Direitos Humanos para quem? A interseccionalidade como instrumento para o uso emancipatório dos Direitos Humanos

AutorIsadora Brandão Araujo da Silva
Páginas167-184

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A Segunda Guerra Mundial legou a memória do totalitarismo e do holocausto. O término da Guerra Fria e a derrocada do socialismo real obscureceram os horizontes da luta pelo socialismo. Nesse contexto, fortaleceu-se o discurso em prol da universalidade dos direitos humanos2 e da democracia, que passaram a constituir, ambos, pilares dos Estados Democráticos de Direito constituídos a partir da segunda metade do século XX. Para Boaventura de Sousa Santos, os direitos humanos se converteram na linguagem da política progressista nesse novo período.

Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da revolução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E, no entanto, perante a crise aparentemente irreversível destes projectos de emancipação, são essas mesmas forças que recorrem hoje aos direitos humanos para rein-ventar a linguagem da emancipação. É como se os direitos humanos fossem invocados para preencher o vazio deixado pelo socialismo ou, mais em geral, pelos projetos emancipatórios.3

Ao mesmo tempo, contudo, o discurso dos direitos humanos têm sido utilizados como instrumento de imposição de uma hierarquia de conhecimento, bem como de estratificação dos povos entre inferiores e superiores. Com efeito, a pretexto de levar a democracia a outros povos, os direitos humanos têm sido empregados como meio legitimador da dominação e da conquista, conforme adverte Ramon Grosfoguel:

Passamos da caracterização de "povos sem escrita" do século XVI, para a dos "povos sem história" dos séculos XVIII e XIX, "povos sem desenvolvimento" do século XX e, mais recentemente, "povos sem democracia" do século XXI. Passamos dos "direitos dos povos" do século XVI (o debate Sepúlveda versus de las Casas na escola de Salamanca em meados do século XVI), para os "direitos do homem" do século XVIII (filósofos iluministas), para os recentes direitos humanos" do século XX.4

Portanto, sob uma perspectiva histórica, os direitos humanos têm integrado uma narrativa hegemônica a serviço da legitimação das novas formas de colonialidade do poder.5 Entretanto, os direitos humanos não são um atributo natural do Ocidente, um elemento imanente à cultura europeia, mas uma construção que resulta da própria relação entre Ocidente e não-Ocidente, na medida em que a modernidade tem como contra--face a colonialidade. É o que explica Grosfoguel:

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Os europeus foram buscar muito do seu conhecimento utópico nos sistemas históricos não-ocidentais que encontraram nas colônias, apropriando-se deles e fazendo-os parte dessa sua modernidade eurocentrada.6

A fim de evitar que os direitos humanos sirvam à reatualização das hierarquias culturais e raciais construídas pela modernidade/colonialidade, ao abafar as diferenças culturais, a peculiaridade histórica, a ética e o sistema axiológico próprio de cada povo, Boaventura de Sousa Santos propõe tornar os direitos humanos multi-culturais, o que significa incorporar aos valores hegemônicos as contribuições culturais oriundas dos países da África, da Ásia, da América Latina assim como dos movimentos terceiro mundistas encerrados nas periferias do centro-ocidental. De Souza Santos sugere que abandonemos o "localismo globalizado", que consiste na imposição da cultura hegemônica por meio do discurso dos direitos humanos e propõe o cosmopolitismo, que não se identifica com o reforço da figura do cidadão global, mas corresponde à solidariedade transnacional dos povos e grupos explorados e oprimidos de todo o mundo.7

Admitimos que os direitos humanos, enquanto retórica emancipatória da modernidade, podem ser redefinidos e ressignificados com base na cosmologia, na cosmovisão, na geopolítica e na corporpolítica dos povos colonizados. O conceito de interseccionalidade cunhado por Kimberle Crenshaw é uma importante ferramenta de edificação dessa proposta transformadora, na medida em que permite redesenhar os direitos humanos a partir da perspectiva das mulheres negras, isto é, construí-los de baixo para cima, partindo de suas experiências concretas e saberes.

O paradigma de análise interseccional é produto da percepção de que apesar do aprofundamento da concepção de universalidade dos direitos humanos e da radicalização da ideia de igualdade, proporcionado pela especificação do sujeito de direito; pelo reconhecimento do direito à diferença e à diversidade; pelo desenvolvimento de mecanismos de proteção especial direcionados para certos grupos vulneráveis; e pela proibição da discriminação, certos grupos sociais continuam não contemplados por este estandarte mínimo de proteção universal.

