Do controle da insuficiência de tutela normativa aos direitos fundamentais processuais

AutorLuiz Guilherme Marinoni
Páginas237-253

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1. Primeiras considerações

Os primeiros passos do controle de constitucionalidade por ação já eram distantes no tempo quando se passou a falar em omissão inconstitucional. Os brotos da concepção de controle de inconstitucionalidade por omissão surgiram quando se percebeu que não bastava impedir o legislador de agredir a constituição, sendo também necessário garantir a efetividade das normas constitucionais e a plena realização dos direitos fundamentais, de modo que a questão da omissão constitucional é corolário da compreensão de que a constituição, para ser cumprida, necessita de prestações normativas ou da ação do legislador infraconstitucional.

Se esta percepção surgiu na doutrina de países em que o controle de constitucionalidade é entregue nas mãos de cortes constitucionais, é natural que a questão tenha sido associada ao controle por via direta ou principal de constitucionalidade. Porém, tal associação não se mostra adequada à tradição brasileira, em que o controle de constitucionalidade, desde a última década do século XIX, é difuso e realizado na forma incidental.

Nos países em que o controle de constitucionalidade é incidental, ou é conjugado com o controle principal – como no Brasil –, o desenvolvimento do argumento da inconstitucionalidade por omissão não precisa nem deve se manter distante da noção de que todo e qualquer juiz tem o poder-dever de, incidentalmente, realizar o controle de constitucionalidade.

É certo que o mandado de injunção permite o controle da omissão constitucional no caso concreto. Não obstante, não se cuida do problema do controle da omissão constitucional diante dos casos conflitivos concretos

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endereçados aos juízos e tribunais ordinários. É curioso, já que não se pode supor que a omissão constitucional não possa existir nestas situações.

No entanto, a realidade forense mostra, cotidianamente, que os juízes de 1º grau, assim como os tribunais de justiça e regionais federais, realizam controle de constitucionalidade por omissão com grande frequência. A gravidade disso está na ausência de método para a feitura deste controle, para não dizer que, bem vistas as coisas, os juízes e tribunais ordinários sequer percebem que estão a suprir a “ausência de lei”.

Portanto, mais do que detectar que a omissão inconstitucional está inserida no poder conferido a todo e qualquer juiz de controlar a constitucionalidade, impera perceber que este poder vem sendo exercido de forma escamoteada e que, bem por isso, não existe qualquer metodologia para tanto e, muito menos, modo de controle do raciocínio judicial.

Note-se que se o juiz, sem dizer nem muito menos justificar, supre a ausência de lei, ele assume um poder que, ainda que possa ser dele, é exercido de modo completamente arbitrário e destituído de legitimação, a reclamar atenção da academia e dos tribunais.

2. O poder de controlar a insuficiência de tutela normativa aos direitos fundamentais

As constituições, ao instituírem direitos dependentes de prestações normativas a cargo do legislador, evidenciaram que, para negar a sua força e autori-dade, não era mais suficiente editar leis destoantes do texto constitucional. A autoridade e a força da constituição também passaram a depender de normas infraconstitucionais.

Nesta perspectiva não se está aludindo, como é óbvio, apenas às normas constitucionais que expressamente impõem, mediante termos variados, o dever de legislar. O problema, aqui, diz respeito às normas de natureza impositiva ou negativa imprescindíveis à realização ou à proteção de direitos fundamentais.

Pois bem. Não existe razão para entender que o juiz tem poder para controlar a constitucionalidade da lei e não tem poder para controlar a falta de lei quando esta é imprescindível à tutela de um direito fundamental. A constitucionalidade da lei e da falta de lei, nesta dimensão, constituem duas faces de uma mesma moeda.

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O controle da omissão inconstitucional, via modelo difuso, será possível quando da lei faltante depender a tutela do direito fundamental pertinente ao caso conflitivo concreto. Ou seja, o controle da omissão constitucional por qualquer juiz ou tribunal convive com a ação direta de inconstitucionalidade por omissão e mesmo com o mandado de injunção.

3. Situações em que a falta de lei é frequentemente suprida na prática

São frequentes as ações coletivas em que o legitimado, ao pedir a tutela de determinado direito de natureza difusa ou coletiva, deduz ausência de norma de proteção a direito fundamental. Também são comuns as ações individuais em que, sob o fundamento de direito fundamental não protegido normativamente, postula-se prestação fática que estaria a cargo do Estado.

