Os direitos intelectuais do arquiteto

AutorJosé Roberto Fernandes Castilho
Páginas185-218

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La arquitectura es lo que queda cuando se retira la piedra.

Michelangelo1

I Introdução

A obra arquitetônica é, por definição, obra plástica consubstanciada em forma durável que se insere, em caráter permanente, no espaço urbano que ela modifica. Construção não significa edificação (como vimos no Cap. 2) que não significa Arquitetura: é somente sobre a forma plástica em que esta se manifesta que incidem certos direitos de caráter intelectual ao arquiteto. Porém, a partir de um critério procedimental, pode-se dizer que há artes de realização simultânea (ou quase) à concepção, como ocorre com a poesia ou a música e, de outro lado, artes que se realizam sucessivamente, como a Arquitetura e a escultura – artes do espaço cuja concretude é precedida pelo desenho. Nestas últimas, as duas etapas referidas (criação e realização) separamse, afastam-se no tempo, demandando meios técnicos específicos e muitas vezes complexos e onerosos, com a intervenção operativa de

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outros agentes – o que, no entanto, não chega a afetar os direitos do criador intelectual.

Assim, no campo da realização artística, cumpre observar que a obra arquitetônica ou urbanística está “imersa em ação” (como dito por Platão) e não se materializa instantaneamente, ou quase instantaneamente, como a obra musical (uma canção), por exemplo, ou mesmo a obra literária (um poema). Dado este fato importante, analisaremos no presente texto certos direitos intelectuais específicos do profissional da Arquitetura, notadamente os que têm por fundamento o possível descompasso entre projeto e obra – ou entre Arquitetura e construção –, o que caracterizará claro ato ilícito, que o Direito condena. A partir deles, pode-se concluir acerca da existência de um subsistema de proteção dos direitos intelectuais do autor-arquiteto.

O projeto, como téchne, gera um movimento transiente (trans-ire, passar além), que se aperfeiçoa na edificação dele resultante; a obra é materialização do projeto. Em outras palavras, o projeto é a antevisão ou prefiguração da obra mas é certo que a edificação propriamente dita demanda processo complexo de transformação da forma em matéria, da concepção intangível em bem tangível, da coisa mental em concretude2. Este processo se perfaz no longo prazo, mediante consecução de várias etapas, podendo encontrar problemas específicos de realização (intercorrências) pelos vários “agentes da edificação” envolvidos. Portanto, entre a concepção intelectual da edificação e, ao depois, sua construção, costumam ocorrer diversos fatores que podem interferir na própria criação arquitetônica ou urbanística primitiva, adulterando -a. É exatamente para garantir a integridade da criação aquando de sua transitivação, isto é, de sua inserção no mundo real a partir da “coisa mental”, que se apresentam os direitos dos quais trataremos. O art. 24/V da Lei nº 9.610/98 é claro ao estabelecer como direito moral de autor “o de modificar a obra, antes ou depois de utilizada” (destaquei),

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o que decorre da anterior declaração constitucional3. Só o titular dos direitos autorais poderá fazer isso: outras pessoas, mesmo o dono da edificação, por exclusão não podem.

Então, dado aquele possível desajuste projeto/obra, tais direitos são, antes, direitos de proteção da criação e do criador intelectual no campo da Arquitetura (ars factiva), para evitar que seja concebida uma edificação e seja realizada outra, fato que atentaria contra os direitos autorais do arquiteto, trazendo-lhe prejuízos. Não por outro motivo, o Código de Ética recomenda que o profissional deve “defender e divulgar a legislação referente ao Direito Autoral” em suas atividades (item 5.3.1). A defesa dos direitos intelectuais implica a punição daqueles que a violam.

Na verdade, algumas legislações chegam a punir penalmente a modificação do projeto devidamente aprovado pela autoridade, durante a execução da obra. É o caso do Código Penal alemão de 1871 que estabelecia a seguinte contravenção: submete-se à pena de multa “quem, como construtor, arquiteto ou operário de construção, executa ou deixa de executar uma obra ou conserto, para o qual é necessária aprovação da polícia, sem esta aprovação ou com arbitrária modificação da planta aprovada pela autoridade” (art. 367/XV, destaquei). Isto continua a ser previsto em outros ordenamentos urbanísticos, como o francês. Neste caso, o que se protege diretamente é o ato da autoridade pública que aprovou o projeto posto ser a licença um “ato em branco” (a licença remete ao projeto). Porém, é evidente que a alteração de elementos projetuais, por si só, já constitui fato irregular violando tanto o direito do arquiteto autor do projeto (e só o projeto arquitetônico ou urbanístico ou esboço gera direitos, não o mero croquis apócrifo) quanto a licença da autoridade, que incidiu sobre uma proposta específica que lhe foi submetida à apreciação e controle.

