A nova diretiva sobre direitos dos consumidores

AutorJorge Pegado Liz
CargoAdvogado. Membro do CESE (Bruxelas)
Páginas185-226

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1. Alguns antecedentes remotos e próximos da diretiva para ajudar à sua compreensão

1.1. A Diretiva 2011/83/UE, de 25 de outubro de 2011, foi publicada no J O L 304 de 22 de novembro de 2011. Para trás ficaram anos de estudos, de conferências, de propostas e contrapropostas, de disputas, contando-se por centenas os artigos publicados na imprensa, as intervenções públicas de responsáveis políticos, de representantes dos consumidores e dos profissionais e de funcionários das instituições comunitárias, as entrevistas, os colóquios, os seminários e os debates levados a cabo na maior campanha mediática jamais vista a propósito de iniciativas comunitárias.

1.2. A presente diretiva é, com efeito, o ponto de chegada de um longo percurso, de que, no presente artigo, se não dará conta detalhada1, mas, para bem compreender o seu teor, é mister recordar, ainda que sinteticamente, o contexto e antecedentes da proposta que está na sua origem e enunciar os objetivos que a Comissão anunciou para ela.

1.3. Com feito, esta diretiva não surge do nada. Ela representa a confluência de duas iniciativas já com vários anos, uma de cariz marcadamente académico e outra de natureza de política legislativa a nível comunitário.

A primeira tem as suas origens remotas na ideia da uniformização do direito civil a nível europeu, com a criação de um Código Civil Europeu ou, pelo menos, na tentativa de harmonização do direito das obrigações em geral e dos contratos em particular.

A segunda prende-se antes com a ideia da codificação do direito do consumo a nível comunitário ou com a revisão do acervo relativo à defesa do consumidor.

1.4. Nos começos do século XX vários projetos académicos tiveram como objetivo a harmonização do direito civil europeu, em particular do direito dos contratos. Em 1929 é publicado um projeto de código franco-italiano das obrigações e dos contratos; em 1953 a Associação Henri Capitant elaborou um projeto de código comum das obrigações na Europa.

Mais recentemente, em 1980, foi criada a Comissão sobre o Direito Europeu dos Contratos, dirigida pelo professor Ole Lando, que, em 1995, publica a 1a. parte dos seus Princípios do Direito Europeu do Contrato (PDEC), contendo os princípios relativos à execução e ao incumprimento, logo seguida, em 1998, por uma 2a. parte relativa à formação, validade, interpretação, conteúdo e mandato e, em 2001, por uma 3a. parte sobre o regime geral das obrigações.

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Por seu turno, a Academia de Pavia ou, como também é conhecida, a Academia dos Privatistas Europeus, cujos trabalhos foram dirigidos pelo professor Gandolfi, publica, em 2001, o Livro I do Código Europeu dos Contratos, relativo aos contratos em geral e, em 2006, a primeira parte do Livro II relativo aos contratos em especial, dedicado ao contrato de compra e venda.

De outro lado, os princípios Unidroit, elaborados pelo Instituto Internacional para a Unificação do Direito Privado em 1994, foram revistos em 2004 para os adaptar às especificidades do comércio eletrónico.

1.5. No seio das instituições comunitárias, foi no Parlamento Europeu que, pela primeira vez, em Resolução de 1989, se fez apelo à harmonização de certos aspectos do direito privado2, orientação que viria a reafirmar posteriormente em sucessivas resoluções, de que se destacam as de 9 de julho de 2003, de 23 de março e de 8 de setembro de 2006.

Do lado da Comissão Europeia, é em 2001 que, numa Comunicação relativa ao "direito europeu dos contratos", é lançada uma larga consulta pública sobre a possibilidade de elaborar um direito comum dos contratos como forma de contribuir para um melhor funcionamento do mercado interno3.

No seguimento do debate que esta comunicação ocasionou, em especial nos meios académicos, onde foi genericamente acolhida com sérias reservas4, a Comissão publicou, em 2003, uma segunda comunicação, intitulada "Um Direito Europeu dos Contratos mais Coerente. Um plano de ação"5, onde definiu três opções de trabalho futuro: a construção de um "quadro comum de referência" (commom frame of reference - CFR); a elaboração de cláusulas e condições contratuais tipo; ou a adoção de um instrumento opcional no domínio do direito dos contratos6.

Finalmente, recolhidos e analisados os vários contributos recebidos, numa terceira comunicação, intitulada "Direito Europeu dos Contratos e Revisão do Acervo. O caminho a seguir"7, a Comissão decidiu que não optaria por um código civil europeu que harmonizasse o direito dos contratos dos países membros, mas antes que o caminho a seguir seria o da elaboração de um "quadro comum de referencia" (CFR), eventualmente a complementar por um instrumento opcional, cujos contornos não ficaram claramente definidos.

