O problema da discricionariedade em face da decisão judicial com base em princípios: a contribuição de Ronald Dworkin

AutorArgemiro Cardoso Moreira Martins/Caroline Ferri
CargoDoutor em Direito Constitucional pela Universidade Federal de Minas Gerais - UFMG/Mestre em Teoria e Filosofia do Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina
Páginas265-285

Argemiro Cardoso Moreira Martins1

Caroline Ferri2

Page 265

1 Introdução

Nas modernas sociedades que experimentem a democracia como forma de governo, o papel o direito é posto em relevo. A questão de se terem "direitos" e quais são esses direitos exigidos pelo universo de cidadãos, grupos e agentes sociais emerge como um dos problemas centrais no cenário das sociedades democráticas. A Constituição, então, considerada como um todo enumerador de direitos, adquire importância crucial nas argumentações que se referem à proteção dos indivíduos. As inserções nas constituições democráticas de direitos individuais, sociais ou difusos reforçam a compreensão de que direitos devem ser protegidos.

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Mas é suficiente que os direitos individuais se encontrem listados nas Constituições? Da mesma forma que a nomenclatura de um conceito não modifica o seu conteúdo, expor direitos em cartas legais, ainda que isso seja um avanço no sentido de proteção e, portanto, louvável, não significa que serão devidamente cumpridos, seja em sua totalidade ou em partes específicas.

O enunciar de direitos que não se efetivam pode ser comparado como a proclamação de frases de efeito. Alterando a ordem aristotélica, acidentes sem substâncias. "Levar os direitos a sério", dessa forma, equivale a não somente os considerar enquanto disposições legais, possibilidade de serem realizados parcialmente, ou somente para alguns indivíduos. A questão que se coloca não é somente o que significa levar os direitos a sério, mas adjacer a esta interrogação elementos que envolvem a própria teoria vigente do direito. "Levar os direitos a sério" corresponde a efetivá-los em sua totalidade, bem como vislumbrar suas conseqüências para que deixem de ser, dessa forma, enunciações que podem muitas vezes parecer circulares e vazias.

Em síntese, essa é a questão que anima a teoria de Ronald Dworkin e, especialmente, a leitura que este filósofo faz do direito: levar os direitos a sério é, antes de tudo, tratar das decisões tomadas com base em princípios jurídicos que não são mais nada além de normas jurídicas, a despeito de sua ambigüidade e vagueza semânticas. O papel hoje desempenhado pelos princípios na definição dos direitos é inegável, cada vez mais os juízes e os tribunais apelam a essa espécie normativa na solução de casos judiciais. Isso é evidente na jurisdição constitucional, onde a questão dos direitos fundamentais está sempre em pauta de discussões.

O presente trabalho tratará desse tema na seguinte ordem. Inicialmente, será feita uma breve exposição acerca da teoria dos princípios e da noção de discricionariedade (1), especialmente, no que tange à leitura positivista da discricionariedade judicial em face de princípios amplos e abstratos (2). Nesses itens iniciais, serão expostas as argumentações que Dworkin formula em prol de sua teoria dos princípios, direcionadas, sobretudo, contra a interpretação do positivismo feita, especialmente, por Herbert L. A. Hart - embora a crítica de Dworkin também alcance, em termos gerais, a teoria de Hans Kelsen. Após essa primeira exposição, as implicações da teoria de Dworkin para o direito constituirão objeto das atenções desse trabalho (3). Ao final, será tratado o problema da discricionariedade judicial frente a princípios plurissignificativos e, especialmente, como Dworkin busca eliminar o recurso à discricionariedade na fundamentação das decisões em "casos difíceis" (4).

2 Os limites do direito e a teoria de princípios: uma introdução ao poder discricionário

Várias acepções foram consideradas com o objetivo de explicar e, em conseqüência, dar continuidade ao pensamento do direito. Dessa forma, muitas são as teses que adjudicam a condição de compreender a atividade jurídica. Dentre essas, unânime se mostra a teoria do positivismo jurídico como responsável por considerações acerca de tal conjunção.

Inseridos nela gama vasta de autores, várias são as suas derivações. Entretanto, como pertencentes a uma mesma matriz teórica, são dotados de características comuns. Dworkin, ao pôr em análise o positivismo jurídico com a sua diversidade de autoral e, portanto, teórica, reconhece três características que são a estes sistemas comuns.

