Direitos individuais e coletivos

AutorEduardo dos Santos
Páginas267-374
CAPÍTULO X
DIREITOS INDIVIDUAIS E COLETIVOS
1. DIREITOS E GARANTIAS
O Título II, da Constituição brasileira de 1988, é nomeado de “Dos Direitos e Garantias
Fundamentais”. Em razão disso, parte da doutrina diferencia direitos e garantias af‌irmando
que as garantias fundamentais são mecanismos jurídicos que visam assegurar os direitos
fundamentais, de modo que as garantias existem em razão dos direitos, sendo instrumentos
que buscam protegê-los e efetivá-los. Assim, seriam garantias fundamentais as ações constitu-
cionais, como habeas corpus, habeas data, mandado de segurança, mandado de injunção, ação
popular, ação civil pública, as normas jusfundamentais processuais, como o devido processo
legal, o contraditório, a ampla defesa, a inadmissibilidade de provas ilícitas, a motivação
e a publicidade dos atos judiciais etc., as normas jusfundamentais relacionadas à segurança
jurídica, como as que resguardam a legalidade, o direito adquirido, o ato jurídico perfeito e
a coisa julgada, bem como as normas jusfundamentais penais, como a proibição de pena de
morte e a individualização da pena.
Nada obstante, deve-se registrar que essa diferenciação é bastante frágil, sendo, muitas
vezes, difícil dissociar um direito de sua garantia ou mesmo identif‌icar se uma determinada
norma é um direito ou uma garantia, além de algumas normas assumirem tanto a natureza de
direito como de garantia à luz dessa classif‌icação, como o devido processo legal, por exemplo.
2. DIREITOS INDIVIDUAIS E DIREITOS TRANSINDIVIDUAIS (DIFUSOS E
COLETIVOS)
A Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, no capítulo I, de se título II,
dispõe especif‌icamente sobre os “Direitos e Deveres Individuais e Coletivos” que, obviamente,
não se esgotam apenas no referido capítulo, por força da cláusula de abertura constitucional
aos direitos fundamentais atípicos, prevista no § 2º, do art. 5º, da CF/88. Assim, o extenso
rol apresentado em seu art. 5º, que possui setenta e oito incisos, é meramente exemplif‌icativo
(não taxativo), conforme estudamos quando examinamos a cláusula de abertura material
dos direitos fundamentais e os direitos fundamentais atípicos.
Retomando algumas considerações que f‌izemos ao estudar a teoria geral dos direitos
fundamentais, pode-se dizer que os direitos individuais, ligados especialmente à primeira
geração dos direitos fundamentais, são aqueles que são titularizados pelo indivíduo consi-
derado de maneira isolada, isto é, são direitos que uma pessoa é capaz de titularizar sozinha,
como a vida, a integridade física, a liberdade, a privacidade etc. Ademais, segundo a doutrina,
há ainda direitos individuais de expressão coletiva, direitos titularizados por cada pessoa
individualmente considerada, mas que só podem ser exercidos de forma coletiva, como o
direito de reunião e o direito de associação, por exemplo.
Já os direitos coletivos, ligados especialmente à terceira geração dos direitos fundamen-
tais, são os direitos transindividuais, sejam eles difusos ou coletivos, isto é, aqueles que são
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titularizados concomitantemente por mais de uma pessoa, transpondo a individualidade. Nos
termos da def‌inição legal, os direitos difusos são os transindividuais, de natureza indivisível,
de que sejam titulares pessoas indeterminadas e ligadas por circunstâncias de fato, enquanto os
direitos coletivos são os transindividuais, de natureza indivisível de que seja titular grupo, cate-
goria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica base.
3. DIREITO À VIDA
Não é tarefa do direito def‌inir os contornos da vida ou da existência, sem dúvida não são
os juristas os prof‌issionais mais preparados para dizer quando um indivíduo ou organismo
está vivo ou morto. Contudo, com base nos estudos científ‌icos, nas práticas e conceitos
médicos e biológicos, em razão dos mais variados casos que chegam à apreciação do Poder
Judiciário, o direito tem buscado dar contornos a um conceito de vida, ainda que não se possa
fazê-lo de forma pacíf‌ica e def‌initiva. Assim, para f‌ins de proteção constitucional, o conceito
de vida refere-se à existência física e biológica da pessoa humana, podendo-se dizer que o
direito à vida é o direito do indivíduo humano de viver, em sentido físico e biológico, sendo
incabíveis quaisquer distinções sociais, raciais, morais, religiosas ou políticas, como já viven-
ciamos em outros tempos, como durante o regime nazista e os séculos de escravidão negra.1
De forma clássica, a doutrina af‌irma que o direito à vida possui uma dimensão negativa
e uma dimensão positiva. Em sua dimensão negativa, consiste no direito de sobrevivência, no
direito de permanecer vivo, sendo um direito de defesa a exigir que o Estado e os particulares
não intervenham no seu âmbito de proteção. Com essa dimensão relacionam-se a proibição
da pena de morte (art. 5º, XLII, “a”, CF/88), a proibição da tortura e de tratamentos desuma-
nos ou degradantes (art. 5º, III, CF/88) e quaisquer outras condutas que possam minguar
a vida do indivíduo. Em sua dimensão positiva, consiste no direito à vida digna, exigindo
que o Estado e a sociedade assegurem a todos os indivíduos o acesso a bens fundamentais
e a condições minimamente dignas de vida, bem como que o Estado adote medidas para
proteger a vida humana, por exemplo, criminalizando o homicídio.