Note-se que a proteção de direito fundamental pode depender de norma impositiva ou proibitiva. É possível que, para a tutela do direito ambiental, do direito do consumidor etc., seja necessária norma impondo conduta positiva ou negativa ao administrado. Assim, por exemplo, para obrigá-lo a instalar (norma positiva) tecnologia destinada a diminuir a efusão de gazes e poluentes ou a não comercializar (norma negativa) produto com determinada substância. Além disso, há hipóteses em que a prestação estatal, embora de natureza fática, depende de norma. É o caso, para citar um, dos medicamentos, em que o indivíduo, afirmando direito fundamental à saúde, postula, em face do Estado-administração, determinado remédio não disciplinado na legislação.

Os juízes, não raramente, são chamados a suprir omissões normativas que impedem a tutela de direitos fundamentais, inclusive de natureza processual. Lembre-se, por exemplo, da determinação de ouvida do embargado nos embargos de declaração admitidos com efeitos modificativos. A extensão dos embargos de declaração, cujas regras de regência não permitirem a alteração da decisão judicial, e a consequente necessidade de abertura à participação da parte que poderá ser afetada apenas podem estar baseadas nos direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e ao contraditório.

O problema é que, quando se complementa a legislação em casos como os mencionados, não há qualquer percepção de que se está diante de controle de insuficiência de tutela normativa e, portanto, de que há necessidade de aplicação da regra da proporcionalidade e de um raciocínio judicial racionalmente adequado, com reflexo na devida justificativa da decisão.

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4. A eficácia dos direitos fundamentais, o dever estatal de tutela e o juiz no controle da insuficiência da tutela normativa

Há discussão sobre a questão da eficácia horizontal dos direitos fundamentais, ou seja, sobre a eficácia dos direitos fundamentais nas relações entre os particulares2. Fala-se em eficácia imediata e mediata destes direitos sobre os sujeitos privados. A eficácia mediata dependeria da mediação do Estado, ao contrário da eficácia imediata, que dispensaria tal intervenção. Como é intuitivo, a questão da eficácia dos direitos fundamentais sobre os particulares possui íntima relação com o tema do controle da omissão inconstitucional.

Alude-se à eficácia mediata quando se diz que a força jurídica das normas constitucionais apenas pode se impor, em relação aos privados, por meio de normas infraconstitucionais3 e dos princípios de direito privado. Tal eficácia também existiria quando as normas constitucionais são utilizadas, dentro das linhas básicas do direito privado, para a concretização de cláusulas gerais e conceitos jurídicos indeterminados4.

De acordo com os adeptos da teoria da eficácia imediata, ao inverso, os direitos fundamentais são aplicáveis diretamente sobre as relações entre particulares. Além de normas de valor, teriam importância como direitos subjetivos contra entidades privadas portadoras de poderes sociais ou mesmo contra indivíduos que tenham posição de supremacia em relação a outros particulares. Chegando-se mais longe, admite-se a sua incidência imediata também em relação a “pessoas comuns”. Vale dizer: dispensa-se a intermediação do legislador – e assim as regras de direito privado – e se elimina a ideia de que os direitos fundamentais poderiam ser utilizados apenas para preen-cher as cláusulas abertas5.

De lado essa discussão, o fato é que os direitos fundamentais obrigam o Estado a uma prestação normativa de proteção e, assim, à edição de normas para proteger um particular contra o outro. Quando estas normas não são observadas, surge ao particular o direito de se voltar contra aquele que não a cumpriu. Aliás, o direito de ação – nessas hipóteses – poderá ser exercido mesmo na circunstância de ameaça de violação (ação inibitória). Nesse caso, há lei, abaixo da constituição, regulando as relações entre os particulares. Na hipótese de lei restritiva de direito fundamental, além dos valores constitucionais que justificam a restrição, deverá ser enfocado o direito limitado, que deve ter o seu núcleo essencial protegido6. O legislador obviamente não

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pode negar o núcleo do direito fundamental limitado7. Porém, quando não existe lei a regular a situação de forma direta, não se pode pensar que os direitos fundamentais não podem ser tomados em consideração diretamente pelo juiz.

Se a lei que impede a realização dos direitos fundamentais constitui um obstáculo visível que deve ser suprimido, a omissão de lei, ao impedir a efetividade destes mesmos direitos, não pode deixar de ser considerada...

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