Direitos humanos e diálogo entre jurisdições no contexto latino-americano

AutorFlávia Piovesan
Páginas397-421

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Ver Nota12

1. Introdução

Enfocar o diálogo entre jurisdições sob a perspectiva dos direitos humanos, compreendendo o diálogo entre os sistemas regionais interamericano e europeu; entre os sistemas regionais e nacionais; e entre os sistemas nacionais é o objetivo deste artigo. De um lado, importará avaliar o modo pelo qual a Corte Europeia e a Corte Interamericana fomentam um diálogo baseado na referência recíproca de precedentes jurisprudenciais, no intercâmbio de argumentação jurídica e de experiências no enfrentamento de violações de direitos. Por outro lado, convirá examinar o alcance do controle da convencionalidade, considerando o modo pelo qual as cortes regionais exercem o controle da convencionalidade com relação às ordens jurídicas nacionais e avaliando o modo pelo qual as cortes nacionais exercem o controle da convencionalidade no âmbito doméstico, mediante a incorporação da normatividade, principiologia e jurisprudência protetiva internacional em matéria de direitos humanos no contexto latino-americano. Também será destacado o diálogo horizontal a envolver jurisdições nacionais. Especial ênfase será conferida à experiência latino--americana, sobretudo no campo do controle da convencionalidade desenvolvido no marco do diálogo entre a Corte Interamericana e as esferas locais.

Direitos humanos e diálogo entre jurisdições constitui tema de especial relevância e complexidade para a cultura jurídica contemporânea, refletindo a emergência de um novo paradigma.

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A primeira parte deste artigo enfrentará o desafio concernente aos delineamentos de um novo paradigma a nortear a cultura jurídica latino-americana na atualidade, no qual aos parâmetros constitucionais somam-se os parâmetros convencionais, na composição de um trapézio aberto ao diálogo, aos empréstimos e à interdisciplinaridade, a ressignificar o fenômeno jurídico sob a inspiração do human rights approach.

Considerando a emergência deste novo paradigma, a segunda parte deste artigo transitará para a análise dos direitos humanos e do diálogo entre jurisdições, abrangendo o diálogo regional-regional, regional-nacional e nacional-nacional, avaliando, sobretudo, o controle da convencionalidade exercido pela Corte Interamericana.

Por fim, serão destacados os principais desafios e perspectivas para a pavimentação de um ius commune latino-americano que tenha sua centralidade na força emancipatória dos direitos humanos.

2. Emergência de um novo paradigma jurídico: da hermética pirâmide centrada no state approach à permeabilidade do trapézio centrado no human rights approach

Por mais de um século, a cultura jurídica latino-americana tem adotado um paradigma jurídico fundado em três características essenciais:
a) a pirâmide com a constituição no ápice da ordem jurídica, tendo como maior referencial teórico Hans Kelsen, na afirmação de um sistema jurídico endógeno e autorreferencial (observa-se que, em geral, Hans Kelsen tem sido equivocadamente interpretado, já que sua doutrina defende o monismo com a primazia do direito internacional – o que tem sido tradicionalmente desconsiderado na América Latina);
b) o hermetismo de um direito purificado, com ênfase no ângulo interno da ordem jurídica e na dimensão estritamente normativa (mediante um dogmatismo jurídico a afastar elementos “impuros” do direito); e
c) o state approach (state-centered perspective), sob um prisma que abarca como conceitos estruturais e fundantes a soberania do Estado no âmbito externo e a segurança nacional no âmbito interno, tendo como fonte inspiradora a lente ex parte principe, radicada no Estado e nos deveres dos súditos, na expressão de Norberto Bobbio3.

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Testemunha-se a crise deste paradigma tradicional e a emergência de um novo paradigma a guiar a cultura jurídica latino-americana, que, por sua vez, adota como três características essenciais:
a) O trapézio com a constituição e os tratados internacionais de direitos humanos no ápice da ordem jurídica (com repúdio a um sistema jurídico endógeno e autorreferencial).

As constituições latino-americanas estabelecem cláusulas constitucionais abertas, que permitem a integração entre a ordem constitucional e a ordem internacional, especialmente no campo dos direitos humanos, ampliando e expandindo o bloco de constitucionalidade. Ao processo de constitucionalização do direito internacional conjuga-se o processo de internacionalização do direito constitucional.