Tais características, então, fazem jus a denominação de pontos caracterizadores da tese positivista geral. Estas "proposições centrais e organizadoras" podem ser enunciadas da seguinte forma: (1) é considerado o direito de uma comunidade o conjunto de regras destinadas a regular os comportamentos que serão punidos ou coagidos pelo poder público; (2) em havendo uma situação onde o direito vigente não abarca um determinado fato, a decisão deverá ser tomada por uma autoridade pública que, através do uso de seu discernimento pessoal, declarará uma resolução; (3) o conceito de obrigação jurídica corresponde a uma situação onde um fato se enquadra em uma regra de direito. Em não havendo essa regra, não há como se falar neste dever. Significa, dessa forma, que,Page 267 quando um juiz decide um caso controverso no exercício de sua discrição, não está ele versando sobre um direito jurídico acerca da matéria questionada.3

Há que se vislumbrar, então, que as características (2) (3) estão ligadas intrinsecamente, já que versam sobre a questão da discricionariedade do julgador. Nesse sentido, faz-se necessário observar os pontos de destaque (1) e (2), este último contendo a proposição (3).

Todo o direito é composto por normas que têm por finalidade a regulação de comportamentos, direta ou indiretamente. Direta quando a própria regra expõe a ação a ser realizada ou evitada; indiretamente quando o regulamento normativo preserve designações acerca da produção de normas de conduta. Em qualquer sistema jurídico se faz presente um teste que objetiva a verificação de pertencimento de uma regra ao ordenamento jurídico.

Uma teoria positivista se associa a duas teses importantes que acabarão por envolver os limites do direito e a desvinculação entre direito e moral. O primeiro aspecto irá tratar da questão das fontes sociais do direito, onde se preconiza a necessidade de existência de um parâmetro de decisão acerca de identificar quais normas pertencem ao ordenamento jurídico, o que culminará em uma tentativa de especificar os casos difíceis e a sua relação com a própria teoria do positivismo.4

Em Kelsen, a relação de pertinência ao sistema se dá em razão da chamada norma fundamental. Uma regra de direito adentra na ordem jurídica se puder ser remetia a este ponto axiomático hipotético do sistema quanto à sua relação com as delegações de poderes no âmbito de autoridades, bem como aspectos formais com relação a normas superiores. Isso se deve ao fato de ser o direito caracterizado como um sistema dinâmico. Bobbio, seguindo o pensamento kelseniano, acresce ao acima mencionado as questões materiais do sistema, o que significa que a pertinência se dá tanto por delegações de poderes para a propositura da norma, aspectos formais normativos e também por limitações materiais de normas que a ela são superiores hierarquicamente.

Dworkin faz uso do sistema positivista jurídico enunciado por Hart. Na teoria por esse autor preconizada existem dois tipos de regras: primárias e secundárias. São regras primárias aquelas que vêm a conferir direitos ou impedir obrigações aos indivíduos. Já as regras secundárias têm por objeto a regulamentação acerca da origem, modificação ou extinção das regras primárias. Esta diferenciação se mostra importante para que se determine, no sistema de Hart, como as regras podem ser consideradas válidas.

Assim, uma regra vem a ser obrigatória para uma determinada comunidade porque essa, em suas práticas, aceita essa regra de conduta. Outra forma de vir uma regra a se tornar obrigatória é pelo fato de ser ela promulgada em conformidade com o estabelecido por uma norma secundária. Quando desenvolvida uma regra secundária fundamental, que tem por objetivo determinar como as regras jurídicas devem ser identificadas, ela recebe a denominação de regra de reconhecimento. Essa, então, tem por finalidade última a identificação de elementos normativos que são, de fato, o direito.

O objeto principal da teoria do direito é conhecer, descrever e explicar essas convenções do passado. É possível que os juízes se encontrem com casos difíceis e que utilizem critérios extra jurídicos para resolvê-los, porém desde uma posição como a de Hart o direito é o conjunto de fatos sociais que se podem identificar mediante métodos específicos. Quando o juiz utiliza outros elementos não está aplicando o direito senão que está inventando o direito. 5

Observa-se, dessa forma, que a questão da discricionariedade judicial está presente desde as primeiras determinações de escolas positivistas. Em cabendo ao direito a explicação de acontecimentos fáticos, este conhecer está ligado com a questão de que decisões passadas acabam, em geral, a determinar as presentes. Assim, em não havendo uma norma de direito ou uma decisão judicial anterior que possa ser aplicada a um acontecimento atual, cabe ao juiz, no uso de seu poder discricionário, decidir. Essa decisão, então, por não utilizar o direito vigente, cria algo novo na esfera jurídica.

A temática da discricionariedade, nesse sentido, encontra-se presente nos três aspectos elencados como aspectos caracterizadores do positivismo enquanto escola jurídica. Assim, seguindo os ditames da doutrina em tela, a discricionariedade de uma autoridade jurídica, no caso de uma teoria da decisão dos juízes, depende, para ser...

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