Teoria do discurso, construtivismo filosófico e razão prática

AutorAlexandre Garrido Da Silva
Páginas1-36

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1. Introdução:

A temática da legitimação, justificação ou fundamentação dos direitos humanos, dos princípios constitucionais e do ordenamento jurídico passou a conviver, em tempos de póspositivismo e de neoconstitucionalismo, com o plano das preocupações teóricas e práticas sobre a efetividade dos direitos e instituições jurídicas, políticas e sociais. O problema da legitimação tem projetado transformações metodológicas fundamentais na prática constitucional, abrindo o Direito Constitucional e suas normas à avaliação moral e introduzindo profundas mudanças no estilo doutrinário dos juristas e na prática de motivação das decisões judiciais, principalmente no âmbito da jurisdição constitucional. Page 2

Essa nova constelação de idéias que informa a práxis constitucional no pós-positivismo1foi sintetizada pelo jusfilósofo argentino Carlos Santiago Nino. As normas, convenções e práticas positivas que presidem as constituições históricas, esclarece Nino, "não são premissas do raciocínio justificatório, mas objeto de justificação no primeiro estágio daquela argumentação2". Neste sentido, o autor postula um "teorema fundamental da teoria jurídica3", segundo o qual a constituição ideal dos direitos, integrada pelos direitos fundamentais, pela participação democrática e pelos princípios liberais de justiça social, apresenta-se como parâmetro normativo responsável pela legitimação das diferentes constituições historicamente existentes4. O discurso jurídico não constitui, segundo esse entendimento, um discurso insular ou "fechado" às razões de ordem pragmática, ética e moral5. A argumentação jurídica integra, sobretudo nas controvérsias constitucionais, um discurso de justificação mais amplo e conectado com os princípios morais6. Com apoio no estudo da argumentação judicial empreendida em casos controversos na história jurisprudencial argentina, o autor conclui no sentido de que "a validez de certo ordenamento Page 3 jurídico não pode fundar-se em regras desse mesmo sistema jurídico, mas deve derivar de princípios externos ao próprio sistema7".

A preocupação com a legitimação dos direitos foi olvidada durante aproximadamente os três primeiros quartos do século passado pela reflexão jusfilosófica, sendo retomada nas décadas de sessenta e setenta, particularmente com a publicação - dentre outros importantes livros - da célebre obra intitulada Uma Teoria da Justiça de John Rawls8. Também contribuiu para a difusão da presente temática a publicação, em diferentes idiomas, de inúmeros ensaios, coletâneas e livros elaborados por renomados autores oriundos de distintas áreas dos pensamentos jurídico, filosófico, político e social9.

A reflexão filosófica sobre a legitimação dos direitos humanos e dos direitos fundamentais tem como objetivo delimitar, em seus contornos gerais, um conjunto de "princípios fundamentais garantidores de um mínimo ético a ser respeitado pelo direito positivo10". Esta minima moralia funcionará como um contraponto normativo e crítico das instituições, decisões judiciais e práticas sociais historicamente vigentes em uma determinada sociedade.

Consoante France Farago, "legitimar alguma coisa significa demonstrar a justeza, seu bem fundado11". Neste sentido, o discurso de legitimação almeja justificar, aduzir boas razões, isto é, argumentar em favor da validade jurídica e moral das práticas, normas e instituições positivas. O tema da legitimação constitui um dos cânones de investigação da filosofia prática - e também da filosofia do direito - que se debruça sobre a questão de como justificar a facticidade Page 4 ou a coercibilidade do direito, bem como o merecimento de sua obediência pelos destinatários de suas prescrições normativas. O direito, como bem lembra Jürgen Habermas, "reclama não apenas aceitação; ele demanda dos seus endereçados não apenas um reconhecimento fático, mas antes reivindica merecer o reconhecimento12".

No entanto, ao mesmo tempo em que vislumbramos o auge - ou o rápido caminhar em sua direção - das reflexões jusfilosóficas sobre a legitimação dos direitos humanos e da Constituição - demonstrável a partir da análise do crescente número de publicações e autores dedicados ao tema13 - verificamos, também, o endereçamento de contundentes críticas filosóficas à viabilidade teórica e, principalmente, à pertinência prática do empreendimento filosófico de legitimação dos direitos humanos e fundamentais, das instituições jurídicas e dos princípios constitucionais.

