A concepção de direitos humanos como direitos morais

AutorBruno Cunha Weyne
Páginas1-11

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1 Introdução

A expressão "direitos humanos" encontra o mesmo obstáculo de quase todas as palavras do vocabulário político, tais como: "povo", "liberdade", "soberania" e Page 2 "democracia". 1Pode-se observar que o uso impreciso e irrefletido desses termos na linguagem cotidiana aponta geralmente para o seu significado emotivo, o que gera um inevitável esvaziamento semântico e um desgaste da sua força político-jurídica. Ademais, a falta de uma elucidação da noção de direitos humanos abre caminho para que eles sejam utilizados de modo inflacionário, servindo, muitas vezes, de instrumental retórico a serviço de interesses particulares e arbitrários daqueles que os invocam.

A fim de superar tais limites ao reconhecimento e à proteção desses direitos, o primeiro e necessário passo a ser dado no estudo dos direitos humanos é entender qual é o alcance dessa expressão, para além da sua conotação meramente emotiva. Nesse sentido, o presente trabalho objetiva analisar e propor uma interpretação conceitual desses direitos que se baseie em argumentos plausíveis e que possua uma relevância para a prática e para a teoria dos direitos humanos. Para realizar essa tarefa, a pesquisa divide-se em duas partes: a primeira busca explorar as características que distinguem os direitos humanos dos demais direitos; a segunda dedica-se a examinar, com maior profundidade, a característica tida como mais importante, a saber: a sua moralidade.

2 Uma interpretação conceitual dos direitos humanos

Os direitos humanos, como se extrai da própria expressão, são uma espécie de direitos. No entanto, o termo "direito", por si só, já enfrenta uma série de dificuldades linguísticas. Em seu uso comum, conforme Tércio Sampaio Ferraz Júnior2, o termo "direito" é sintaticamente impreciso, pois pode ser ligado a verbos (meus direitos não valem), a substantivos (o direito é uma ciência), a adjetivos (este direito é injusto), além de poder ser usado como substantivo (o direito brasileiro prevê...), como adjetivo (não se trata de um homem direito) e como advérbio (ele não agiu direito). Do ponto de vista semântico, o termo "direito" é, por um lado, denotativamente vago, porque tem vários significados. O citado autor traz como exemplo a seguinte frase: "direito é uma ciência (1) que estuda o direito (2) quer no sentido de direito objetivo (3) - conjunto das normas -, quer no sentido de direito subjetivo (4) - faculdade"3. Por outro lado, tal termo é conotativamente ambíguo, já que, no seu uso comum, é impossível determinar uniformemente as propriedades que devem estar presentes em todos os casos em que é utilizado. Finalmente, a partir de uma perspectiva pragmática, o termo "direito" não só designa objetos e propriedades, mas também expressa emoções, sendo dotado de forte carga emotiva.

Dessa maneira, para se compreender as características dos direitos humanos, fazse necessário antes saber qual a acepção do termo "direito" que mais se adéqua ao caso. Para Carlos Santiago Nino, a pergunta acerca do tipo de situação normativa que tem que ocorrer para que surjam direitos humanos é um problema que se apresenta na análise do Page 3 conceito de direito subjetivo em geral4. O mesmo autor demonstra que, entre as várias propostas de conceituação de direito subjetivo, o significado dominante alude a deveres correlativos de outros ou a deveres que formam o que ele chama de "perímetro protetor". Segundo essa concepção, "frases da forma 'tenho direito a x' fazem referência à existência, no sistema relevante, de uma norma que impõe a outros o dever de deixar de fazer x ou de me facilitar a realização de x - se x é uma ação - ou de me proporcionar (ou me fazer x) ou não me retirar (ou não me fazer x) - se x é um bem ou benefício"5.