1.6. É a partir desta orientação, que não foi sufragada por nenhuma resolução do PE8, que a Comissão deu início a toda uma série de consultas e de encomendas de estudos, ao abrigo, designadamente do "Sexto Programa Quadro para a investigação e o desenvolvimento tecnológico", de que se

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destacam a "Rede comum para o direito europeu dos contratos", a quem foi confiada a tarefa de elaborar um projeto de quadro comum de referência (Draft Common Frame of Reference - DCFR), em sede de direito dos contratos.

Desta rede fizeram principalmente parte os membros do grupo de estudo sobre o código civil europeu, o grupo de investigadores sobre o direito privado comunitário em vigor, dito Grupo do Acervo Comunitário ("Acquis Group"), a Associação Henri Capitant em conjunto com a Société de Législation Comparée e o Conseil Supérieur du Notariat, o Common Core Group, o Research Group on the Economic Assessment of Contract Law Rules, conhecido como o Economic Impact Group (TILEC - Tilburg Law and Economics Center), o Database Group, a Academy of European Law (ERA) e um grupo de especialistas em direito dos seguros, o chamado "Restatement of European

Insurance Contract Law Group"9.

O objeto das consultas era vasto, englobando as regras gerais do contrato, o direito das obrigações, a gestão de negócios, a responsabilidade extracontratual, o enriquecimento sem causa, os contratos em especial e, desde logo, o contrato de seguro, e, em futuro mais afastado, o direito de propriedade, as garantias e o "trust".

1.7. O avanço dos trabalhos foi acompanhado por sucessivos relatórios apresentados à Comissão e discutidos publicamente10, o primeiro de 2005 e o segundo de 200711, onde, pela primeira vez se refere à necessidade de ser dada prioridade ao "direito do consumo" como forma de contribuir para a revisão do acervo em matéria de proteção dos consumidores, tema que havia sido objeto do Livro Verde publicado a 7 de fevereiro desse ano de 200712.

1.8. Foi aqui que a iniciativa da revisão do acervo comunitário em matéria de proteção dos consumidores13e a questão da harmonização do direito europeu dos contratos pela primeira vez confluiram, embora nada, inicialmente, implicasse que assim acontecesse, nem, teoricamente, obrigasse ou, sequer, aconselhasse a que assim sucedesse.

Com efeito, datava, de há muito, em vários círculos do pensamento jurídico na Europa, a ideia das vantagens da codificação dos diplomas avulsos sobre direito do consumo nos vários Estados-membros, e em alguns deles, embora por formas diversas e com diferentes resultados, essa ideia fora mesmo levada a cabo14.

A política dos consumidores é não só parte integrante da estratégia da UE para o mercado interno, mas também um elemento essencial da cidadania

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Não admira, pois, que, desde bastante cedo, uma ideia semelhante tivesse ocorrido para o direito do consumo a nível comunitário, nomeadamente a partir do momento em que a União Europeia se viu atribuir competência própria neste domínio15e à medida que se ia constatando que diversas diretivas definiam e regulavam as mesmas matérias de forma diferente, quando não claramente contraditória16.

1.9. É assim que já no Livro Verde sobre a Proteção dos Consumidores de 200117 se dá conta da dispersão legislativa neste domínio e dos seus inconvenientes para a realização do mercado único e se aponta como solução possível a publicação de uma "diretiva-quadro" para regular as práticas comerciais desleais, complementada por diretivas específicas para domínios especiais, se necessário.

No follow-up deste Livro Verde, a Comissão, em nova comunicação de 200218, dava conta de que a maioria dos "stake-holders" era favorável à sua proposta, acrescentando, no entanto, um elemento de primordial importância, que não tinha ficado claramente expresso na primeira comunicação - o da natureza "total" da harmonização proposta19.

Identicamente, no seu documento de "Estratégia da Política dos Consumidores para 2002-2006"20, a Comissão insistia na ideia do estabelecimento de regras e práticas comuns de defesa dos consumidores em toda a Europa, criando um ambiente mais coerente na UE, o que, constituindo mesmo o objetivo primeiro da sua estratégia nesse período, se traduziria pelo estabelecimento de um conjunto comum de regras relativas às práticas comerciais e aos direitos contratuais dos consumidores, passando da harmonização mínima a medidas de "plena harmonização".

É já claramente na sequência e em aplicação destes...

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