Direitos humanos dos refugiados

AutorPaula de Araújo Pinto Teixeira
Páginas15-34

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1 Introdução

Em razão da intensa discussão1, nas últimas décadas, acerca da efetivação dos direitos humanos2 dentro e fora das fronteiras dos países, iniciada com a Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 a temática dos refugiados, em seus vários aspectos, vem ganhando especial atenção das comunidades acadêmica e civil, especialmente após a criação do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR), em 1951. Esse artigo busca analisar o aspecto jurídico relacionado aos refugiados no que se refere a seus direitos.

É imprescindível compreender quem são, exatamente, os refugiados, para que então se passe ao exame do corpo de leis e tratados a eles aplicável. Assim, primeiramente, se estabelece o conceito jurídico de refugiado.

Depois, faz-se a diferenciação entre fluxos de migração voluntários e forçados, constatando-se que os refugiados se enquadram neste último tipo de fluxo, o que os torna vulneráveis e vítimas de desrespeito aos seus direitos, razão pela qual necessitam de tratamento especial.

Todavia, apesar dessa constatação, o cenário mundial tem sido, em geral, o de fechamento de fronteiras a migrantes indesejados, categoria da qual fazem parte os refugiados. Os argumentos de que se servem os Estados para justificar esse repúdio ao estrangeiro são de cunho social, econômico, financeiro, político etc. e estão presentes em discursos que reforçam, principalmente, a questão da soberania e da segurança nacional.

Após traçar esse panorama, afirma-se que há uma urgente necessidade de mudança. Nossa tese é a de que o tema do refúgio deve ser visto na esfera de incidência dos Direitos Humanos. Dessa forma, sustenta-se que é aplicável todo o aparato jurídico pertinente a esse ramo do Direito.

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A Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948 foi “o divisor de águas, o marco do processo de internacionalização dos direitos humanos [...] que definiu os novos contornos da ordem pública mundial, baseada, sobretudo, no respeito à dignidade humana”3. Tão relevante o prestígio alcançado pelos direitos humanos que diversos doutrinadores falam em mitigação ou limitação da soberania dos Estados frente ao Direito Internacional dos Direitos Humanos, destacando:

[...] o fortalecimento do sistema internacional de direitos humanos como um contraponto ao conceito de soberania como poder incontrastável nas esferas doméstica e, sobretudo internacional.4

Essa nova conformação quebra a lógica do Direito Internacional tradicional que preceitua uma soberania exclusiva, absoluta, “mostrando notáveis indícios de exaustão diante da globalização e das normas jurídicas internacionais”5, notadamente as normas relacionadas a direitos humanos, a direito humanitário e, mais recentemente, a meio ambiente.

Desse modo, reforça-se que, quando há um conflito entre soberanias e direitos individuais insculpidos na Declaração Universal de Direitos do Homem ou em outro documento internacional sobre Direitos Humanos, devem prevalecer os direitos individuais. Ademais, demonstra-se que há direitos humanos a serem aplicados especificamente aos refugiados, especialmente àqueles que estão expressos na Convenção da ONU de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados. Dentre esses direitos, destaca-se a regra do non-refoulement e a necessidade de elaboração e realização de políticas públicas voltadas a esses migrantes.

Por fim, defende-se que o tema das migrações deve ser visto sob a ótica dos Direitos Humanos. Os argumentos utilizados pelos Estados para repelirem as pessoas que solicitam refúgio não são suficientes para afastar as normas internacionais de direitos humanos e de direitos do refugiado e tampouco para justificar o descumpri-Page 18mento de seu dever de solidariedade, isso porque a dignidade da pessoa humana é o princípio que deve nortear as normas e a atuação de indivíduos e de nações.

2 Conceito de refugiado

Primeiramente, devemos esclarecer quem é “refugiado”. O marco jurídico que reconheceu a existência de uma categoria de pessoas denominada “refugiados” foi a Convenção de 1951, relativa ao Estatuto dos Refugiados, adotada em 28 de julho de 1951 pela Conferência das Nações Unidas, que assim os definiu:

Artigo 1º Definição do termo "refugiado":

§1. Para os fins da presente Convenção, o termo "refugiado" se aplicará a qualquer pessoa:

  1. Que foi considerada refugiada nos termos dos Ajustes de 12 de maio de 1926 e de 30 de junho de 1928, ou das Convenções de 28 de outubro de 1933 e de 10 de fevereiro de 1938 e do Protocolo de 14 de setembro de 1939, ou ainda da Constituição da Organização Internacional dos Refugiados.

