Dispositivo: Fusão de objeto e método de pesquisa em Michel Foucault

AutorCristian Caê Seemann Stassun
CargoPsicólogo, Especialista em Psicologia Clínica, Mestre em Psicologia, Doutorando Interdisciplinar em Ciências Humanas da UFSC.
Páginas72-92

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1 DISPOSITIVO: O VETOR DE CONCEITOS

Proponholhes nada menos que uma geral e maciça divisão do existente em dois grandes grupos ou classes: de um lado os seres viventes (ou as substâncias) e de outro os dispositivos nos quais estes estão incessantemente capturado (AGAMBEN, 2005a, p.1).

Seja em Foucault (1987), na descrição feita do Panóptico2 de Bentham (2000), das sociedades disciplinares como arquitetura de governo, ou em Deleuze (1992) pautando as sociedades de controle; o que está em jogo são formas de se exercer o poder, apoiadas em instrumentos de saber, produzindo efeitos de subjetivação e sujeição. Quando conseguimos isolar as estratégias destas relações de força que suportam tipos de saberes e viceversa, podemos conceber, então, um dispositivo.

Agamben (2005) generaliza3 essa concepção e afirma que “[…] dirseia que hoje não haveria um só instante na vida dos indivíduos que não seja modelado, contaminado ou controlado por algum dispositivo” (p.13). Prado Filho (2007) complementa que esse é um caminho de deslocamento da análise política, dos domínios do Estado para a sociedade, tal qual o resultado final de uma rede microfísica de poder de organizações, instituições, multiplicidade de relações, pequenas coerções e diversas formas de sujeição. Foucault (1979) discute que entre esses elementos, discursivos ou não, existe um tipo de jogo, ou seja, mudanças de posição, modificações de funções, certa manipulação das relações de força que de forma racional utiliza, bloqueia, estabiliza, faz seguir certas direções, numa função estratégica dominante.

Segundo Foucault (1987), além do dispositivo ter uma função estratégica, estaria enunciando uma nova concepção política do poder em oposição a qualquer teoria de Estado, pois não atua por repressão ou ideologia e seus movimentos

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históricos são possíveis de visualizar a partir da genealogia. Foucault (1994a) elucida que o dispositivo define o nexo do jogo que pode existir entre elementos como discursos científicos, filosóficos e morais, instituições, leis, arquiteturas, medidas administrativas, superando a dualidade entre formações discursivas (saber) e nãodiscursivas (poder). Deleuze (1990) expõe, nesses termos, que as dimensões de um dispositivo são as “curvas de enunciação e as curvas de visibilidade”, ou “máquinas de fazer falar e de fazer ver”. Os dispositivos são processos singulares, operam distintamente e de forma específica em relação a outros dispositivos, não têm coordenadas constantes.

Dreyfus & Rabinow (1995) destacam que a tradução de dispositivo para o inglês foi a palavra “aparelho”, podendo aproximar da expressão “rede de inteligibilidade”, que reúne poder e saber numa rede específica de análise, num conjunto de práticas coerentes que organizam a conjuntura social. Para Agamben (2005) o sentido da palavra dispositivo, tanto no uso comum ou foucaultiano, “[...] parece referir a la disposición de una serie de prácticas y de mecanismos (conjuntamente lingüísticos y no lingüísticos, jurídicos, técnicos y militares) con el objetivo de hacer frente a una urgencia y de conseguir un efecto” (p. 3).

Problematizamos uma questão estratégica para entender o processo que envolve, por exemplo, as tecnologias de governo. Se focarmos as técnicas de gestão governamental, desde o cálculo das estatísticas e a ação gestora da Polícia no século XVIII até os dispositivos tecnológicos informacionais do século XX, é possível perceber que ambos agregam uma rede de mecanismos finos, sutis, emergentes sob um discurso inovador e progressista, construídos por uma história de práticas que remontam o controle de fluxos das populações e recobrem tipos específicos de poder político. As recentes geotecnologias, que diagnosticam tanto o território quanto a população, com buscas personalizadas, informações muito íntimas e um mapeamento interpolado que conecta cada pessoa e cada deslocamento dela no uso dos espaços, formaram uma rede de práticas de vigilância e exame, de regulação social, de monitoramento eletrônico, que causaram uma alavancagem na capacidade de governar pessoas através do uso calculado de políticas públicas nos último século no Ocidente.

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Em nossa dissertação de mestrado, mostramos como a geotecnologia “geoprocessamento4” utilizada como técnica de governo é o dispositivo tecnológico específico de função biopolítica que engloba num mesmo mecanismo essa possibilidade de uma análise enquanto prática de poder, instrumento de produção de informações (discursos) e possível meio de as pessoas produzirem uma relação consigo mesmo de vigilância e sujeição a uma forma de poder fina e sutil. Ele possui peculiaridades para gerar problematizações, tal como um suporte de saber muito grande e sofisticado, e o desenho de uma tensão que gera um dispositivo onde essas informações podem ser cruzadas ou usadas politicamente no governo das populações e da vida dos indivíduos. Um estratagema de uma rede de poder e regulação que cresce na velocidade das descobertas da ciência.