Diante disso, pode-se observar que o conceito dominante de direito (subjetivo) é constituído pela relação de, no mínimo, três variáveis: um titular (sujeito), um destinatário (terceiro) e um objeto (bem da vida x). Assim, o direito à liberdade em seu sentido liberal clássico tem o cidadão como titular, o Estado como destinatário e a omissão de intervenções estatais na vida como objeto. Tendo em mente essa estrutura de três variáveis, importa agora perquirir o que distingue os direitos (subjetivos) em geral dos direitos humanos, haja vista que qualquer direito humano é também um direito (subjetivo), porém, nem todos os direitos (subjetivos) são direitos humanos. Por exemplo, o direito que vendedor tem de exigir o pagamento de um preço em dinheiro pela transferência do domínio de certa coisa certamente não possui as características necessárias para compor um catálogo de direitos humanos. Mas que características seriam essas?

Na sua obra Constitucionalismo Discursivo, Robert Alexy entende que os direitos humanos podem ser definidos a partir de cinco características, a saber: a universalidade, a fundamentalidade, a abstratividade, a moralidade e a prioridade6. A proposta desse autor mostra-se bem razoável, uma vez que permite distinguir, com certo grau de precisão, quais direitos (subjetivos) são também direitos humanos e, por consequência, possuem um status independente e superior aos demais direitos. A seguir, cada uma dessas características será concisamente explicada, para, em seguida, examinar-se mais detidamente o caráter moral dos direitos humanos.

A primeira característica - universalidade - expressa que os direitos humanos constituem obrigações e deveres erga omnes, isto é, válidos para todos, independentemente da cultura, da tradição, da religião ou do grupo a que se faça parte. A universalidade desses direitos surge como um contraponto às crises e aos riscos da moderna civilização, que já não podem mais ser suplantados com base em formas tradicionais de ethos, ou seja, pela invocação de instituições políticas e jurídicas tradicionais7. Explica-se: a tradição é marcada por concepções individualistas dos valores, de tal modo que cada sociedade e cada cultura julgam-se donas da verdade e Page 4 acreditam que quem pensa diferentemente da sua concepção particular de verdade, de bem e de justiça está equivocado. Entretanto, uma vez que os desafios éticos atuais alcançaram uma amplitude universal, faz-se necessária uma interpretação da ideia de direitos humanos que supere os obstáculos subjetivos e particulares de cada forma de vida cultural específica e que concilie os interesses de cada um com os interesses de todos.

A partir da universalidade já é possível notar que o titular dos direitos humanos é cada pessoa considerada individualmente. Entretanto, a universalidade do lado do destinatário é mais complicada, uma vez que alguns direitos humanos - como a vida, por exemplo - dirigem-se contra todos os que podem ser destinatários de deveres e obrigações, portanto, contra todos os cidadãos, mas também contra todos os Estados e contra todas as organizações. Nesse sentido, Konrad Hesse afirma que

[...] ao significado dos direitos fundamentais como direitos de defesa subjetivos do particular corresponde seu significado jurídico-objetivo como determinações de competência negativas para os poderes estatais. Sem dúvida, é sua função proteger os direitos fundamentais, podem eles ser obrigados a concretizar direitos fundamentais, e podem eles ser autorizados a limitar direitos fundamentais 8 .

De acordo com a segunda característica - fundamentalidade -, os direitos humanos não protegem todas as fontes imagináveis do bem-estar, mas apenas interesses e carências fundamentais do homem. Segundo Alexy, um interesse e uma carência são considerados fundamentais "quando sua violação ou não-satisfação ou significa a morte ou padecimento grave ou acerta o âmbito nuclear da autonomia"9. Deve-se notar que existem inúmeros direitos que, por se referirem a bens e interesses que não são indispensáveis para a escolha e para a materialização de planos de vida, tampouco podem adquirir o status de fundamental ao ser humano.

Nesse horizonte, o conceito de direitos humanos adotado por Ricardo David Rabinovich-Berkman reflete a ideia de que nem todos os direitos devem possuir o adjetivo "humanos", porque há bens e interesses que são tutelados por outros motivos que não sejam a circunstância fundamental de se fazer parte da espécie humana:

Assim, por "direitos humanos" poderíamos entender aqueles poderes amparados pela comunidade, que geram condutas obrigatórias nos demais, e dos quais se é titular pelo simples...

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