Direitos Parcelados: Trajetória da Legislação do Emprego Doméstico no Brasil

AutorCristina Pereira Vieceli, Julia Giles Wünsch, Priscila de Freitas e Tábata Silveira dos Santos
Páginas116-133

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Introdução

Como vimos nos capítulos anteriores, o emprego doméstico é um tema interseccional, permeado por questões de gênero, raça e classe, tendo em vista a trajetória e as características socioeconômicas dos seus sujeitos. Numa perspectiva constitucional, sobretudo com base no disposto nos arts. , e , caput, da Constituição Federal1, que estabelecem os princípios sobre os quais se estruturam todo o ordenamento jurídico pátrio, tais como os fundamentos da dignidade da pessoa humana, da cidadania, da igualdade, dos valores sociais do trabalho e do direito a não discriminação, percebemos que a equiparação dos direitos das empregadas domésticas aos dos demais trabalhadores é uma questão pertinente ao fortalecimento do Estado Democrático de Direito.

As iniciativas para regulamentar o emprego doméstico no Brasil ocorrem desde os anos que sucederam a abolição da escravidão e deram origem à formação da classe trabalhadora livre

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no país. As primeiras formas de regulamentação apareceram em nível regional por meio de códigos de posturas direcionados antes ao controle das empregadas do que à sua proteção. No âmbito nacional, a Lei n. 5.859, de 11 de dezembro de 1972, foi a primeira que tratou exclusivamente sobre as empregadas domésticas. Após, foram garantidos outros direitos dentro da Constituição Federal de 1988, logrando avanços principalmente nos anos 2000. Em 1º de junho de 2015, foi promulgada a Lei Complementar n. 150, conhecida como Lei das Domésticas, substituindo a antiga regulamentação jurídica de 1972.

Os direitos das empregadas domésticas foram conquistados de forma paulatina e restrita. Isto ocorreu inclusive em momentos marcantes no desenvolvimento da legislação trabalhista em nível nacional: tanto na promulgação da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) de 1943, cujo texto exclui expressamente as empregadas domésticas, quanto na Constituição Nacional de 1988, que assegura às domésticas somente alguns dos direitos garantidos às demais categorias. Mesmo em 2015, com a sanção da Lei das Domésticas, os direitos das empregadas ainda não se equipararam aos das demais trabalhadoras.

O presente capítulo objetiva analisar criticamente a trajetória da legislação concernente ao emprego doméstico no Brasil e identiicar as principais características da atual lei vigente desde 2015, buscando identiicar padrões comuns de tratamento que permanecem atualmente. Para tanto, está dividido em duas seções, além desta introdução. A primeira seção propõe-se a apresentar um histórico da trajetória da legislação do trabalho doméstico, buscando analisar as seguintes questões: por que o trabalho doméstico passou a ser regulamentado no Brasil? É possível identiicar um padrão no tratamento do trabalho doméstico por parte do Estado brasileiro ao longo da história? Na segunda seção, fazemos uma análise crítica da lei de 2015, apontando as principais mudanças e conquistas da categoria, bem como identiicando a permanência tanto da parcialidade dos direitos conquistados como das motivações para tanto.

Resgate das origens da regulamentação do emprego doméstico no Brasil

As primeiras normas jurídicas sobre o emprego doméstico no Brasil são anteriores à abolição da escravidão. Segundo Sbravati (2015), as Ordenações Filipinas Portuguesas2 de 1603 já tratavam sobre os trabalhos desempenhados no âmbito doméstico, embora sob a denominação de serviços realizados por um criado-aquele que vive com o senhor (ORDENAÇÕES FILIPINAS, 1603, p. 807).

No Livro IV das Ordenações Filipinas, o Título XXIX dispõe acerca da relação Do Criado que vive com o senhor a bem fazer e como se lhe pagará o serviço:

Posto que algum homem ou mulher viva com senhor, ou amo, de qualquer qualidade que seja, a bem fazer sem avença de certo preço; ou quantidade, ou outra cousa, que haja de haver por seu serviço contentando-se do que o senhor, ou amo, lhe quiser dar, será o amo e senhor obrigado a lhe pagar o serviço, que fez, havendo respeito ao tempo, que servio, e à qualidade do criado

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e do serviço. Porém, se entre elles houver contracto feito sobre o serviço, cumprir-se-ha o que entre elles fòr tractado, como fòr direito.

As Ordenações Filipinas exerceram grande inluência nas regulamentações brasileiras posteriores (MACIEL, 2006). No entanto, por ser um sistema jurídico elaborado inicialmente na Espanha no século XVI, não condiziam com a realidade da sociedade brasileira da época, já que grande parte dos trabalhadores vivia sob o regime de escravidão.