1. 1 Dispositivo como método e como objeto

Para você, qual é o sentido e a função metodológica deste termo: dispositivo? M.F.: Através deste termo tento demarcar, em primeiro lugar, um conjunto decididamente heterogêneo que engloba discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares, leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas, morais, filantrópicas. Em suma, o dito e o não dito são os elementos do dispositivo. O dispositivo é a rede que se pode estabelecer entre estes elementos (FOUCAULT, 1979, p. 244).

Caso pudéssemos arriscar que essa tecnologia de governo seja diferente das já estudadas por Michel Foucault, e ao risco de remontar peças que já existiam de outros quebracabeças do pensador, buscamos analisar uma forma de investigação forjada pelo próprio objeto de pesquisa e pela aproximação de um método que fizesse sentido com a trajetória dos objetos já pesquisados por ele. Se entendermos o método como o caminho a ser percorrido ao alcance do objeto pesquisado, poderíamos dizer que o “dispositivo” é o mapa desse caminho, mas também, o próprio ponto de chegada.

Essa é uma afirmação complexa de se fazer, pois não existe um método fechado e generalizável para Foucault. Só a partir dos seus interlocutores: Deleuze, Dreyfus e Rabinow e Agamben, e nos seus últimos ditos e escritos, é possível

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considerar que o dispositivo é um conceito central em seu pensamento. Seria difícil dizer que o dispositivo seria o conceito resumo de seu pensamento, porém os conceitos usados como: máquina, aparelho, sistema, técnica ou tecnologia (em seu sentido lato), por meio dele tiveram uma construção conceitual aprimorada, um vetor que localiza e gera inteligibilidade para os objetos a ser investigados.

Quando falamos em utilizar o “dispositivo” como “método e objeto” de pesquisa e enfrentamos esse vazio metodológicoconceitual evidente, de uma nova flexão dos modos de pesquisar em Foucault, precisamos dar suporte a esse caminho. Para tanto, se o dispositivo é o vetor e tensor na rede que se estabelece entre os elementos de análise de uma pesquisa, usamos a arqueologia do saber, genealogia do poder e genealogia da ética como base para investigação, visto que foram elas as utilizadas para analisar, por exemplo, o dispositivo do Panóptico no livro “Vigiar e Punir”, o dispositivo da Sexualidade no livro “História da Sexualidade: Vontade de Saber” e o dispositivo de Segurança no livro “Segurança, Território e População”.

Para Foucault (1979) o dispositivo possui uma formação histórica, tem uma função estratégica e está sempre disposto em um jogo de poder ligado a configurações de saber e subjetividade. O discurso pode aparecer como programa de uma instituição, ou como lei justificando a implantação de um dispositivo, ou, ao contrário, como elemento que permite justificar e mascarar estas práticas que permanecem mudas. Existem algumas possibilidades de exploração do dispositivo, pois “a forma de pesquisar se constrói em função da especificidade de cada objeto”.

A forma de investigação utilizada neste contexto, em relação aos dispositivos de poder, verdade, sexualidade, segurança e loucura, permite esboçar uma estratégia de pesquisa inicial, uma construção da forma de acesso e possível análise das informações.

O dispositivo, portanto, está sempre inscrito em um jogo de poder, estando sempre, no entanto, ligado a uma ou a configurações de saber que dele nascem, mas que igualmente o condicionam. E isto, o dispositivo: estratégias de relações de força sustentando tipos de saber e sendo sustentadas por eles (FOUCAULT, 1979, p.246).

No livro “História da Sexualidade: O Uso dos Prazeres”, o projeto de investigação que trata a história da sexualidade enquanto correlação, numa cultura, entre campos de saber, tipos de normatividade e formas de subjetividade, demonstra um Foucault (1984) que consegue olhar para a conjuntura de sua

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produção textual e vincular ao dispositivo três eixos de análise. Falamos do dispositivo da sexualidade que é constituído pela:

[...] formação dos saberes que a ela se referem, os sistemas de poder que regulam sua prática e as formas pelas quais os indivíduos podem e devem se reconhecer como sujeitos dessa sexualidade. Ora, sobre os dois primeiros pontos o trabalho que empreendi anteriormente – seja a propósito da medicina e da psiquiatria, seja a propósito do poder punitivo e das práticas disciplinares – deume os instrumentos dos quais necessitava; a análise das práticas discursivas permitia seguir a formação dos saberes, escapando ao dilema entre ciência e ideologia; a análise das relações de poder e de...

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