Direitos humanos e ações afirmativas: um estudo sobre as cotas étnico?raciais nas universidades públicas

AutorNatalia Brigagão F. A. Carvalho e Rodrigo Vitorino Souza Alves
Páginas217-242

Page 217

Apresentação

O presente capítulo tem como objetivo analisar o problema das cotas étnico-raciais nas universidades públicas como instrumento de efetivação dos direitos humanos. Para tanto, examinou-se inicialmente o desenvolvimento das ações afirmativas no Direito Internacional dos Direitos Humanos. Na sequência, foi apresentado o histórico das ações afirmativas no Brasil, assim como o atual quadro normativo, incluindo-se os preceitos constitucionais e a legislação, com especial ênfase no princípio da igualdade. Finalmente, discutiu-se o acesso dos negros às universidade públicas no Brasil, de modo a identificar o atual problema da desigualdade e do racismo nos ambientes universitários. O capítulo ressalta o valor

Page 218

e a necessidade de ampliação das políticas de inclusão e de redução de desigualdades sociais.

1 O direito internacional dos direitos humanos e o desenvolvimento das ações afirmativas

O Direito Internacional dos Direitos Humanos, desde o início de seu desenvolvimento, teve como fundamento e razão o princípio da igualdade. Fomentado pela necessidade de superação dos horrores das Grandes Guerras - destaque-se o extermínio de grupos nacionais, étnicos e religiosos -, o movimento que marcou a primeira metade do passado século preocupou-se em afirmar os seres humanos como sujeitos de direito dotados de igual dignidade.

Como expressa Piovesan, a primeira fase de proteção dos direitos humanos foi marcada pela tônica da proteção geral, que expressava o temor da diferença com base na igualdade formal. É a estratégia identificada Declaração Universal dos Direitos Humanos, de 1948, e na redação da Convenção para a Prevenção e Repressão ao Crime de Genocídio, datada do mesmo ano.1Ambas estabelecem um destinatário genérico, abstrato, cujo caráter bastante à proteção é o pertencimento ao gênero humano. O Direito Internacional dos Direitos Humanos:

Testemunha a história que as mais graves violações aos direitos humanos tiveram como fundamento a dicotomia do "eu versus o outro", em que a diversidade era captada como elemento para aniquilar direitos. Vale dizer, a diferença era visibilizada para conceber o "outro" como um ser menor em dignidade e direitos, ou, em situações limites, um ser esvaziado mesmo de qualquer dignidade, um ser descartável, objeto de compra e venda (vide a escravidão) ou de campos de extermínio (vide o nazismo)2.

Percebeu-se, contudo, insuficiente o reconhecimento jurídico de um imperativo geral de respeito à alteridade, fundado numa expressão de unidade (quase) metafísica do gênero humano: a mera afirmação de uma situação não a faz real ou verídica. A diversidade e seus conflitos subsistem nos fatos, como também subsistem seculares desigualdades, que pouco ou

Page 219

nada poderiam deixar-se impactar pela simples assinatura de documentos oficiais.

Emerge, assim, na segunda metade do século, a consciência de que o sincero apreço pelo princípio da igualdade requer sua realização não só no âmbito formal, mas também no material. Determinados sujeitos, enquanto seres humanos vulneráveis, submetidos a flagrante e incessante violação de direitos, exigem atuação específica, diferenciada, positiva, além da mera vedação da discriminação3. A efetivação da igualdade não se realiza por catarses internas; exige, ao contrário, que forças atuem sobre o desequilíbrio e sua subsistência firmada em processos já culturalmente arraigados e aparentemente naturalizados.

Para Carmen Lucia, o que se teve (e ainda se tem) é a reversão do conceito jurídico do princípio da igualdade no Direito em benefício dos discriminados. De um conceito jurídico passivo, tornou-se conceito jurídico ativo, quer-se dizer, de um conceito negativo de condutas discriminatórias vedadas passou-se a um conceito positivo de condutas promotoras da igualação jurídica.4Desta noção de igualdade material se originam, para Piovesan5, duas principais vertentes. A primeira face encontra-se ligada à justiça social e distributiva; no combate à desigualdade socioeconômica. A segunda manifestação, diferentemente da anterior, propõe-se realizar não apenas a partir das condições de vida, mas pelos caracteres de identidade.

Page 220

Assim, como não basta a afirmação da igualdade perante a lei, seria simplista reduzir as formas de discriminação e violação de direitos à economia; mulheres, negros, pessoas portadoras de deficiência e incontáveis outras comunidades, em sua vulnerabilidade, não podem ser veladas e desprezadas suas condições de subjugação e indignidade. Há que se promover a igualdade em todos os âmbitos, a partir da redistribuição e do reconhecimento, conforme sustenta Piovesan:

O direito à redistribuição requer medidas de enfrentamento da injustiça econômica, da marginalização e da desigualdade econô-mica, por meio da transformação nas estruturas sócio-econômicas e da adoção de uma política de redistribuição. De igual modo, o direito ao reconhecimento requer medidas de enfrentamento da injustiça cultural, dos preconceitos e dos padrões discriminatórios, por meio da transformação cultural e da adoção de uma política de reconhecimento6.