O discurso de legitimação encontra-se, neste início de século, posto duplamente à prova. Em primeiro lugar, é questionado com relação à possibilidade ou não de justificação racional - ou razoável - da pretensão de universalidade dos direitos humanos e fundamentais como referenciais normativos indispensáveis para a avaliação da justeza dos ordenamentos jurídicos e instituições político-sociais nacionais no mundo contemporâneo. Em segundo lugar, o esforço filosófico de legitimação é criticado - sob o prisma pragmático - no que se refere à sua utilidade social ou contribuição para o incremento do grau de efetividade de tais direitos em sociedades liberais e democráticas ou não. Deste modo, o discurso de legitimação é percebido pelos seus críticos como um empreendimento eminentemente academicista, excessivamente abstrato e desconectado da prática de lutas e de definição de estratégias políticas que objetivam a garantia e Page 5 a promoção in concreto dos direitos humanos e fundamentais nos planos jurídicos interno e internacional.

A opção pela legitimação já implica, de antemão, a assunção de alguns pressupostos teóricos e práticos que necessitam, consoante vimos, também de justificação. Os dois pressupostos fundamentais são: em primeiro lugar, o ideal de racionalidade prática, isto é, a possibilidade de discussão racional sobre questões relativas ao nosso agir e à justificação de normas. Esse ideal de racionalidade prática não se confunde com a tentativa de aplicação (ou simples transposição) da racionalidade técnico-instrumental (isto é, racionalidade meio-fim ou teleológica) às questões práticas, amplamente difundida nas teorias econômicas contemporâneas e em suas aplicações no campo do Direito (por exemplo, law and economics). A idéia de razão prática - no caso da teoria do discurso, uma razão comunicativa - constitui o pressuposto teórico fundamental das tentativas de legitimação dos direitos humanos14. Em segundo lugar, encontramos o pressuposto prático de que o esclarecimento racional do conteúdo, da universalidade de sua validade e das funções normativas dos direitos humanos e fundamentais contribuem, de modo significativo, para o respeito, a defesa e a implementação desses direitos nas sociedades contemporâneas, sejam elas liberais e democráticas ou não. Esses pressupostos, no entanto, não são objetos de um consenso jusfilosófico; bem longe disso, eles são amplamente tematizados e questionados por diferentes e importantes correntes do pensamento filosófico e jurídico15. Page 6

Em primeiro lugar, elaboraremos algumas importantes distinções analíticas com o objetivo de esclarecer o significado dos conceitos de "legitimação", "fundamentação" e "justificação" para, em seguida, apresentarmos a estratégia teorético-discursiva de fundamentação dos direitos humanos elaborada por Robert Alexy, aproximando-a - é importante ressaltar - do conceito de legitimação, bem como de seus pressupostos dialógico, construtivista e falibilista. Por último, discutir-se-á sobre os limites teóricos e as possibilidades práticas da teoria do discurso para a legitimação dos direitos humanos e do texto constitucional, assim como para a efetiva garantia e implementação de tais direitos nas sociedades contemporâneas.

2. Direitos humanos, Constituição e discurso de legitimação:

Os conceitos de legitimação, fundamentação e justificação encontram-se intimamente relacionados com o ideal de correção das normas e do próprio ordenamento jurídico desenvolvido por Robert Alexy, tendo em vista que "junto à pretensão de correção, o direito formula, por sua vez, uma pretensão de fundamentabilidade (fundamentabilidad)16". O discurso de legitimação, consoante veremos, é um discurso especializado em fundamentar a validade (e a aplicabilidade prima facie) de enunciados normativos e, desse modo, também a sua validade moral e jurídica. A temática da legitimação dos direitos humanos e da Constituição exige, assim, os aportes analítico e normativo da filosofia do direito enquanto arcabouços teóricos indispensáveis para uma análise do fenômeno jurídico entendido discursivamente, isto é, como institucionalização da justiça ou da razão prática.

A teoria do discurso desenvolvida e sistematizada no âmbito do direito por Robert Alexy, dentre outras importantes notas distintivas17, apresenta-se como uma teoria constitucional ou Page 7 constitucionalista da justiça, segundo a qual, assevera o autor, "a Constituição se converte, deste modo, no primeiro objeto da teoria discursiva da justiça18". A Constituição, situada no centro do ordenamento jurídico, passa a constituir a base normativa sobre a qual são plasmados os elementos materiais e procedimentais da teoria do discurso, em especial: os direitos humanos básicos sob a forma de direitos fundamentais, uma série de procedimentos institucionais para a criação democrática e adjudicação do direito, bem como uma determinada estrutura política representada pelo...

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