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II Estrutura dos direitos de autor

Os direitos de proteção da obra intelectual inserem-se no campo dos Direitos Autorais, que constitui ramo do Direito Civil, como ensina a doutrina tradicional4, ou “ramo especial” do Direito, por suas particularidades, como pretendem outros, com entendimento divergente. Há, de fato, peculiaridades que os singularizam. Os direitos autorais são direitos híbridos porque têm duas faces: (a) os direitos morais de autor que criam vínculos inalienáveis e irrenunciáveis entre autor e obra, com várias dimensões (art. 24 da lei autoral); e (b) os direitos patrimoniais de autor, ou seja, de explorar economicamente a obra, como pretender o seu titular (art. 28 da mesma lei de 1998). Se os primeiros são direitos personalíssimos, extrapatrimoniais, apenas estes últimos estão no mercado e são transmissíveis, onerosamente ou não, por prazo certo ou indeterminado.

O titular dos direitos autorais, portanto, pode ser o próprio criador ou não: em se tratando de obra pública, por exemplo, a lei exige expressamente a cessão dos direitos patrimoniais ao Estado como condição de recebimento do projeto (art. 111 da Lei nº 8.666/93, que é a lei de licitações e contratos). O projeto arquitetônico de uma escola pública – como o dos Centros Integrados de Educação Pública – CIEPs (de Niemeyer, replicado em mais de 500 unidades), por exemplo –, pode assim ser reproduzido tantas vezes quantas o Poder Público pretenda – já que ele se torna titular do projeto. Mas entendase: titular dos direitos patrimoniais referentes ao projeto.

Por envolver aspectos técnicos, estruturais e artísticos, as normas referentes a tais direitos de proteção da criação intelectual situam-se seja na nossa lei autoral geral (Lei nº 9.610/98), seja na lei que disciplina hoje a profissão de arquiteto (Lei nº 12.378/10, Dos Acervos Técnicos), como veremos. Não há um corpo sistematizado de normas

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porque se trata de tema transversal. Tanto é certo que a fonte norma-tiva é dupla que os direitos se interpenetram na exata dimensão de sua dinâmica, que pretendemos aqui sistematizar.

Para ser protegida, a criação arquitetônica não precisa de regis-tro formal algum mas deve ter o requisito essencial da originalidade. Portanto, a criação original no campo da Arquitetura é que gera, de imediato, surgidos dela própria, direitos autorais para o seu criador, independente de registro em qualquer órgão porquanto a criação cultural é considerada emanação da personalidade do artista. É o princípio da proteção automática. O registro da obra projetual original – ao contrário do que ocorre com a patente de invenção (e, em geral, a propriedade industrial)5– é facultativo, apenas facilitando a comprovação da autoria. Se pretender registrar a criação para melhor salvaguarda dos seus direitos, o arquiteto pode fazê-lo, atualmente, no CONFEA (cf. Resolução nº 1.029, de 17 de dezembro de 2010). Mas é certo que o CAU/BR deveria disciplinar novamente o assunto com base no art. 13 da Lei nº 12.378/10, o que ocorreu efetivamente em dezembro de 2013 com a Resolução 67/13 (que, em larga medida, reproduz desnecessariamente a lei geral, norma cogente). De outra parte, os direitos autorais são direitos relativos ao trabalho original de profissional da Arquitetura porque é exatamente a “intenção plástica” que, no dizer de Lucio Costa, distingue aquela arte da simples construção, expressão da pura técnica com intuito meramente funcional6. Esta última é a que se vê nos conhecidos “caixotes” ou “paralelepípedos” de concreto e vidro, opções formais simplistas de criatividade quase nula – agora chamados, num eufemismo, de “arquitetura conformista”7.

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Base da Arquitetura entendida como Arte (e Arte integrada com o contexto), o pressuposto da originalidade é bastante polêmico e precisa ser bem compreendido. Obra original é obra inconfundível com outra, nada obstante siga os princípios de certo estilo (não importa qual seja ele), repertório formal de determinada época. Envolve criação, imaginação criadora, um salto para além dos dados imediatos da realidade, quais sejam, o lote, a zona em que situa, o programa, etc. – e não guarda relação com o mérito da criação, se positivo ou negativo (o que é tema da crítica). Mas originalidade, como um quid novi, não quer dizer total e absoluta novidade que cause admiração e espanto, o que exigiria que cada arquiteto tivesse a mesma genialidade de um Oscar Niemeyer ou Paulo Mendes da Rocha, por exemplo.

Como registrou o TJSP em acórdão antigo, “originalidade absoluta, sem modelos ou inspirações, é atributo exclusivo do Primeiro Artista, do qual os homens, mesmo os privilegiados de talento, não refletem senão em tosca imagem, a semelhança” (Ap. Cível 133.196). Tal não ocorre. Mesmo a obra escassamente...

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