3.1 O direito à vida pode ser restringido?
Como vimos, os direitos fundamentais caracterizam-se por serem direitos relativos,
o que deriva do princípio da unidade da Constituição, pelo qual se reconhece que não há
hierarquia entre direitos constitucionais, de modo que não é possível falar em direitos funda-
mentais absolutos, vez que um direito fundamental sempre pode sofrer limitações/restrições
1. SARLET, Ingo Wolfgang; et al. Curso de Direito Constitucional. 3 ed. São Paulo: RT, 2014, p. 366.
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por outros direitos tão fundamentais quanto ele, desde que essas restrições sejam realizadas
por normas constitucionais (restrições diretamente constitucionais) ou com fundamento
em normas constitucionais (restrições indiretamente constitucionais).
Assim, o direito à vida pode e sofre restrições sejam restrições diretamente constitu-
cionais (há previsão de pena de morte em caso de guerra declarada, nos termos do art. 5º,
XLVII, “a”, da CF/88) ou restrições indiretamente constitucionais, como no caso de alguém
que mate uma pessoa em legítima defesa de sua vida (direito à vida de Fulano restringido
pelo direito à vida e pelo direito de defesa de Beltrano) ou mesmo de seu patrimônio (direito
à vida de Fulano restringido pelo direito à propriedade e pelo direito de defesa de Beltrano),
nos termos dos arts. 23, II, e 25, do Código Penal.
3.2 O feto possui direito a vida?
Antes de respondermos se o feto tem direito fundamental à vida é preciso saber se o feto
pode ser titular de direitos. Essa é uma pergunta que tem sido objeto de grandes discussões
no direito civil, pois, segundo o art. 2º, do Código Civil de 2002, “a personalidade civil da
pessoa começa do nascimento com vida; mas a lei põe a salvo, desde a concepção, os direitos do
nascituro”, texto quase idêntico ao do art. 4º, do Código Civil de 1916.
Em apertada síntese pode-se dizer que os civilistas se dividem em três correntes teóricas
acerca da situação do nascituro: a) teoria natalista, segundo a qual o nascituro não pode
ser considerado pessoa, não possuindo direitos, mas tendo mera expectativa de direitos;
b) teoria da personalidade condicionada, segundo a qual a personalidade civil da pessoa
começa com o nascimento com vida; sendo que os nascituros possuem direitos potenciais e
eventuais sujeitos a condição suspensiva (nascimento com vida daquele que foi concebido);
c) teoria concepcionista, segundo a qual o nascituro é pessoa humana, possuindo direitos
desde a sua concepção.2
Para além da grande divergência entre os civilistas, parece-nos que a teoria natalista
não é adequada, pois desconsidera a humanidade potencial e relacional do feto humano,
enquanto a teoria concepcionista, em que pese reconhecida em alguns julgados do STJ, parece
remeter à Idade Média e apresenta-se como uma grande muralha teórica contra os direitos
da mulher, colocando o feto como um super-sujeito de direitos (sacralidade do feto) cujos
direitos estariam acima dos direitos de outros sujeitos, especialmente, os da mulher grávida.
Assim, a nosso ver, a teoria mais adequada à proteção séria do feto, seja no âmbito do
direito civil, seja no âmbito do direito constitucional, é a teoria da personalidade condicio-
nada, atribuindo-se personalidade civil à pessoa a partir do seu nascimento com vida, af‌inal
como seria possível possuir personalidade sem sequer ter-se vivido/existido, ainda que por
um milésimo de segundo? Ademais, essa teoria não ignora a potencialidade humana que
existe no feto, assegurando e protegendo seus direitos potenciais (direitos da personalidade)
e eventuais (patrimoniais) que f‌icam sujeitos à condição suspensiva do nascimento com
vida, isto é, à aquisição da personalidade civil. Além disso, essa teoria fundamenta-se no
princípio fundamental da dignidade da pessoa humana, contemplando a dignidade da vida
humana em potencial e compatibilizando a dignidade do feto com a dignidade dos demais
indivíduos dentro das mais complexas relações e situações da vida.3
2. TARTUCE, Flávio. Manual de Direito Civil. 6 ed. São Paulo: Método, 2016, p. 75 e ss.
3. Conforme vimos quando tratamos do princípio da dignidade da pessoa humana, a partir das lições de Jürgen Habermas,
pode-se sustentar que a vida humana, ou mesmo a potencial vida humana, possuí uma dignidade em si mesma. Deste
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