprudencial de um direito do trabalho desregulado é fenômeno recente em países latino-americanos. Trata-se de atividade decisória na qual, com a aplicação de princípios e de normas constitucionais e internacionais, Cortes Supremas vêm negando aplicabilidade a leis de desregulamentação ou flexibilização de direitos por considerá-las inconstitucionais. Segundo se tem notícia, indica movimento jurisprudencial ocorrido na primeira década dos anos 2000 em diversos países do continente Americano, que se contrapõe diretamente àquela conduta de desconstrução de direitos, em verdadeiro ativismo judiciário negativo, típico dos anos 1990. É, em certa medida, uma reação à flexibilidade jurisprudencial, que ocorre quando, pelas mãos de decisões judiciais, a normatividade do trabalho é flexibilizada em prejuízo dos trabalhadores, como ocorreu em larga escala nos anos 1990. Ambos os conceitos foram cunhados pelo jurista uruguaio Oscar Ermida Uriarte; o primeiro, com o otimismo do jurista (2007) e o segundo, com o realismo do pesquisador do direito (2004) e, em certa medida, expressam os giros paradigmáticos que as Cortes trabalhistas são capazes de empreender no tempo1.

Assim iniciamos essas linhas, com dupla flnalidade. Saudar os 70 anos da Justiça do Trabalho, instituição construída e integrada por variegados atores, juízes, advogados, servidores. E, sobretudo, pelos atores sindicais e trabalhadores que, ao postularem novas teses, ao exigirem o cumprimento de seus direitos, possibilitam à

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instituição sua reconflguração e abertura às expectativas democráticas2. E homenagear uma de nossas maiores referências teóricas no âmbito juslaboral, Oscar Ermida Uriarte, diante de seu passamento.

Reconstruções jurisprudenciais não existem sem formulações críticas e práticas sociais instituintes. Nesse sentido, considerações sobre fundamentos do direito, do Estado e da regulação constitucional podem contribuir para tal intento. O objetivo deste ensaio é, pois, apresentar os elementos constitutivos do garantista, teoria que abre ricas possibilidades para o tratamento de temas como a aplicação dos direitos fundamentais nas relações laborais individuais.

Enquanto a atuação do Estado e de seus poderes segue sendo o objeto do interesse dos juristas orientados pela tradição liberal, o mercado e os poderes privados com suas coerções econômicas merecem cada vez mais atenção por parte dos constitucionalistas, que sem descuidar da necessária contenção dos poderes coercitivos estatais, principalmente quando exercidos contra os mais débeis, aflrmam um sistema de garantias fundado no reconhecimento de direitos fundamentais. Nesse quadro se insere o trabalho do jurista italiano Luigi Ferrajoli, centrado nos conceitos de democracia constitucional, de garantismo e de direitos fundamentais, e que nos propicia ricas reflexões teóricas no âmbito da fllosofla e da teoria do direito contemporâneo.

Em trabalho anterior, também em diálogo com Luigi Ferrajoli, compreendemos a liberdade sindical como direito fundamental intrínseco a um sistema de garantias, conjugando o conceito formal de direitos fundamentais, com a necessária superação das dicotomias: liberdades negativa e positiva, obrigações de fazer e não fazer, para assegurar a efetivação dos direitos sociais, políticos e civis3. No presente artigo, com base na proposta teórica de um garantismo - que expande seus domínios para além do direito penal e acena com uma revalorização dos aspectos publicistas dos direitos do trabalho -, pretendemos refletir sobre uma concepção

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de direitos fundamentais, com incidência direta sobre os locais de trabalho. Busca-se estabelecer pressupostos para a eflcácia horizontal dos direitos civis, políticos e de participação dos trabalhadores nas empresas, compreendidos como verdadeiros direitos fundamentais dos mais débeis.

Um dos critérios utilizados por Ferrajoli para identiflcar os direitos fundamentais no plano axiológico é aquele que identiflca direitos fundamentais com as expectativas vitais dos mais fracos. Aflnal, racionalidade jurídica abstrata não dá conta de fundamentar direitos conquistados historicamente em processos de lutas que desvelam "o véu de normalidade e naturalidade oculto na opressão ou discriminação precedente" (Ferrajoli, 2008, p. 51). Por outro lado, a eleição de tal critério axiológico denota que a oposição entre fortes e fracos, entre poderosos e destituídos de poder, segundo Cabo e Pisarello, encontra-se pressuposta nas preocupações ferrajolinas. Nesse sentido, "los derechos fundamentales son valiosos en tanto contribuyan a la paz, a la igualdad, al aseguramiento de la democracia y, sobre todo, a la protección de los más débiles" (Cabo e Pisarello, 2001, p. 16) e tal concepção é coerente com os pressupostos de um direito, como o do trabalho, que reconhece a desigualdade, organiza as condições para a reprodução de tais relações de classe, mas aspira a uma pretensão emancipatória de proteção dos vulneráveis.