  2. As decisões de inabilitação tomadas pela Organização Internacional dos Refugiados durante o período do seu mandato não constituem obstáculo a que a qualidade de refugiados seja reconhecida a pessoas que preencham as condições previstas no "§2 da presente seção".

  3. Que, em conseqüência dos acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 e temendo ser perseguida por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas, se encontra fora do país de sua nacionalidade e que não pode ou, em virtude desse temor, não quer valer-se da proteção desse país, ou que, se não tem nacionalidade e se encontra fora do país no qual tinha sua residência habitual em conseqüência de tais acontecimentos, não pode ou, devido ao referido temor, não quer voltar a ele.

  4. No caso de uma pessoa que tem mais de uma nacionalidade, a expressão "do país de sua nacionalidade" se refere a cada um dos países dos quais ela é nacional. Uma pessoa que, sem razão válida fundada sobre um temor justificado, não se houver valido da proteção de um dos países de que é nacional, não será considerada privada da proteção do país de sua nacionalidade.

    §2. Para os fins da presente Convenção, as palavras "acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951", do "artigo 1º, seção A", poderão ser compreendidas no sentido de ou

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  5. "Acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa".

  6. "Acontecimentos ocorridos antes de 1º de janeiro de 1951 na Europa ou alhures".6

    Verifica-se que, na definição dada pela Convenção, há uma limitação “temporal” que exige que os acontecimentos que deram causa à perseguição sofrida pelos refugiados tenham sido anteriores a 1º de janeiro de 1951. Todavia, tal limitação foi retirada, graças ao Protocolo sobre o Estatuto dos Refugiados,aprovado em Nova York em 31 de janeiro de 19677.

    Também podemos verificar a existência de outra limitação, sendo esta “geográfica”, imposta pelo §2° do mesmo Artigo. Apesar de não ter sido excluída expressamente pelo Protocolo de 1967, como ocorreu com a limitação “temporal”, o aclamado jurista mexicano Jaime Ruiz de Santiago afirma que “de fato, são poucos os Estados que, atualmente, mantêm ainda essa limitação, que reserva o termo ‘refugiado’ à pessoa que reúna os requisitos da definição e como resultado de acontecimentos ocorridos na Europa”8.

    Assim, hoje, o conceito de refugiado engloba qualquer perseguição, nos moldes do Artigo 1º, que seja decorrente de quaisquer acontecimentos, não importando a data ou local de ocorrência. Os refugiados são, então, “homens, mulheres e crianças obrigados a deixar sua pátria por fundado temor de perseguição seja por motivo de raça, religião, nacionalidade ou opinião”9.

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    Esse conceito pode ser alargado pelas legislações nacionais dos Estados assinantes da Convenção10. É o que fez, por exemplo, a legislação brasileira, que, com base na declaração de Cartagena (Colômbia, 1984), incluiu a violação a direitos humanos como causa ensejadora da condição de refugiado:

    Art. 1º Será reconhecido como refugiado todo indivíduo que:

    I - devido a fundados temores de perseguição por motivos de raça, religião, nacionalidade, grupo social ou opiniões políticas encontre-se fora de seu país de nacionalidade e não possa ou não queira acolher-se à proteção de tal país;

    II - não tendo nacionalidade e estando fora do país onde antes teve sua residência habitual, não possa ou não queira regressar a ele, em função das circunstâncias descritas no inciso anterior;

    III - devido a grave e generalizada violação de direitos humanos, é obrigado a deixar seu país de nacionalidade para buscar refúgio em outro país.11

3 Migrações forçadas e voluntárias

Dessa forma, a primeira importante observação é que o refugiado é uma pessoa que se viu forçada a migrar. Dentro das ondas migratórias, podemos distinguir os movimentos voluntários dos forçados. Há quem migre porque quer e quem migre por não ver outra possibilidade de ter um ou mais de seus direitos preservados. Portanto, a migração forçada se caracteriza pela necessidade, por razões de ordem econômica, social, natural ou outras que não estão sob o controle do migrante.12

Essa diferenciação se faz importante, pois as migrações forçadas geralmente implicam uma maior vulnerabilidade da pessoa migrante. No caso ainda mais es-Page 21pecífico dos refugiados, “vulneráveis entre os vulneráveis”13, há uma necessidade urgente de lhes garantir um tratamento diferenciado, visto que a não-concessão de refúgio pode lhes causar risco de morte. Luis Varese, representante do ACNUR – Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados – no Brasil, expressa bem essa importância:

Diferenciar um migrante forçado de um refugiado fortalece a pedra angular do refúgio que é o non refoulement, a não devolução. A diferença substantiva é que o refugiado não pode voltar para o seu país sem o risco de ser detido, torturado ou talvez...

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