Distorções da 'teoria da vida útil do produto' quando aplicada a vidas úteis mais longas e reflexões de lege ferenda (para futura revisão legislativa)

AutorCarlos Pinto Del Mar
Páginas246-262

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Introdução

O produto “construção civil”, devido às suas características, deve ter tratamento diferenciado na legislação, em relação a outros produtos. A lei já reconhece a diferença de características quando, no art. 618, do CC, estabelece o prazo de garantia de cinco anos exclusivamente para a construção civil, pois inexiste na legislação um prazo de garantia estabelecido para qualquer outro produto471.

Acontece que a Teoria da vida útil do produto – que associa a responsabilidade dos fabricantes e fornecedores à Vida útil dos produtos, e que se aplica com perfeição aos eletrodomésticos e outros produtos duráveis de modo geral – apresenta distorções quando aplicada a prazos de vidas úteis mais longos, como é o caso dos sistemas construtivos de uma edificação, tornando necessário debater alternativas para que, dentro da razoabilidade e atendendo requisitos técnicos a serem estabelecidos pela sociedade técnica, os agentes da construção não fiquem expostos à responsabilidade durante todo o período de vida útil dos sistemas construtivos, sobretudo daqueles sistemas com vida útil maior (40, 50 anos).

Nesse contexto se desenvolverão, em seguida, as reflexões sobre o tema.

A diversidade de produtos e de durabilidade, dentro da mesma classe de produtos duráveis e a expectativa da vida humana como fator a ser considerado, para efeito de exposição à responsabilidade

Os produtos se classificam de forma genérica em bens “tangíveis” e bens “intangíveis”, também denominados de “materiais” e “imateriais” ou, ainda, “corpóreos” e “incorpóreos”.

Para o Código de Defesa do Consumidor, “produto” é qualquer bem, móvel ou imóvel material ou imaterial. Esse é o conceito adotado no § 1º, do art. 3º, do CDC.

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Bens materiais (tangíveis, corpóreos) são os objetos físicos que podemos ver, tocar, estocar, manusear. Por exemplo: veículos, terrenos, edificações, máquinas, instalações, estoques e assim por diante. Bens imateriais (intangíveis, incorpóreos) são aqueles que não têm existência física. Por exemplo: marcas, patentes, licenças etc.

Os bens materiais subdividem-se em duráveis e não duráveis, que se distinguem pela durabilidade. Os bens duráveis são os que não desaparecem com o seu uso, caracterizados por terem uma vida útil mais longa, tais como: vestuário, equipamentos eletrônicos, eletrodomésticos, ferramentas, automóveis, edificações etc. Os bens não duráveis são os que acabam com o uso, que se consomem ou são usados uma ou poucas vezes, como, bebidas, remédios etc.

Serviços são processos e atuações. Serviço é qualquer ato ou desempenho que uma parte pode executar ou prestar a outra, que seja intangível. Sua produção pode ou não estar vinculada a um produto físico. Por exemplo: transporte de pessoas ou coisas, comércio de produtos, fornecimento de energia elétrica, apoio jurídico, atividades de saúde, educação, serviços de marcenaria e uma variadíssima gama de serviços pessoais.

Serviço durável é aquele que demora a desaparecer com o uso, como a pintura, a construção de móveis, serviços de carpintaria, uma prótese dentária etc.

Serviço não durável é aquele que acaba depressa, que precisa ser feito constantemente, como a lavagem de uma roupa na lavanderia (pois a roupa volta a sujar logo após o uso), jardinagem, faxina, corte de cabelo etc.

As edificações e construções, de modo geral, pertencem à classe dos produtos “duráveis”.

Ocorre que a classe dos produtos duráveis engloba uma gama muito ampla de produtos, que apresentam diferenças significativas entre si, no tocante às características e à própria durabilidade.

Assim é que um eletrodoméstico, ou aparelho eletrônico, por exemplo, pode ter uma vida útil de 2, 3 ou 5 anos, sendo natural que haja a expectativa de bom funcionamento do produto durante esse período. O mesmo ocorre em relação a outros produtos duráveis com maior vida útil, como um automóvel, ou similar, porque são prazos relativamente curtos, comparativamente à expectativa de vida dos seres humanos.