A título exemplificativo, a Constituição da Argentina, após a reforma constitucional de 1994, dispõe, no artigo 75, inciso 22, que, enquanto os tratados em geral têm hierarquia infraconstitucional mas supralegal, os tratados de proteção dos direitos humanos têm hierarquia constitucional, complementando os direitos e garantias constitucionalmente reconhecidos. A Constituição do Brasil de 1988, no artigo 5º, parágrafo 2º, consagra que os direitos e garantias nela expressos não excluem os direitos decorrentes dos princípios e do regime a ela aplicável e os direitos enunciados em tratados internacionais ratificados pelo Brasil, permitindo, assim, a expansão do bloco de constitucionalidade. A então Constituição do Peru de 1979, no mesmo sentido, determinava, no artigo 105, que os preceitos contidos nos tratados de direitos humanos tinham hierarquia constitucional e não podiam ser modificados senão pelo procedimento que regia a reforma da própria Constituição. Já a atual Constituição do Peru, de 1993, consagra que os direitos constitucionalmente reconhecidos devem ser interpretados em conformidade com a Declaração Universal de Direitos Humanos e com os tratados de direitos humanos ratificados pelo Peru. Decisão proferida em 2005 pelo Tribunal Constitucional do Peru endossou a hierarquia constitucional dos tratados internacionais de proteção dos direitos humanos, adicionando que os direitos humanos enunciados nos tratados conformam a ordem jurídica e vinculam os poderes públicos. A Constituição da Colômbia de 1991, reformada em 1997, confere, no artigo 93, hierarquia especial aos tratados de direitos humanos, determinando que estes prevalecem na ordem interna e que os direitos humanos constitucionalmente consagrados serão interpretados em conformidade com os tratados de direitos humanos ratificados pelo país.

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Também a Constituição do Chile de 1980, em decorrência da reforma constitucional de 1989, passou a consagrar o dever dos órgãos do Estado de respeitar e promover os direitos garantidos pelos tratados internacionais ratificados por aquele país.

Logo, é neste contexto – marcado pela tendência de constituições latino-americanas em assegurar um tratamento especial e diferenciado aos direitos e garantias internacionalmente consagrados – que se delineia a visão do trapézio jurídico contemporâneo a substituir a tradicional pirâmide jurídica.
b) A crescente abertura do direito – agora “impuro” –, marcado pelo diá-logo do ângulo interno com o ângulo externo (há a permeabilidade do direito mediante o diálogo entre jurisdições, empréstimos constitucionais e a interdisciplinaridade, a fomentar o diálogo do direito com outros saberes e diversos atores sociais, ressignificando, assim, a experiência jurídica).

No caso brasileiro, por exemplo, crescente é a realização de audiências públicas pelo Supremo Tribunal Federal, contando com os mais diversos atores sociais, para enfrentar temas complexos e de elevado impacto social, como: a) a utilização de células-tronco embrionárias para fins de pesquisa científica (tema da primeira audiência pública concernente ao julgamento da ação direta de inconstitucionalidade relativa ao artigo 5º da Lei de Biossegurança, em maio de 2008); b) a justicialização do direito à saúde (audiência pública realizada em 2009); c) as cotas para afrodescendentes em universidades (audiência pública concernente ao julgamento de ação direta de inconstitucionalidade de leis estaduais determinando a fixação de cotas raciais em universidades, realizada em março de 2010); d) o reconhecimento constitucional às uniões homoafetivas (audiência pública realizada em junho de 2011), entre outras. Para adotar a terminologia de Peter Häberle, há a abertura da constituição a uma sociedade plural de intérpretes4.

É a partir do diálogo a envolver saberes diversos e atores diversos que se verifica a democratização da interpretação constitucional a ressignificar o direito.
c) O human rights approach (human-centered approach), sob um prisma que abarca como conceitos estruturais e fundantes a soberania popular e a segurança citada no âmbito interno, tendo como fonte inspiradora a lente ex parte populi, radicada na cidadania e nos direitos dos cidadãos, na expressão de Norberto Bobbio5.

Para Luigi Ferrajoli, “a dignidade humana é referência estrutural para o constitucionalismo mundial, a emprestar-lhe fundamento de validade, seja

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qual for o ordenamento, não apenas dentro, mas também fora e contra todos os Estados”. Para o mesmo autor, “a liberdade absoluta e selvagem do Estado se subordina a duas normas fundamentais: o imperativo da paz e a tutela dos direitos humanos”6

No mesmo sentido, ressalta José Joaquim Gomes Canotilho: “Os direitos humanos articulados com o relevante papel das organizações internacionais fornecem um enquadramento razoável para o constitucionalismo global. […] O constitucionalismo global compreende a emergência de um Direito Internacional dos Direitos Humanos e a tendencial elevação da dignidade humana a pressuposto ineliminável de todos os constitucionalismos. […]...

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