Disciplina contratual

AutorRafael Marinangelo
Páginas139-182
CAPÍTULO IV
DISCIPLINA CONTRATUAL
4.1 CONTRATO NA DISCIPLINA LIBERAL
A exata compreensão das transformações evolutivas do contrato exige a análise
do movimento histórico percorrido do Estado Liberal para o Estado Social. Nesse
processo, o qual, evidentemente, ocorreu de maneira gradativa, abandonou-se a
concepção clássica jurídica que gravitava em torno da ideia do reconhecimento da
liberdade individual do ponto de vista puramente formal e jurídico para a ideia do
solidarismo jurídico.1
Sucessor do modelo de Estado absolutista, o Estado Liberal identif‌icava-se
com o ideal da liberdade humana, em contraposição ao Leviatã estatal outrora
existente. Constitui-se, pois, como f‌lagrante oposição ao Estado absolutista,
consagrada pela ideologia doutrinária do laissez faire, lassez passer, le monde va
de lui-même.2
A elaboração de teorias fundantes da livre-iniciativa e da liberdade concorrencial
foi acompanhada da noção da divisão dos poderes, a f‌im de, por meio das limitações
típicas impostas pelo jogo de freios e contrapesos, evitar o poder despótico.
Tem-se, pois, nessa época, a hipervalorização da liberdade do sujeito em detri-
mento da visão social de Estado. As pessoas são livres e donas de sua própria razão;
logo o Estado deve interferir o mínimo possível, deixando-as exercer na plenitude
todas suas faculdades, resumidas que estão na ideia de liberdade.
O modelo liberal de contrato, como não poderia deixar de ser, foi construído a
partir da ideia de liberdade absoluta, limitada apenas pelo pacto social construído
no intuito de viabilizar a coexistência em sociedade.
Por conseguinte, o contrato nada mais era do que fruto do exercício da liberda-
de. As partes, mediante o consenso de suas manifestações de vontade, obrigavam-se
a dar, fazer ou não fazer, de acordo com o que foi livremente pactuado, não sendo
lícito a nenhuma delas, a não ser por acordo, desistir do negócio, assim como não
1. Sobre a história evolutiva do contrato merecem consulta as obras de: Renan Lotufo (In: LOTUFO, Renan;
NANNI, Giovanni Ettore (Coord.). Teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 1-22) e de Judith
Martins-Costa (Contratos. Conceito e evolução. Teoria geral dos contratos. São Paulo: Atlas, 2011, p. 23-66.
2. TIMM, Luciano Benetti. Direito contratual brasileiro. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2015, p. 26.
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INDENIZAÇÃO PUNITIVA E O DANO EXTRAPATRIMONIAL NA DISCIPLINA DOS CONTRATOS • RAFAEL MARINANGELO
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era possível ao juiz interferir no que foi pactuado.3 A consequência, como explica
Zanetti4 foi de que:
Nesta linha de pensamento, as partes contratantes podiam se utilizar da autonomia da vontade
estabelecendo normas para si mesmas (autorregulamento), ou seja, as normas negociais – o
que inclui as contratuais – só se referiam às partes contratantes e, como tal, eram uma unidade
à parte do todo orgânico do sistema jurídico: um pequeno universo fechado e pleno que não
abria espaço para normas diferentes daquelas criadas pelo negócio, nem mesmo interpretações
sistemáticas e analógicas.
A esse respeito, convém trazer à baila o ensinamento de Timm5, segundo o
qual, pela concepção do modelo liberal, “o legislador deixa uma esfera normativa
de comportamentos sociais para os próprios indivíduos negociarem, barganharem,
cada qual sendo responsável pelo que é melhor para si”. A justiça é, pois, fruto do
exercício da liberdade sob o pressuposto de que cada um sabe o que é melhor para si
e, ao mesmo tempo, na f‌irme convicção do reconhecimento da esfera privada como
vinculativa e na garantia de seu cumprimento pelo Estado.
Segundo Sousa Ribeiro6, na concepção clássica (modelo liberal), o contrato
gravitava em torno da concepção do reconhecimento da liberdade individual vista
de modo puramente formal e jurídico. O contrato encontrava-se isolado do mundo
fenomênico, fechado em si mesmo como uma categoria jurídica autossuf‌iciente,
cujos únicos elementos a serem considerados eram o exercício da liberdade indi-
vidual – entendida estritamente sob o ponto de vista formal – e a subsunção lógica
à letra da lei.7
3. A esse respeito leciona Andrea Cristina Zanetti (Princípio do equilíbrio contratual. São Paulo: Saraiva, 2012,
coleção Prof. Agostinho Alvim, p. 32): “É precisamente neste período que encontramos os princípios
contratuais ditos liberais, com destaque para a autonomia da vontade; o consensualismo; a obrigatoriedade
da convenção (pacta sunt servanda) e a relatividade dos efeitos contratuais, que serão abordados nas páginas
mais à frente.”