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No caso das unidades habitacionais e construções de modo geral, os prazos de vidas úteis estabelecidos para os diversos sistemas construtivos são de 10, 20, 40 e até 50 anos, podendo se prolongar por períodos maiores, sendo certo que a durabilidade das edificações não pode ser comparada à de outros produtos duráveis, como é o caso dos equipamentos de informática, dos eletrodomésticos e dos automóveis, por exemplo, que se modificam com a rapidez da evolução tecnológica e trazem consigo um fator de obsolescência que não se verifica nas edificações, de modo geral.

Essa observação é feita porque a Teoria da vida útil do produto associa o término da responsabilidade dos fabricantes e fornecedores, de modo geral, ao término da vida útil dos respectivos produtos, sendo certo que isto se distorce quando aplicado à atividade da construção civil, pois sujeita os profissionais e agentes da construção a um período de exposição demasiadamente longo, comparativamente ao tempo da vida humana.

O tempo da vida humana é um fator que deve ser levado em consideração quando se estabelece a responsabilidade das pessoas envolvidas, à evidência de que não faria sentido manter-se uma pessoa responsável por períodos próximos ou maiores do que a própria expectativa da vida humana. De que adiantaria estabelecer que uma pessoa é responsável por um produto ou serviço por 100 anos, por exemplo, se a sua expectativa de vida é menor?

Daí que um dos principais atributos da Teoria da vida útil do produto – que é a liberação da responsabilidade dos fabricantes e fornecedores, de modo geral, ao término da vida útil – acaba não apresentando resultado prático quando aplicado aos profissionais e agentes envolvidos na construção civil, devido à longa vida útil que têm – e devem ter – os sistemas construtivos de uma edificação.

A tendência de aumento da vida útil das edificações pela sustentabilidade e como lastro para financiamentos de longo prazo e sua incompatibilidade com o prazo de exposição à responsabilidade

Associada à característica natural de durabilidade das habitações, a questão ambiental ganhou importância e tem sido objeto de maior preocupação nos últimos anos, colocando em destaque a sustentabilidade de um modo geral, em seus vários aspectos, fato que também contribui para demonstrar a distorção da Teoria da vida útil, quando aplicada a períodos mais prolongados, como são os de vida útil dos sistemas construtivos.

Isto porque, um dos aspectos da sustentabilidade – além do esgotamento dos recursos naturais necessários para a produção da construção civil – tem a ver com a

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durabilidade dos produtos, materiais e sistemas construtivos, pois ao término do ciclo os resíduos da construção constituem um sério problema ambiental, decorrente dos grandes volumes produzidos e da sua deposição irregular472.

Os resíduos da construção – também denominados pela doutrina da engenharia por RCD – Resíduos de Construção e Demolição – são gerados em vários momentos do ciclo de vida das construções: (a) na fase de construção (canteiro); (b) na fase de manutenção e reformas; (c) na demolição de edifícios. Quando depositados irregularmente, esses resíduos causam problemas e custos ambientais de toda ordem, como enchentes – pois afetam a drenagem e a estabilidade das encostas –, proliferação de vetores nocivos à saúde (ratos, baratas, moscas, mosquitos), interdição parcial de vias e degradação do ambiente urbano, redução da vida útil dos locais adequados para aterramento dos resíduos não renováveis, além de sua remoção onerar os cofres públicos municipais.

Os resíduos causados na etapa da demolição estão diretamente relacionados com a vida útil dos edifícios e seus sistemas construtivos, porque, à medida em que se prolonga a vida útil da edificação, prolonga-se também o ciclo de geração dos resíduos, reduzindo o impacto ambiental na escala do tempo.

Vale dizer, a redução dos resíduos causados pela demolição de edifícios depende do prolongamento da vida útil dos edifícios e seus componentes (que, por sua vez, depende, tanto de tecnologia de projeto, quanto de materiais), além de incentivos para que os proprietários realizem modernização e não demolições, e de tecnologia de projeto e demolição ou desmontagem que permita a reutilização dos componentes473.

É consenso entre os estudiosos do assunto que uma das medidas necessárias para minimizar o problema está na otimização dos processos de construção, com destaque para o aumento da vida útil dos sistemas construtivos (a reciclagem dos resíduos entra como solução para os materiais que são inevitavelmente perdidos).

Ainda no tocante à busca de maior vida útil das unidades habitacionais, além da questão da sustentabilidade, há os prazos dos financiamentos para a sua aquisi-

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ção, que são absolutamente necessários para possibilitar o acesso à moradia por parte da camada menos favorecida da população. A tendência é que haja o alongamento do prazo dos financiamentos, pois, com maiores prazos de pagamento, as prestações ficam menores e tornam-se mais viáveis para o orçamento doméstico...

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