Distinções hermenêuticas da constitucionalização do direito civil: o intérprete na doutrina de pietro perlingieri

AutorCarlos Nelson Konder
Páginas71-86
DISTINÇÕES HERMENÊUTICAS DA
CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL:
O INTÉRPRETE NA DOUTRINA
DE PIETRO PERLINGIERI
Carlos Nelson Konder
Doutor e mestre em Direito Civil pela Uerj. Especialista em Direito Civil pela Univer-
sidade de Camerino (Itália). Professor Adjunto de Direito Civil da Uerj e da PUC-Rio.
E-mail: c.konder@gmail.com.
Sumário: 1. Introdução. 2. Deontologia e teleologia no método do direito civil-constitucional.
3. Formalismo e pragmatismo na constitucionalização do direito civil. 4. À guiza de conclusão:
fundamentação argumentativa como pedra de toque da liberdade e da responsabilidade do
intérprete. 5. Referências.
1. INTRODUÇÃO
Ao menos no âmbito das ciências sociais, mesmo as ref‌lexões sobre questões me-
todológicas são contingentes ao contexto histórico-social no qual se originam. O pro-
cedimento de interpretação e aplicação do direito civil não é exceção. Não obstante os
esforços no sentido de buscar uma técnica pura, uma forma neutra, um método correto
e verdadeiro de realizar a interpretação, há que se reconhecer que as diferentes teorias
interpretativas são produtos de anseios relativos a determinados locais e a certas épocas.
Isso diz respeito ao impacto não somente das transformações fáticas da realidade
à qual o direito se vincula – como, por exemplo, o aumento de complexidade da estru-
tura do ordenamento em decorrência das transformações operadas no tocante às fontes
do direito –, mas principalmente da modif‌icação dos valores sociais sobre os quais o
direito se constrói. A historicidade e a relatividade da teoria da interpretação decorrem
especialmente do fato de esta vincular-se a uma multiplicidade de fatores sobre os quais
frequentemente não se ref‌lete (PERLINGIERI, 2001, p. 478).
A nítida e estreita ligação entre a teoria da interpretação e a própria ciência do direi-
to faz com que as mudanças na concepção do que seja o direito impliquem igualmente
modif‌icações na forma de interpretá-lo (RIZZO, 1985, p. 11). Mais precisamente, são
ref‌lexos do que se pretende que seja o direito e como deve ser a forma de aplicá-lo, a cul-
minar no reconhecimento de que a opção metodológica é também, em algum nível, uma
opção ideológica (STRECK, 2009, p. 19). Neste sentido, o que é imperioso é explicitar
o método adotado, também por meio da contraposição com os demais métodos, pois,
como explica Pietro Perlingieri (2008, p. 88), “o que essencialmente se exige do jurista
é a coerência com o método adotado. O confronto depois, sobre qual seja o método mais
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adequado para abordar o assunto, é um discurso aberto sobre o qual ninguém possui, em
um certo sentido, a verdade”. E sintetiza o autor: “a ref‌lexão sobre o método não é tanto
ref‌lexão sobre a escolha, quanto sobre a consciência da escolha e dos resultados que a
sua concretização comporta. É nesse sentido que a ciência e a metodologia se envolvem
reciprocamente” (PERLINGIERI, 2008, p. 124).
A doutrina do direito civil contemporâneo vive um momento de profunda trans-
formação, que é, como não pode deixar de ser, uma ocasião de crise e de oportunidade.
O processo de libertação e superação de certos rigores metodológicos tradicionais a
essa área da ciência do direito pode dar vazão a novos métodos, oxigenados pelas para-
digmáticas mudanças da ciência, ou pode resvalar para a ausência de qualquer método,
que sob a falácia da liberdade e da informalidade representa apenas a tirania e o arbítrio
do intérprete.
Nesse contexto, difundiu-se no Brasil a metodologia da constitucionalização do
direito civil, por vezes referida como “direito civil-constitucional”. O método fundado no
pensamento de Pietro Perlingieri teve aqui grande receptividade, por encontrar também
um contexto constitucional de redemocratização e civilistas ansiosos por transformar
o arcaico direito civil clássico em um instrumento de emancipação das pessoas e de
transformação social, rumo a uma comunidade mais justa e solidária.
No entanto, a invocação descuidada desse método, sem a adequada indicação de
suas premissas, vem causando receio e inquietude. Por vezes, doutrina e jurisprudência
trilham caminhos alegadamente guiados pelo “direito civil-constitucional”, mas fazem
tudo menos aplicar efetivamente o método da constitucionalização do direito civil.
Não são poucos os trabalhos que têm exposto, de forma clara, didática e sistemática, as
premissas metodológicas que o caracterizam.1
Por conta disso, a opção neste estudo foi traçar outro percurso para enfatizar a
necessidade de cuidado com o método. A abordagem será no sentido de confrontar esse
método com os demais, estabelecendo comparações, distinções, divergências, seme-
lhanças e, por vezes, oportunidades de diálogo.
Para isso, podemos sistematizar as escolas, apenas para f‌im didático, sob a af‌irmativa
de que cada metodologia produz distintas respostas para duas grandes questões – bastante
interligadas – acerca da interpretação do direito.
A primeira é referente ao foco da interpretação: de um lado posições que vinculam
o intérprete à construção teórica, à coerência científ‌ica, à pureza da doutrina; de outro
lado, o intérprete voltado para o impacto social da decisão, sua atuação na realidade
concreta, as repercussões sobre o contexto fático. Uma perspectiva mais deontológica
da atividade interpretativa em oposição a uma perspectiva mais teleológica.
A segunda é referente à f‌idelidade da interpretação ao texto: de um lado, posições
que restringem mais a atuação do intérprete, mantendo-o mais amarrado à letra da lei;
de outro lado, posições que lhe garantem maior liberdade e autonomia na adaptação do
enunciado normativo para sua aplicação ao lado concreto. A interpretação como ato de
1. São referências pioneiras, nesse sentido, TEPEDINO, 2008, p. 1-23; FACHIN, 2000, passim; MORAES, 2010, p.
3-20.
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