Os indivíduos e grupos devem ser vistos, sob tal ótica, nas especificidades e peculiaridades de sua condição identitária e social: ao lado do direito à igualdade, surge também o direito à diferença, que não deve obstar, mas nortear a efetivação do primeiro, já que delimita as tensões a serem por ele superadas.

É esta a motivação da redação da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial, que estabelece, além da vertente punitiva7, a promocional - implementação de medidas especiais e temporárias que acelerem o processo de construção da igualdade racial. É o sustentado no art. 1º, § 4º, mediante a denominação de "discriminação positiva"8. Razão diferente não deve ter levado o Presidente Lyndon B.

Page 221

Johnson a indagar na Howard University, em 4 de junho de 1965, se todos ali eram livres para competir com os demais membros da mesma sociedade em igualdade de condições, inflamando o movimento pelas affirmative actions.

Estas seriam políticas focais que alocam recursos em benefício de pessoas pertencentes a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no presente. Trata-se de medidas que têm como objetivo combater discriminações étnicas, raciais, religiosas, de gênero ou de casta, aumentando a participação de minorias no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e/ou no reconhecimento cultural.9Sobre o movimento das ações afirmativas e seu processo de consolidação político-jurídica,10aponta que seu plano de fundo foi o Welfare State: ao tomar para si a responsabilidade sobre a organização e integração social, este assume o controle da promoção de bem-estar para seus integrantes por meio da formulação de políticas de caráter social garantidoras da prestação de benefícios mínimos para todos. Nesse contexto, aponta-se a incipiente previsão do diploma afirmativo já no "The National Labor Relations Act" de 1935, que previa que um empregador que fosse encontrado discriminando sindicalistas ou operários sindicalizados teria de implementar ações com a finalidade de colocar as vítimas nas posições onde elas estariam se não tivessem sido discriminadas.

O processo, contudo, só se consolidou na década de 60 e a vinculação ao movimento negro, primeiro com a Ordem Executiva n. 10.925 do presidente Kennedy, datada de 1961 - esta estabeleceu a Comissão Presidencial sobre Igualdade no Emprego - e, depois, com a decretação da Lei dos Direitos Civis de 1964 pelo presidente Lyndon Johnson.

Há que se ressaltar, ainda, o papel da Suprema Corte estado-unidense11, sendo a ela atribuído o avanço das concepções de direitos humanos,

Page 222

cristalizadas em execuções efetivas e eficientes das normas de direitos fundamentais, sobretudo no que concerne ao princípio da igualdade material. Como preceitua Rocha, acredita-se que, a partir do período imediatamente seguinte ao fim dos conflitos mundiais e até o início da década de sessenta, passou-se a ter consciência de que os litígios constitucionais, ainda que fundados em interesses individuais, continham elementos que se espraiavam e densificavam em toda a sociedade e, dessa forma, constituíam fonte de reconhecimento de direitos fundamentais para todos.

Os grupos minoritários passaram a vislumbrar, neste período, o processo judicial constitucional como via de conquistas e reconhecimento de direitos conquistados, mas ainda não-formalizados, de forma expressa e vinculante, nos documentos normativos. Nos Estados Unidos, a constitucional adjudication passou a ser traduzida como um dos instrumentos da mutação constitucional necessária e amadurecida no seio da sociedade; a dita "mudança informal" da Constituição fez-se encaminhar exatamente pela via judicial, e não pela via legislativa. Iniciou-se, então, o movimento chamado de realismo legal, pelo qual se reconheceu que não bastava a formalização da norma constitucional, sendo imprescindível sua interpretação segundo a experiência sócio-histórica em que esta se insere12.

A expressão "ação afirmativa" (...) passou a significar, desde então, a exigência de favorecimento de algumas minorias social-mente inferiorizadas, vale dizer, juridicamente desigualadas, por preconceitos arraigados culturalmente e que precisavam ser superados para que se atingisse a eficácia da igualdade preconizada e assegurada constitucionalmente na principiologia dos direitos fundamentais. Naquela ordem se determinava que as empresas empreiteiras contratadas pelas entidades públicas ficavam...

Para continuar a ler

PEÇA SUA AVALIAÇÃO

VLEX uses login cookies to provide you with a better browsing experience. If you click on 'Accept' or continue browsing this site we consider that you accept our cookie policy. ACCEPT