A partir do século XIX, com o crescimento da força de trabalho livre no país, o emprego doméstico passou a ser regulamentado pelos Códigos de Posturas Municipais, os quais, em atenção ao que estipulou o art. 71 da Constituição promulgada em 1828, reuniam normas que tratavam sobre aspectos gerais de convivência na sociedade. As posturas foram adotadas por diversos municípios brasileiros. As primeiras regulamentações, encontradas no estado do Piauí, previam matrícula junto às autoridades municipais e carteira de trabalho, e estabeleciam direitos e obrigações (BERNARDINO-COSTA, 2007). Foram encontrados, também, registros em municípios do Rio Grande do Sul e do Rio de Janeiro, bem como em Salvador e em São Paulo. Em geral, as normas deiniam a obrigatoriedade de matrículas em livros e o registro da conduta dos criados e criadas em cadernetas (TELLES, 2013).

Em relação ao município de São Paulo, segundo Telles (2013), as posturas deiniam a obrigatoriedade do registro das empregadas domésticas, contendo nome, idade, sexo, naturalidade, iliação, cor, estado civil, classe de ocupação e outras características que o empregador julgasse importante para a prova da identidade do empregado. Além disso, as posturas exigiam o registro das condutas das empregadas, bem como do seu estado de saúde, como referência dos empregados aos futuros patrões, que poderiam se "precaver" acerca de quem estariam "colocando no convívio da família".

De forma geral, pode-se airmar que os códigos visavam mais à proteção dos empregadores e ao controle das empregadas do que propriamente à sua segurança, incorrendo em penas de multas para os empregadores e detenção às empregadas que não cumprissem as regulamentações. Além disso, possuíam normas especíicas de controle higienista, especialmente para as amas de leite, que deveriam fazer exames médicos admissionais e periódicos.

Entre as normas que regulamentavam o emprego doméstico no município de São Paulo, estão, ainda, a obrigatoriedade do registro em livro pelo patrão, que incorria em multa caso não o izesse, e a aplicação de multa para os patrões que induzissem as criadas a "práticas fora dos bons costumes" que desrespeitassem a sua "honra". Essas normas revelavam uma tentativa de abolir práticas usuais do tempo da escravidão. Ao regularem o trabalho livre, também serviam para o controle da conduta e da moralidade das empregadas, estabelecendo como justas causas para demissão a embriaguez habitual, as saídas da casa do patrão para passeio ou negócio sem a sua licença, a gravidez da empregada solteira, entre outras. As normas também deiniam penalidades às empregadas domésticas: a mais grave era atribuída as que abandonassem as casas sem o aviso-prévio de oito dias, caso este em que deveriam pagar multa de 30 mil réis e oito dias de prisão (TELLES, 2013).

No município de Porto Alegre, as empregadas domésticas eram obrigadas a se cadastrar na Secretaria da Câmara Municipal. Toda relação de trabalho doméstico deveria ser documentada nas cadernetas fornecidas pelo município. Também estava prevista, no Código de Postura de

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Porto Alegre, a obrigatoriedade de aviso-prévio dos contratantes para demitir (com antecipação de dez dias), salvo em situações de justa causa, que eram estas: "uma enfermidade, embriagues, falta de respeito ou ócio e negligência". Para os contratados, previa-se uma antecipação de três dias para sua despedida, salvo motivo de enfermidade ou maus tratos (AHPA, 1888).

As posturas demonstram o quanto o poder político estava comprometido em controlar a população mais pobre com o intuito de formar uma sociedade burguesa dentro dos padrões europeus. Foram, todavia, normas de difícil implementação. Segundo Telles (2013, p. 133),

As posturas emergiam no processo de consolidação e de organização da hegemonia social da burguesia cafeeira, que impunha seu modo de vida e seus valores numa complexa estrutura normalizadora. As elites da capital projetavam em lei seus sonhos de transformação social, penetrados pelo ideal europeu de civilização e de progresso, procurando disciplinar e administrar as relações de trabalho mediante a formulação de normas rígidas e leis policialescas que diicilmente se aplicariam à realidade. Os registros nos livros apontam para a grande diiculdade dos patrões em adequar os agentes livres do serviço doméstico às suas necessidades e expectativas. Indicam também que os trabalhos de alimentação, limpeza da casa, cuidado de crianças, lavagem, costura e engoma das roupas constituíam os alicerces do mundo social e político das elites e classes médias e urbanas.

Em 1916, foi promulgado o primeiro Código Civil da República, que, embora não regulamentasse o trabalho doméstico de modo especíico, tratou sobre a prestação de serviços em geral, estabelecendo normas nacionais antes sob competência municipal. Essas normas, assim como os Códigos de Posturas Municipais...

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