Discricionariedade judicial

AutorJosé Wellington Bezerra da Costa Neto
Páginas241-310

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21. Introdução

O tema proposto constitui na atualidade um dos principais focos de divergência na intersecção entre o Direito Processual, o Constitucional e Administrativo. A tônica do presente trabalho é apresentar uma nova cultura de independência judicial fundada na noção de protagonismo, baseado na admissão de transferência de poder político à magistratura, que, de seu lado, deve prezar por um comportamento político institucional responsável. Conexa à esta independência revigorada e modernizada, está a ideia de discricionariedade, um dos principais instrumentos de sua concretização520.

Algumas notas características da concepção de discricionariedade consentânea a este contexto podem ser hauridas de prestigiosa doutrina: a) deve ela ser exercida livre de interferências exteriores; b) a própria magistratura deve exercer o juízo crítico acerca da discricionariedade, sem incorrer em excessos ou deformações que impliquem em absurdos, arbitrariedades, perda do equilíbrio objetivo, soluções surpresas, etc.; c) pragmatismo limitado pela prudência e autocontrole; d) racionalização da discricionariedade manifestada pela forma de exercício da direção do processo e pelo modo como usados os poderes judiciais521.

Embora o exercício da função jurisdicional com esta conformação implique riscos, estes são admitidos como maus necessários para uma significativa vantagem consistente no aumento da capacidade de solução dos conflitos, servindo à flexibilização na aplicação da lei, subministrando

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meios para soluções mais justas, assim entendidas aquelas mais úteis, eficazes e valiosas522.

Uma primeira aproximação indicará que os principais padrões de discussão relacionam a ideia de discricionariedade judicial com a interpretação e aplicação de conceitos jurídicos vagos ou indeterminados.

A questão da discricionariedade judicial pareceu sempre despertar nos juristas formais um fantasma irracional, revelando o interesse da tradição ocidental de esconder o fenômeno. Atualmente o quadro tem se alterado, e a questão tem ganhado destaque e espaço na literatura jurídica, embora venha normalmente cuidada de modo conexo a problemas de interpretação normativa, como adiante se verá, relegando-se outros aspectos em que se apresenta à obscuridade523.

Percebe-se também que o real foco do problema não é tanto saber se existe discricionariedade nos poderes exercidos pelo juiz, mas principalmente se existe esta nos termos em que definida pela seara administrativa, onde as notas características são as noções de a) conveniência;

  1. oportunidade e c) insindicabilidade.

Quando estas noções são transpostas à realidade processual, resultados perigosos podem advir, em ameaça a preceitos que constituem garantias fundamentais dos litigantes. É difícil, por exemplo, imaginar decisão judicial absolutamente irrecorrível (e aqui se usa o termo em sentido amplo, como sinônimo de não-impugnável, ainda que por vias que não sejam propriamente "recursais" em sentido técnico, com é o caso do mandado de segurança). De todo modo, afirma-se que o entendimento plasmado na súmula n° 622 do C. Supremo Tribunal Federal524 funda-se na assertiva de que o ato do relator ali mencionado seria discricionário, e isento, portanto, de controle525.

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Há na doutrina respeitáveis entendimentos que negam que ao juiz se conceda algum poder com nota de discricionariedade, desde que entendida esta com os caracteres já salientados, oriundos do âmbito administrativo. É esta a posição de José Roberto dos Santos Bedaque526, Maria Elizabeth de Castro Lopes527; Teresa Arruda Alvim Wambier528,

Sidnei Amendoeira Jr529, Nelson Nery Jr e Georges Abboud530. Sidnei Amendoeira Jr, por exemplo, argumenta que ao juiz não é dado realizar juízos de oportunidade, e que no processo não é ele dotado de faculdades, senão de poderes-deveres, de modo que todos os atos do juiz são, ainda que indiretamente, vinculados à lei.

Obviamente que se partiu, no raciocínio citado, de um equívoco: julgar que atos discricionários não sejam vinculados à lei (seguindo-se o silogismo mais ou menos nos seguintes termos: atos discricionários não são vinculados à lei; os atos do juiz são vinculados à lei; logo, os atos do

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juiz não são discricionários). Ora, todos sabem que a ideia de que atos discricionários não estejam tisnados pelo princípio da legalidade está há muito superada. A concessão da liberdade de escolha e os contornos e limites desta são demarcados pela lei. Aliás, o próprio autor o admite quando, adiante, afirma a possibilidade de controle judicial também sobre atos discricionários, afiançando que há muito se definiu que o binômio conveniência e oportunidade integra a legalidade do ato531.