Aflnal, desde a segunda metade do século XX, a fonte de legitimação das instituições políticas do estado constitucional se deslocou da noção de soberania estatal para os direitos fundamentais dos cidadãos (Ferrajoli, 2008, p. 309), invertendo-se a relação entre cidadania e instituições políticas, com a consolidação da democracia constitucional.

Entretanto, a perda de memória das tragédias do passado e a ausência de garantias e de instituições garantidoras contribuem, ao lado do fenômeno da globalização econômica, para uma "bio-economía de la muerte" (Ferrajoli, 2008, p. 310). O crescimento das desigualdades e da pobreza, a concentração da riqueza e a expansão das discriminações expõem a crises a democracia constitucional, com a hegemonia de um liberalismo que aflrma "que a autonomia empresarial não é um poder, e enquanto tal, sujeito à regulação jurídica, senão uma liberdade, e que o mercado não somente não tem necessidade de regras senão que tem necessidade, para produzir riqueza e emprego, de não ser submetido a limites" (Ferrajoli, 2008, p. 59).

A contrariedade de tal lógica com o estado de direito constitucional é flagrante, pois esta concepção não admite poderes legibussoluti e, neste sentido, são denunciadas por nosso jurista: "Contra esta regresión de la economía y e de relaciones de trabajo al modelo paleo capitalista y contra la rehabilitación de la guerra como médio de solución de las controvérsias internacionales, no existem otras alternativas más que el derecho y la garantia de los derechos así como, obviamente, uma política que se los tome en serio" (Ferrajoli, 2008, p. 59). Desse modo, para a aflrmação plena dos direitos fundamentais em uma sociedade globalizada, é necessário reconhecer que certo paradigma de democracia constitucional estaria em crise.

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2. Garantias e garantismo

Garantias, tal qual deflnidas pelo Direito Civil, visam assegurar o adimplemento das obrigações e a tutela dos direitos patrimoniais. Em termos jurídicos mais amplos, garantia designa "qualquer técnica normativa de tutela de um direito subjetivo" (Ferrajoli, 2008, p. 60) e garantias constitucionais referem-se à tutela reforçada nos sistemas estruturados com base em constituições rígidas. Para Ferrajoli, garantia constitui "toda obrigação correspondente a um direito subjetivo, entendendo por ‘direito subjetivo’ toda expectativa jurídica positiva (de prestações) ou negativa (de não lesionar)", sendo possível falar em garantias positivas e negativas (2008, p. 63).

Garantismo, por sua vez, é neologismo que se refere a técnicas de tutelas dos direitos fundamentais (2008, p. 61), e embora tenha sido aplicado originalmente no campo do Direito Penal se estende "como paradigma da teoria geral do Direito, a todo campo de direitos subjetivos, sejam estes patrimoniais ou fundamentais, e a todo o conjunto de poderes, públicos ou privados, estatais ou internacionais" (Ferrajoli, 2008, p. 62). Fala-se em garantismo liberal ou penal (defesa dos direitos de liberdade frente ao arbítrio policial ou judicial), garantismo patrimonial (tutela dos direitos de propriedade), garantismo internacional (para tutelar os direitos humanos estabelecidos em pactos internacionais) e garantismo social, "para designar o conjunto de garantias, em boa medida ainda ausentes ou imperfeitas, dirigida à satisfação dos direitos sociais, como a saúde, a educação e o trabalho e outros semelhantes" (Ferrajoli, 2008, p. 62).

Tais dimensões específlcas prenunciam que o garantismo como técnica de tutela jurídica designa:

El conjunto de límites y vínculos impuestos a todos los poderes - públicos y privados, políticos (o de mayoría) y econômicos (o de mercado), en el plano estatal y enel internacional - mediante los que se tutelan, através de su sometimiento a laley y, em concreto, a los derechos fundamentales en ella estabelecidos, tanto las esferas privadas frente a los poderes públicos, como las esferas públicas frente a los poderes privados (Ferrajoli, 2008, p. 62).

Tal concepção constitucional flxa uma esfera subtraída da deliberação majoritária (esfera de lo indecidible) com proibições que garantam liberdades e com vínculos que asseguram os direitos sociais. Portanto, o garantismo se inscreve dentre as concepções de democracia substantiva ou substancial, no âmbito do constitucionalismo democrático4, com o qual em grande medida se confunde ao se redeflnir

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como um "modelo de direito fundado sobre a rígida subordinação à lei de todos os poderes e sobre os vínculos impostos para garantia dos direitos consagrados nas constituições" (2008, p. 1999).

3. Desenvolvimento do paradigma garantista no âmbito laboral

O paradigma do constitucionalismo substancial e garantista...

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