Com efeito, embora a Declaração Universal dos Direitos Humanos assegure a todos a capacidade para gozar dos direitos e liberdades nela estabelecidos sem distinção de sexo8, historicamente, as situações de violação de direitos das mulheres que se delinearam em virtude dessa sua específica condição vinham sendo tratadas como marginais e não recebiam a atenção protetiva desse sistema pretensamente universal, pautado que é pela experiência masculina. Nesse sentido, é esclarecedora a lição de Crenshaw:

[...] apesar da garantia formal, a proteção dos direitos humanos das mulheres foi comprometida à medida que suas experiências poderiam ser definidas como diferentes das dos homens. Assim, quando mulheres eram detidas, torturadas ou lhes eram negados outros direitos civis e políticos, de forma semelhante como acontecia com os homens, tais abusos eram obviamente percebidos como violações dos direitos humanos. Porém, quando mulheres, sob custódia, eram estupradas, espancadas no âmbito doméstico ou quando alguma tradição lhes negava acesso à tomada de decisões, suas diferenças em relações aos homens tornavam tais abusos "periféricos" em se tratando das garantias básicas dos direitos humanos.9

As Convenções de Viena e Beijing, atentas a essas situações, elaboraram claras determinações no sentido da incorporação da perspectiva de gênero (gender mainstreaming),10 o que implica considerar a diferença como fator essencial para a compreensão das dinâmicas de violação, reconhecimento e implementação dos direitos humanos.

No que tange à raça, Crenshaw destaca que a cláusula de não discriminação contida na Declaração Universal dos Direitos Humanos, posteriormente destrinchada e conceitualmente robustecida pela Convenção Internacional para a Eliminação de todas as Formas de Discriminação Racial (1968) não foi suficiente para impedir que apenas algumas experiências de discriminação racial fossem reconhecidas como violações de

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direitos humanos, particularmente aquelas em que o tratamento diferenciado era estabelecido por meio da negativa formal de direitos, a exemplo dos regimes de apartheid. É essa, inclusive, a concepção reproduzida internamente pelo Estado Brasileiro, que

[...] a exemplo de outros, por muito tempo desenvolveu políticas pautadas na crença de que o racismo resumia-se a condutas individuais ou a modelos de condutas legitimadas por políticas de Estado, a exemplo do apartheid na África do Sul, das castas na Índia, das leis segregacionistas nos EUA e do Estado nazista na Alemanha.11

Com efeito, no Brasil, ainda não existem políticas de proteção que impeçam, combatam ou previnam satisfatoriamente o reconhecimento de escalas e intensidades diferentes de direitos em conformidade com a racialização de grupos e sua hierarquização.12

Os exemplos em torno da discriminação de gê-nero e racial revelam que, apesar do aprofundamento da concepção de universalidade dos direitos humanos, mediante o reconhecimento da diferença como instrumento de inclusão e do consequente adensamento da sua compreensão nos aspectos teórico e prático, as práticas hegemônicas de direitos humanos continuam produzindo a marginalização das mulheres e negros em determinadas situações. Isso ocorre seja porque estão assentadas em uma perspectiva unidimensional, branca e androcêntrica, seja porque pressupõem a manipulação de categorias homogêneas e mutuamente excludentes, ou ainda em virtude de uma construção verticalizada, constituída de cima para baixo.

Todavia, a situação de desproteção legal se agrava no caso de grupos atingidos simultaneamente por múltiplos eixos produtores de discriminação, a exemplo de gênero, classe e raça, como é o caso das mulheres negras. Nesses casos, o conceito de interseccionalidade se torna extremamente operativo. Deve-se salientar, contudo, que Crenshaw não concentra a sua crítica nos direitos formalmente assegurados, nem advoga a reformulação de princípios jurídicos básicos como forma de garantir direitos de grupos afetados pelo que ela denomina de discriminação interseccional. Diferentemente, pretende o desenvolvimento, a partir da interseccionalidade, de um protocolo interpretativo que reconfigure as leituras - para dar visibilidade a situações de desproteção legal costumeiramente invisibilizadas - e as práticas de direitos humanos atualmente vigentes.

O termo interseccionalidade foi primeiramente empregado por Kimberle Crenshaw em 1989, quando abordou problemas relacionados ao acesso das mulheres negras ao mercado de trabalho nos Estados Unidos. Ela explica:

A interseccionalidade é uma conceituação do problema que busca capturar as consequências estruturais e dinâmicas da interação entre dois ou mais eixos da subordinação. Ela trata especificamente da forma pela qual o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, crianças, raças, classes e outras. Além disso, a interseccionalidade trata da forma como ações e políticas específicas geram opressões que fluem ao longo de tais eixos, constituindo aspectos dinâmicos ou ativos do desempoderamento.13

Crenshaw representa esses sistemas discriminatórios por meio de ruas pelas quais transita, por exemplo, uma mulher negra. Essa mulher...

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