O fato é que as negativas ao exercício de discricionariedade judicial geralmente vêm numa primeira aproximação ao tema, que quando é avaliado de modo mais detalhado, acaba cedendo espaço para o reconhecimento de "algo" que embora não se queira, dificilmente não possa ser identificado como discricionariedade, ainda que com algumas peculiaridades.

Os que se dedicam à análise macrocósmica da atividade jurisdicional tendo como pano de fundo o evolver das características do Estado de Direito, acabam afirmando o protagonismo discricionário do juiz. Apontase como grande marca da contemporaneidade da atividade jurisdicional o aumento dos poderes-deveres dos magistrados, exsurgindo figuras novas, como a do juiz-administrador e mesmo do juiz-legislador, com notas de imediatidade, função diretiva e tarefa criativa, que surgem como exigência da própria dinâmica social532.

A rápida sucessão de leis, e a conformação de estatutos setorializados obriga a hermenêutica mais flexível, visando superar lacunas e contrastes, transferindo à magistratura deveres que pareciam reservados à legislação, desde a determinação dos efeitos da lei no tempo, até mesmo à organização das fontes dos direitos. "El legislador se rezaga (en omisión querida) en la retaguardia y cede lugar a los magistrados; amanhece así la ‘suplencia judiciaria’"533.

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No contexto de um ordenamento que é cada vez menos coerente, completo e livre de ambiguidades a função de um Judiciário ao qual, em tese, caberia o controle dos demais poderes com base em juízos de legalidade e constitucionalidade, acaba naturalmente inclinada à abertura de espaços à discricionariedade, bem como ao desenvolvimento das perversões desta, como a politização da magistratura tisnada por sentidos negativos, normalmente associados a decisões contra lei; violações de direitos individuais e indefinição dos limites do sistema político534.

22. Discricionariedade judicial e conceitos jurídicos indeterminados

Certamente este é um dos principais elementos na problemática abor-dada: coincidir ou distinguir as ideias postas no subtítulo em epígrafe.

Fato é que o uso de conceitos genéricos cria a possibilidade de inter-pretações alternativas, que cria, por seu turno, um embaraço para a teoria da legitimidade judicial, que nega aos juízes a possibilidade de agir com discricionariedade535.

É expressiva a doutrina que se debruçou sobre o tema no distinguir entre interpretação de conceitos jurídicos indeterminados e discricionariedade. Bedaque pontua que inexiste discricionariedade judicial, e o que como tal se denomina não passa de maior liberdade conferida pela lei ao juiz para adaptar as normas ao caso concreto, ou seja, não passa de interpretação e aplicação da lei. Nos casos citados à guisa de exemplo do que poderia ser considerado poder discricionário (p. ex. fixação de prazo de edital citatório, a teor do disposto no inciso III do art. 257 do Código de Processo Civil); requisição ou não ao juiz de causa, de informações no caso de agravo na forma de instrumento – CPC, art. 527, IV; regra abolida no novo Código de Processo Civil), diz Bedaque que são atos sem conteúdo

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decisório e impassíveis de causarem prejuízo à parte536. Segue ponderando que em matéria probatória e em sede de apreciação de tutelas de urgência não há discricionariedade. Há dificuldade em interpretação fática, porém isto não se associa à discricionariedade537.

Uma das posições reiteradamente destacadas é a de Teresa Arruda Alvim Wambier. Com peculiar agudeza, a autora pontua a discricionarie-dade em termos gerais como um resíduo de liberdade outorgado ao aplicador que gera para ele o dever de integrar a vontade da lei, e segundo ela, quando se fala em exercício de poder discricionário pelo juiz, alude-se aos casos em que atue com mais liberdade integrativa538. Da mesma autora é outro argumento que normalmente repercute naqueles que já pesquisaram o tema: discricionariedade associa-se a liberdade de escolha dentro dos limites legais, em que todas as soluções alternativas são igualmente lícitas e admissíveis. Ocorre que mesmo na atuação interpretativa de conceito vago, o juiz atua na busca da única solução correta, exercendo o que a autora em questão denomina de liberdade de investigação crítica539.

Daí a crítica de Teresa Wambier ao teor da súmula n° 400 do C. Supremo Tribunal Federal ("Decisão que deu razoável interpretação à lei, ainda que não seja a melhor, não autoriza recurso extraordinário pela letra ‘a’ do art. 101, III, da Constituição Federal"), já que segundo o seu ponto de

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vista um conceito vago é desenhado com o escopo de gerar uma só inter-pretação, a correta.

O que se ressalta é que em quaisquer destas situações em que maior a intensidade da liberdade judicial, não decide o juiz com foros de conveniência e...

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