Direitos humanos, saúde mental e arteterapia: efetivação de uma nova práxis

AutorLuann Silveira Santos
Páginas495-508

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Apresentação

O presente artigo tem como objetivo trazer à tona a discussão sobre marcos políticos e legais da saúde mental no Brasil. Além disso, pretende elucidar a arteterapia como forma de tratamento de pessoas com deficiência mental, traçando perfil histórico da loucura, desde seu caráter alegórico e mítico até explanações científicas. Procura, sobretudo, reafirmar os princípios da Reforma Psiquiátrica, que luta pela construção de um novo estatuto social para o doente mental que lhe garanta cidadania, o respeito a seus direitos e sua individualidade.

1 Introdução

De acordo com Bezerra Jr.1, do ponto de vista da loucura como doença e da psiquiatria como especialidade médica, é extremamente contemporânea tal concepção na história da humanidade - em torno de 200 anos. A partir do século XVIII é que o homem idealizou uma nova maneira de se perceber, uma nova maneira de vivenciar a condição humana.

Há tempos as pessoas que se esquivavam dos arquétipos da "normali-dade" eram destacadas como insanas e passaram por longos períodos de segregação em hospitais psiquiátricos e manicômios, pois eram conside-

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radas incapazes de viver no meio social; não existia um olhar voltado para a reinserção social. Somente com a Reforma Psiquiátrica, cujo objetivo é construir um novo estatuto social para o doente mental que lhe garanta cidadania, respeito a seus direitos e sua individualidade, humanizando e dando sentido terapêutico para os hospitais gerais e, além disso, promovendo sua ressocialização, é que foi possível repensar a forma que a pessoa com deficiência mental era tratada.

A partir de tal reforma nasceram novas formas de intervenção e tratamento utilizadas pelos profissionais da saúde mental, facilitando, assim, a abertura de um espaço para os "loucos" na sociedade, dando um maior respeito à sua individualidade e a busca de novos sentidos para sua vida.

De acordo com Stone2, o contexto histórico influenciou as concepções sobre normalidade e anormalidade, assim como as formas de lidar com a loucura. Até o início do estudo dos quadros de insanidade ser incluído no campo da medicina há cerca de 2500 anos na Grécia, existiam apenas alusões à loucura como comportamentos estranhos, personalidades incomuns ou desagradáveis e mesmo possessões demoníacas, de modo que, durante a Idade Média, as pessoas consideradas loucas eram queimadas na fogueira, acreditando-se que a loucura era de uma natureza espiritual que desapropriava o indivíduo da razão.

No entanto, o mesmo autor relata que, em outros contextos sociais e históricos, havia ideias de que o louco possuía seu dito comprometimento mental decorrente de períodos cíclicos ou fases da natureza, incluindo estações do ano e fases da Lua (o que explica o surgimento da expressão "lunático").

Para Baumgart3, nota-se que "a partir de todos estos ejemplos se ve cómo la patología asume formas fenoménicas diversas de acuerdo a una determinada sociedad, determinados órdenes etnográfico e histórico".

No final da Idade Média e início do período neoclássico ou renascentista, quando a lepra passa a não mais figurar como causa biológica de impacto social de segregação, exclusão e banimento, o espaço de segregação social volta-se para a loucura, de forma que o doente mental era retirado da convivência social por acreditarem que a mesma era inviável para ele.

Na Renascença, ocorreu a volta dos valores humanistas greco-romanos e o retorno das questões sobre as origens e causalidades dos fenômenos mentais, surgindo, assim, os primeiros asilos.

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O surgimento dos asilos, por volta do século XV e XVI, no entanto, não se restringiu à internação apenas dos considerados doentes mentais, assumindo a função de defender e afastar da sociedade todas as pessoas que fossem incômodas, impondo, por intermédio desses locais, sistemas de restrições e limites de forma mais incisiva. O controle social sobre as expressões e manifestações sociais tidas como desviantes era retomada, então, por meio destas instituições, assumindo o papel de segregação e exclusão.

A não razão do século XVI constituía uma espécie de ameaça aberta cujos perigos podiam sempre, pelo menos de direito, compro-meter as relações de subjetividade e da verdade. O percurso da dúvida cartesiana parece testemunhar que no século XVII esse perigo está conjurado e que a loucura foi colocada fora do domínio no qual o sujeito detém seus direitos à verdade: domínio este que, para o pensamento clássico, é a própria razão. Doravante, a loucura está exilada.4A loucura sempre existiu, bem como o lugar para se tratar dos loucos: templos, domicílios e instituições, mas a instituição psiquiátrica, propriamente dita, é uma construção do século XVIII, conforme afirma Bezerra Jr5.