4. Princípio ... cit. p. 54.
5. Direito contratual ... cit. p. 35.
6. SOUSA RIBEIRO, Joaquim de. Direito dos contratos. Estudos. Coimbra: Coimbra, 2007, p. 38.
7. Ao discorrer sobre o assunto são valiosos os ensinamentos de Ronaldo Porto Macedo Jr. (Contratos
relacionais e defesa do consumidor. 2. ed. rev. atual. e ampl. São Paulo: Ed. RT, 2007, p. 41-42). Para o autor:
“O direito contratual clássico que se iniciou no século XVIII e teve seu apogeu no século XIX apresentou
dois caracteres distintivos básicos que marcaram todo o pensamento contratual que o sucedeu. Em primeiro
lugar, como uma decorrência das exigências de racionalização e sistematização, o direito contratual passou
a ser concebido como um conjunto de poucas regras e princípios, simples, abstratos e universais. Tal
racionalização tornou-se possível graças a um processo seletivo de escolha de princípios e abstração, que os
tornava independentes de seus contextos institucionais, morais e econômicos específ‌icos que formavam a
sua tradição histórico-jurídica mais remota. Neste sentido, pode-se af‌irmar que o que ocorreu com a história
do direito contratual clássico é apenas um capítulo do processo mais amplo e geral de racionalização do
direito de origem romanística, feito em boa medida, em especial nos países da Europa continental, a partir
do século XVIII através do processo intelectual conhecido como recepção. No âmbito do direito do Common
Law tal fenômeno é usualmente descrito como a formação do direito contratual clássico. Um segundo
aspecto importante do direito contratual clássico constitui-se no fato de que ele concebe o contrato como
fórmula canônica, geral e abstrata de diversas relações sociais. Assim relações que anteriormente eram
vistas em termos de status, conf‌iança e dependência econômica (que poderiam ser chamados de elementos
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Ao abordar o assunto, Roppo8 explica que a amplitude da liberdade defendida
pelo modelo clássico signif‌icava admitir que a conclusão do contrato devia ser uma
operação “absolutamente livre para os contraentes interessados”. Na lição do doutri-
nador italiano, é possível af‌irmar a existência de uma soberania individual de juízo
e de escolha conferida às partes para decidir sobre a estipulação ou não estipulação
de um contrato, sobre concluí-lo com esta ou aquela parte, assim como para decidir,
com plena autonomia, seu conteúdo.
Com a integração do contrato à f‌igura do negócio jurídico, qualquer tendência
em considerar a sociabilidade do fenômeno contratual foi, def‌initivamente, expurga-
da. Visto como espécie do negócio jurídico, a dualidade de declarações contrapostas
típicas da natureza do contrato serviu apenas para identif‌icá-lo e classif‌icá-lo dentro
daquele gênero.
A visão estática do contrato, por meio da qual a análise estruturante não levava
em conta a sua dinamicidade formativa, muito contribuiu para seu isolamento como
categoria autocentrada. Acreditar ser possível, a partir do momento singular da
declaração de vontade do proponente, extrair toda a complexidade, as nuanças, as
questões intrinsecamente relacionadas ao ato negocial, foi derradeiro para consoli-
dar o viés equivocado pelo qual, por muito tempo, pautou-se a doutrina contratual.
Como bem mencionado por Sousa Ribeiro9:
(...) não permitindo captar a inapagável dimensão relacional do contrato, logo no seu processo
formativo, e a bilateralidade da autodeterminação que por ele se exerce, a redução da gura a
uma espécie dentro da categoria genérica do negócio jurídico não é alheia, também, à pacicação
de todas as formas de expressão da liberdade negocial, sem atender à especicidade distintiva
da liberdade contratual.
contratuais não promissórios) passaram a ser interpretados do ponto de vista de uma nova concepção de
contrato. É o que decorreu em larga medida com o direito de família, com o direito de propriedade (compra
e venda), com o regime jurídico do fornecimento de bens e serviços ao governo com a responsabilidade
contratual. (...)
Cabe destacar ainda algumas outras características do direito contratual clássico. Os séculos XVII e XIX
foram marcados pela hegemonia do pensamento liberal tipo laissez-faire e pelas teorias do direito natural
moderno. Para os juízes e legisladores do século XVIII o direito natural signif‌icava basicamente o direito
inalienável à propriedade privada e o direito de realizar os contratos privados por si mesmos. O paternalismo,
contudo, permanecia como ideologia inf‌luente, o que autorizava os juízes a mitigarem os efeitos sociais
perversos de contratos f‌irmados com base nos princípios liberais clássicos. É apenas no século XIX que
a ideologia do tipo laissez-faire realmente se enraíza na sociedade, reduzindo a inf‌luência dos princípios
paternalistas em vigor no século anterior. A partir de então se fortalece de maneira jamais vista a crença
de que o Estado deveria interferir o mínimo possível na vida das pessoas e de que o direito não deveria
se preocupar com a justiça dos resultados das transações. A justiça passa a ser entendida essencialmente
como o respeito ao acordo f‌irmado e o interesse público passa a ser identif‌icado à defesa da ordem liberal
e aos princípios de mínima intervenção estatal.”
8. ROPPO, Enzo. O contrato. Trad. Ana Coimbra e M. Januário C. Gomes. Coimbra: Almedina, 1988, p. 32.
Sobre o tema, consultar, ainda, Marco Fábio Morsello (Contratos existenciais e de lucro. Análise sob a ótica
dos princípios contratuais contemporâneos. In: LOTUFO, Renan; NANNI, Giovanni Ettore; MARTINS,
Fernando Rodrigues (Coord.). Temas relevantes de direito civil contemporâneo. São Paulo: Atlas, 2012, p.
294-296.
9. SOUSA RIBEIRO, Joaquim de. Direito dos contratos. Estudos. Coimbra: Coimbra Ed., 2007, p. 38.
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