O processo administrativo disciplinar na perspectiva dos princípios constitucionais

AutorClarissa Domingos Araújo
CargoEspecialista em Direito Administrativo (Instituto de Direito Romeu Felipe Bacellar) e Mestranda em Direito do Estado (UFSC)
Páginas354-361

Clarissa Domingos Araújo1

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1 Introdução

Inicialmente, busca-se tratar, aqui, dos princípios constitucionais que informam o processo administrativo sancionatório - contraditório e ampla defesa - a partir de seus elementos essenciais.

O esforço está concentrado na tentativa de colocar o "poder disciplinar" cara a cara com a Constituição. A vedação aos juízos e aos tribunais de exceção, a garantia da autoridade competente para o processamento e julgamento dos conflitos incide no espaço das relações jurídico-administrativas? A Constituição exclui, de antemão, a incidência do princípio do juiz natural na seara administrativa? Investiga-se a letra do texto constitucional e o mundo de sonhos (ou pesadelos) que ainda cerca o entendimento doutrinário a respeito do princípio da hierarquia.

Confronta-se o princípio do contraditório e ampla defesa com o do juiz natural no processo administrativo disciplinar. Trata-se de investigar se há alguma possibilidade jurídica de garantia do contraditório e da ampla defesa sem a correlata garantia do juiz natural. A partir da distribuição das funções processuais entre as respectivas autoridades competentes, pergunta-se sobre a compatibilidade, sob o ponto de vista do contraditório e da ampla defesa, da junção, na mesma autoridade administrativa, das funções: (i) de acusar e julgar, (ii) acusar e instruir e da disjunção das funções de (iii) instruir e julgar.

Não há o objetivo de fornecer respostas; o estudo configura, antes de tudo, o resultado de uma inquietação em processo de reflexão.

2 Princípios constitucionais explícitos: contraditório e ampla defesa

A Constituição de 1988 inaugurou uma nova era para o direito administrativo com o artigo 5º, inciso LV: "aos litigantes, em processo administrativo e judicial, e aos acusados em geral, são assegurados o contraditório e a ampla defesa, com os meios e os recursos a ela inerentes". Trouxe expressamente, para a seara da função administrativa em que haja litigantes ou acusados, os princípios do contraditório e da ampla defesa.

Costuma-se identificar o princípio do contraditório no processo administrativo como a informação necessária e a reação possível. Para Maria Sylvia Di Pietro, o contraditório "é decorrente da bilateralidade do processo: quando uma das partes alega alguma coisa, há de ser ouvida também a outra, dando-se-lhe oportunidade de resposta"; o princípio exige, portanto, "1. notificação dos atos processuais à parte interessada; 2. possibilidade de exame das provas constantes no proces-Page 355so, 3. direito de assistir à inquirição de testemunhas, 4. direito de apresentar defesa escrita" (DI PIETRO, 1994, p. 402).

Por outro lado, a ampla defesa que, não é a defesa, mas a ampla defesa, traduz o comando de que ninguém pode ser julgado sem ser ouvido. Comporta a idéia de justiça formal, de que não pode haver justiça, por mais "correta" que possa parecer a decisão, se a parte atingida não puder ser ouvida pelo seu juiz antes da decisão.

Mas a "informação necessária e a reação possível" não dão conta do significado do princípio: são, antes, uma decorrência, um corolário da substância do contraditório. Ao tratar do processo penal, Jorge Figueiredo Dias aponta o contraditório como "princípio ou direito de audiência; como, isto é (numa formulação intencionalmente enxuta), oportunidade conferida a todo o participante processual de influir, através da sua audição pelo tribunal, no decurso do processo" (FIGUEIREDO DIAS, p. 153). Na doutrina italiana, Luigi Comoglio traduz a essência do contraditório, no processo civil, como princípio que objetiva assegurar às partes equivalente possibilidade de influir na formação do convencimento do órgão julgador, no decurso de todo o processo (COMOGLIO, 1995, p. 68).

Transplantando estes conceitos para o processo administrativo (e disciplinar), é possível afirmar que quando a Constituição garante o contraditório aos litigantes e aos acusados perante a Administração Pública está garantindo esta possibilidade ampla de intervir na formação do convencimento do órgão que julgará o processo administrativo. Isto leva a crer que o contraditório não é, em si, o direito à prova ou o direito à defesa, mas ele (pode) ser realizado mediante o exercício destes direitos. O que leva a outra assertiva de que o contraditório não é mera formalidade, ele é um princípio que orienta toda as fases do processo administrativo.

Cândido Dinamarco ensina que instruir não é só provar, instruir é preparar o provimento final:

[...] instruir não é só provar. Isto me parece muito importante. Instrução em linguagem processual, significa preparar. Não é só provando que eu instruo o juiz, que eu preparo a sua mente para chegar à solução que quero; também em todas as demais atividades. Nas alegações que se fazem no processo, existe atividade instrutória [...]. Então, instruir significa preparar o provimento final (1981, p. 32).

Com efeito, o contraditório somado à ampla defesa traduz a idéia singular do acesso da parte ao seu juiz. Não é possível pensar nestes princípios sem pensar que o objetivo primeiro é garantir que a parte tenha conhecimento de quem é o seu julgador e possa se apresentar diante dele para expor os seus argumentos, a sua defesa.

3 Função administrativa sancionatória

São apontadas duas ordens de idéias que, embora opostas, sintetizam o direito administrativo. Ao tempo em que as normas de direito administrativo, ao contrário das de direito privado, conferem poderes que não existem nas relações entre particulares - prerrogativas do poder público -, impõe obrigações muito mais estreitas do que aquelas que o direito privado faz pesar sobre os particulares, tornando "a Administração não mais poderosa, mas sim vinculada, que os particulares entre si" (AMATO, 1997, p. 650-651).2

Por sua vez, o ato administrativo é apenas um dos instrumentos de atuação administrativa capaz de lesar o direito dos particulares, que se alia à inércia da Administração, enquanto aparato prestador de bens e serviços. Diante disto, dois problemas merecem ser enfrentados: (i) o problema da identificação das formas de atuação da Administração Pública e o (ii) o problema da necessidade de criação de garantias para os cidadãos em face das novas realidades administrativas. Em relação ao primeiro problema, a complexidade da ação administrativa revela-se na circunstância de que "uma mesma ação administrativa parece poder ser exercida 'quer pelas próprias pessoas públicas, quer por pessoas privadas fictícias dirigidas pela administração, quer por pessoas privadas verdadeiras funcionando com a ajuda da administração' (DEBBASCH). Este é, aliás, um dos moti-Page 356vos pelos quais a própria...

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