Desde então, ainda segundo Stone6, promoveram um processo de humanização no sistema psiquiátrico, que até então se resumia ao depósito dos loucos. Revolucionou-se a filosofia do atendimento asilar, quebrando algemas e cadeados, saneando a imundície das celas. Devolveu-se o sentimento de identidade aos doentes mentais.

2 Marcos políticos e legislação

No Brasil, somente após o processo de democratização, iniciado em 1985, é que se verifica que as principais legislações de proteção dos direitos humanos começaram a surgir e serem aprovados. A superação do modelo manicomial encontra eco nas políticas de saúde do Brasil, que apresentaram

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marco teórico e político na 8ª Conferência Nacional de Saúde (1986), na 1ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1987), na 2ª Conferência Nacional de Saúde Mental (1992), que culminou na 3ª Conferência Nacional de Saúde Mental (2001).

Realizou-se, no ano de 1990, a Conferência Regional para a Reestruturação da Assistência Psiquiátrica em Caracas, Venezuela. Nesta conferência, foram estabelecidos princípios que nortearam uma nova forma de tratamento de pessoas com deficiência mental, com o intuito de não mais utilizar o modelo hospitalocêntrico e centralizador para tratamento de pacientes com transtornos mentais.

Conforme a "Declaração de Caracas", o hospital psiquiátrico como uma única modalidade assistencial, dificulta a consecução dos objetivos por provocar o isolamento do paciente de seu meio, gerando dessa maneira maior incapacidade para o convívio social, criar condições desfavoráveis que põem em perigo os direitos humanos e civis do paciente, Absorve a maior parte dos recursos financeiros e humanos destinados pelos países aos serviços de saúde mental, fomenta um ensino insuficientemente vinculado às necessidades de saúde mental das populações, dos serviços de saúde e outros setores7.

Já em 2005, foi retomada a Declaração de Caracas, momento este em que a declaração é tomada sob a forma de documento denominado como "Princípios Orientadores para o Desenvolvimento da Atenção em Saúde Mental nas Américas", com a perspectiva de verificar os possíveis avanços por meio de uma avaliação dos resultados obtidos desde então.

No Brasil, em 1989, foi apresentado o Projeto de Lei nº 3.657/898 pelo Deputado Paulo Delgado, que tramitou por mais de dez anos pelo Congresso Nacional até sua aprovação, que se deu somente em 6 de abril de 2001, originando-se a Lei nº 10.2169. Tal legislação, em seu art. 1º,

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garante que "os direitos e a proteção das pessoas acometidas de transtorno mental, de que trata esta Lei, são assegurados sem qualquer forma de discriminação quanto à raça, cor, sexo, orientação sexual, religião, opção política, nacionalidade, idade, família, recursos econômicos e ao grau de gravidade ou tempo de evolução de seu transtorno, ou qualquer outra".

Nesse contexto, a Lei nº 10.216/01, no parágrafo único do art. 2º, arrola os direitos da pessoa portadora de transtorno mental, in verbis:

Parágrafo único. São direitos da pessoa portadora de transtorno mental:

I - ter acesso ao melhor tratamento do sistema de saúde, consentâneo às suas necessidades;

II - ser tratada com humanidade e respeito e no interesse exclusivo de beneficiar sua saúde, visando alcançar sua recuperação pela inserção na família, no trabalho e na comunidade;

III - ser protegida contra qualquer forma de abuso e exploração;

IV - ter garantia de sigilo nas informações prestadas;

V - ter direito à presença médica, em qualquer tempo, para esclarecer a necessi-dade ou não de sua hospitalização involuntária;

VI - ter livre acesso aos meios de comunicação disponíveis;

VII - receber o maior número de informações a respeito de sua doença e de seu tratamento;

VIII - ser tratada em ambiente terapêutico pelos meios menos invasivos possíveis;

IX - ser tratada, preferencialmente, em serviços comunitários de saúde mental.

Nesse passo, visando assegurar o respeito à dignidade das pessoas portadoras de transtornos mentais, a Lei nº 10.216/01 disciplina os atendimentos em saúde mental, notadamente as modalidades e as hipóteses de cabimento da internação, sendo digno de nota destacar o disposto nos arts. 4º a 11, in verbis:

Art. 4º A internação, em qualquer de suas modalidades, só será indicada quando os recursos extra-hospitalares se mostrarem insuficientes.

§ 1º O tratamento...

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