Discurso da propriedade e da posse: história e conteúdo

AutorDanielle Portugal de Biazi
Páginas23-51
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DISCURSO DA PROPRIEDADE
E DA POSSE: HISTÓRIA E CONTEÚDO
3.1 DIREITO REAL DE PROPRIEDADE: A HISTÓRIA ENTRE O DISCURSO
ROMANO E A PÓS-MODERNIDADE
Muito embora o escopo desta pesquisa não envolva esmiuçar o conteúdo da
propriedade no direito romano, sua compreensão é preciosa como elemento justif‌i-
cador da evolução do instituto ao longo dos tempos. Não é possível pensar no direito
apenas e tão somente sob o aspecto positivista, sem identif‌icar e traçar o percurso
histórico de seus elementos constitutivos.
A propriedade, tema central de discussão na presente pesquisa, ganhou con-
tornos peculiares neste período histórico, muitas vezes injustamente reduzidos a
simplif‌icações as quais pretende-se evitar de agora em diante.
Comumente fala-se que os romanos entendiam a propriedade como direito
absoluto, sem, contudo, explorar ref‌letidamente os limites deste exercício. Todavia,
a doutrina elabora sinceras dúvidas quanto à percepção de propriedade como direito
subjetivo no período romano1.
De fato, é preciso que se afaste da pesquisa a tendência ao pensamento de
que a civilização romana compreendia a propriedade como direito subjetivo. Ao
contrário, muito embora houvesse a consciência da propriedade privada e de um
poder de disposição, esta não se confundia com o conceito dogmático subjetivo de
propriedade,2 aliás, sequer houve no direito romano a concepção de direito real,
apesar de serem ali originadas as bases para o seu conceito.3 Neste ponto, António
Menezes Cordeiro explica que devem ser separadas as dimensões dogmáticas das
signif‌icativo ideológicas.4
1. Vide Miguel Nogueira de Brito citando a posição de Michel Viley e Helmut Coing. In: BRITO, Miguel
Nogueira de. A justif‌icação da propriedade privada numa democracia constitucional. Coimbra: Almedina,
2007, p. 29-37.
2. BRITO, 2001, p. 36.
3. ASCENSÃO, 1993, p. 135.
4. CORDEIRO, Tratado – parte geral, t. I, 1999, p. 222.
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PROPRIEDADE: RECONSTRUÇÕES NA ERA DO ACESSO E COMPARTILHAMENTO • DANIELLE PORTUGAL DE BIAZI
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Daí porque, apesar de expressões como dominium e proprietas terem surgido
com maior relevância apenas na República romana tardia, Miguel Nogueira de Brito5
adverte que na prática, para o cidadão romano, não havia dúvidas de que ele era o
dono da sua terra, de seus escravos, animais e até mesmo de outras f‌iguras jurídicas
como servidão e usufruto, o que tornava irrelevante a inexistência de um conceito
material de propriedade.
Para uma melhor compreensão da história da propriedade no direito romano,
pois, é bastante circundar o aspecto histórico jurídico, mais do que buscar a profun-
didade dogmática subjetiva deste direito. A bem da verdade, reforçando o sobredito,
a propriedade sempre esteve ao centro do direito romano, se adaptando ao longo de
uma evolução em treze séculos.
Há notícia de que a denominação mais antiga seria mancupium ou mancipium,
em outros termos, aquilo que se apropria pela força, que caberia na mão (manu cape-
re). O termo técnico dominium surge muito a frente e com a designação de senhorio,
poder sobre alguma coisa. Por f‌im, proprietas exsurge no período mais recente, com
o sentido de pertencimento.6
Assim, a noção de propriedade para o direito romano é mais intuitiva do que
conceitual, quase sempre absoluta, razão pela qual Biondo Biondi, ao conceituar a
propriedade em algo próxima do que se entendia no direito romano, utiliza-se da
expressão “potencialmente absoluta”7. Segundo Clóvis Beviláqua,8 essa absolutez
é questionável durante a Roma primitiva ou durante a fase de comunhão familiar.
Segundo consta, a primitiva propriedade romana tinha caráter familiar e con-
sistia no local de residência e cultivo. Segundo Biondo Biondi,9 não tinha caráter
coletivo, porque os membros das famílias não gozavam de igualdade jurídica frente
à terra; tampouco era individual porque a antiga concessão considerava o grupo e
não o indivíduo, criando uma característica bastante singular.
Também se incluem nas modalidades de utilização de terras da Roma primitiva
a comunhão agrária e a propriedade individual.10 No primeiro caso, ocorre uma
comunhão do terreno, com divisão dos frutos; ainda que houvesse uma divisão em
lotes por famílias, ao f‌inal do cultivo, voltavam para a tribo, portanto, a propriedade
tinha conteúdo comunitário e era inalienável. No segundo caso, a ainda incipiente
propriedade individual outorgava ao proprietário o poder de dispor de seu bem,
fosse inter vivos ou mortis causa.
5. BRITO, 2007, p. 41.
6. BIONDI, 1957, p. 219.
7. “Proprietà è la signoria giuridica, generale e potenzialmente assoluta, di una persona su di una cosa corpo-
rale” (BIONDI, 1956, p. 220). Tradução livre: “a propriedade é o senhorio jurídico, geral e potencialmente
absoluto de uma pessoa sobre uma coisa corpórea”.
8. BEVILÁQUA, 1941, p. 123.
9. BIONDI, 1956, p. 219.
10. BEVILAQUA, 1941, p. 124.
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